Humanidades

Estudo faz uma arqueologia da representação pola­tica e exalta a democracia radical
Em livro, professor da Faculdade de Direito defende democracia radical e recorre a  arqueologia para construir uma cra­tica a  representaa§a£o pola­tica
Por Itamar Rigueira Jr. - 10/10/2019

Os curdos que lutam, em condições extremamente adversas, contra o Estado Isla¢mico em Rojava, no Norte-nordeste da Sa­ria, habitam uma república auta´noma de fato, surgida em novembro de 2013, que tem hoje população de 4,6 milhões de pessoas. Organizada em cantaµes auta´nomos e apoiada em economias alternativas e princa­pios como o feminismo e o ecologismo, Rojava se constitui como confederalismo democra¡tico, tipo de administração pola­tica não estatal, em que as decisaµes são tomadas pelas bases, e delegados atuam, por tempo limitado, como porta-vozes e executivos.

A experiência dos curdos de Rojava émencionada, com algum destaque, no livro recanãm-lana§ado Representação pola­tica contra democracia radical: uma arqueologia (a)teola³gica do poder separado (Fino Traa§o), de Andityas Soares de Moura Costa Matos, professor da Faculdade de Direito da UFMG. “O caso do ‘Curdistão sa­rio’ mostra que modelos pola­ticos diferentes são possa­veis. Nãose trata da ausaªncia de ordem, mas da superação do poder hiera¡rquico e separador. O poder, numa estrutura como a de Rojava, éfluxo de ideias e de ações entre sujeitos que se reconhecem como iguais”, comenta o autor.

Andityas não estãointeressado, diga-se, em sugerir modelos de democracia radical osele se dedica, muito antes, a uma cra­tica radical do sistema de representação pola­tica. Para investigar a representação, ele lana§a ma£o da arqueologia, manãtodo filosãofico consagrado pelo italiano Giorgio Agamben. O objetivo, afirma o professor, é“identificar continuidades e descontinuidades dos fena´menos, para além de sua origem e de sua suposta linearidade hista³rica, buscando nos discursos e nas prática s as marcas, ou assinaturas, que carregam e espalham”.


Imagem de capa do livro
Reprodução

Sa­ntese disjuntiva

Segundo Andityas Matos, uma assinatura da representação pola­tica éa separação entre governantes e governados. “Trata-se de uma sa­ntese disjuntiva: a representação une e separa, a um são tempo. O dito povo soberano vota para escolher um representante e, com o mesmo ato, desempodera-se”, diz o professor da Faculdade de Direito. “Autoridades representativas não tem relação de responsabilidade com o eleitor. O controle éindireto, fra¡gil.” Mediação e representação, tradicionalmente associadas, na verdade, contrapaµem-se, defende Andityas. Para ele, não hámediação na representação pola­tica, mas simplesmente separação. 

Andityas não estãointeressado, diga-se, em sugerir modelos de democracia radical osele se dedica, muito antes, a uma cra­tica radical do sistema de representação pola­tica.
Originada na Idade Manãdia, a representação pola­tica toma emprestadas técnicas da teologia osdestinadas a “fazer visível o invisível”, segundo Andityas Matos ose promove “ilusionismo pola­tico”. “As sociedades, mesmo as que se julgam laicas, são perpassadas por elementos teola³gicos invisibilizados, difa­ceis de combater”, afirma.

Formado pela Faculdade de Direito da UFMG, da graduação ao doutorado, Andityas Matos fez estudos de pa³s-doutorado em Filosofia do Direito na Universidade de Barcelona e cursou um segundo doutorado, agora em Filosofia, na Universidade de Coimbra. O livro resulta, sobretudo, do trabalho realizado nessa última etapa. 

Quando aborda o conceito de democracia radical, ele destaca que, para que ela se potencialize, épreciso repensar os três elementos tradicionais da Teoria do Estado: povo, territa³rio e poder. Para Andityas, a ideia de povo éuma ficção criada pelo poder, um mito pola­tico. “O povo deve ser pensado não como massa, mas como conjunto de singularidades irrepresenta¡veis e colaborativas”, afirma, em alusão ao conceito de multida£o, desenvolvido pelo italiano Antonio Negri e pelo norte-americano Michael Hardt.

Como diz, no prefa¡cio da obra, Alexandre Franco de Sa¡, professor da Universidade de Coimbra, o contraste entre representação e mediação, no texto de Andityas Matos, “projecta-se na tentativa de pensar a possibilidade de um tempo novo em que a democracia radical possa ter lugar”. Trata-se, segundo ele, de “um discurso entusiasmado, seduzido pela possibilidade de retirar a mediação do jugo da representação e de, por meio dela, descobrir novas possibilidades para a pola­tica”.

 

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