Humanidades

Filhos de casais do mesmo sexo reproduzem padraµes heteronormativos, indica estudo
Mesmo educadas por casais homoparentais, criana§as reproduzem noa§aµes de ‘menino e menina’ de modo semelhante a filhos de casais heterossexuais
Por Emerson Esteves - 17/10/2019

Ilustração

Brincadeira de menina, brincadeira de menino. Carrinhos para os meninos, bonecas para as meninas. Azul para eles, rosa para elas. Essas são frases que refletem padraµes de gaªnero e que costumamos ouvir quando lidamos com criana§as na fase de desenvolvimento infantil. Sa£o esterea³tipos que representam um conceito heteronormativo de gaªnero.

O projeto de iniciação cienta­fica “Homoparentalidade: Ana¡lise do desenvolvimento infantil atravanãs da brincadeira”, vencedor praªmio no 28º Encontro de Iniciação Cienta­fica na área de Ciências Humanas, teve justamente esse objetivo: investigar os papanãis de gaªnero de criana§as adotadas por casais homoparentais, por meio de brincadeiras esponta¢neas de faz de conta.

Com autoria de Ana Beatriz Villar Lessa, aluna do sanãtimo período de Psicologia da UFS e com orientação de Elder Cerqueira, mestre e doutor em psicologia e pa³s-doutor em sexualidade humana, a pesquisa buscou analisar e caracterizar os episãodios de brincadeira esponta¢nea, além de investigar se criana§as brasileiras adotadas por casais homoafetivos aprendem e reproduzem estereotipia e segregação de gaªnero em brincadeiras de faz de conta.

A pesquisa teve sua concepção ainda no Canada¡, quando o professor Elder Cerqueira acompanhou, durante um ano, 12 fama­lias homoafetivas para identificar nas criana§as canadenses tais padraµes de gaªnero nas brincadeiras. Depois o professor retornou para o Brasil e propa´s na UFS o projeto de PIBIC - o programa que concede bolsas de iniciação cienta­fica a estudantes.

Em Aracaju, o estudo foi realizado com nove fama­lias de casais homoparentais com intuito de verificar se as criana§as criadas por um casal do mesmo sexo lidavam com a ideia de gaªnero - noção de menino e menina, de brincadeiras masculinizadas e feminilizadas - de um modo diferente em relação a s criana§as criadas por casais heteroafetivos.

As pesquisas apontaram que não. Mesmo não podendo generalizar os resultados, os estudos indicam que as criana§as, mesmo em um ambiente de desenvolvimento que foge a  heteronormatividade, acabam desenvolvendo de forma “regular” as noções de gaªnero de maneira bastante similar que os filhos de pais heterossexuais.


“Mesmo tendo modelos parentais, dentro de casa, de pessoas do mesmo sexo, as criana§as desenvolviam aspectos na brincadeira que eram regulares. As pesquisas mostram que isso parece ser um fena´meno quase universal. Criana§as a partir dos dois anos, quando comea§am a ter um pensamento simba³lico, a pensar, imaginar e sair da realidade completa, ela comea§a a desenvolver a noção de gaªnero”, afirma Elder. Diante disso, a pesquisa mostrou que as criana§as possuem a tendaªncia de reproduzir estereotipias de gaªnero nas brincadeiras, mas a segregação não foi observada durante o estudo.

“Segregação a gente já tinha visto na literatura [ou seja, em outros estudos] que vinha diminuindo em todas as criana§as. [A segregação,] que éessa coisa de formar grupos excludentes, diminuiu em todo o mundo talvez mais pela forma como noseducamos as criana§as hoje em dia, as escolas não dividem mais tanto assim e atécom os programas de televisão acabou um pouco essa cultura da segregação. Agora, estereotipia éforte. Estereotipia éreproduzir padraµes culturais polarizados de homem e mulher nessas interações”, salienta o professor.

Estereotipia e segregação

O professor Elder Cerqueira caracteriza a estereotipia quando a criana§a repete esterea³tipos culturais sobre o que éser homem e o que éser mulher. Por exemplo, brincar de carrinho, de bola, de boneca reproduz esterea³tipos culturais. Essa noção comea§a a se desenvolver a partir de dois a seis anos.

“A gente tem uma tabela que mensura a estereotipia em criana§as, que vai desde, por exemplo, uma forma sutil de estereotipia: - as meninas verbalizam mais durante um minuto e verbalizam com o olhar direto para outra menina, enquanto que os meninos além de verbalizarem menos fazem isso de uma forma ampla, não éa­ntimo”, pontua o professor.

Mas tem estereotipias que são mais visa­veis. Por exemplo, a escolha de personagens de tema de brincadeira. Meninos tem mais brincadeiras motoras, que são chamadas de fantasia reala­stica, que são baseadas em super-hera³is, na relação de poder, da força física, isso éuma estereotipia, que échamada de macro.

A segregação pode ser conceituada quando mais da metade das interações que a criana§a faz édirecionada a outro parceiro do mesmo gaªnero. Quando meninos são brincam e interagem com meninos, e meninas são brincam e interagem com meninas. “Segregação éaquela fase onde a criana§a já comea§a a criar uma identidade grupal, e para se firmar nessa identidade ela segrega o outro grupo, éaquela fase em que meninos dizem que odeiam as meninas e vice-versa e formam grupos”, esclarece o docente.

Metodologia da pesquisa

A metodologia foi baseada no modelo de microetnografia. Dois pesquisadores va£o a campo no ambiente natural da criana§a: por exemplo, praia, no parque, no playground do prédio, no quarto e uma ca¢mera éinstalada discretamente mirando em uma criana§a foco, que ésorteada. Um dos pesquisadores monta uma planilha que já possui comportamentos pré-registrados de uma criana§a brincando.

Uma planilha padrãopara quem estuda nesta área da psicologia, que envolve vocalizações, verbalizações, interações físicas, comportamentos mais amplos, comportamentos motores, etc. Enquanto isso, o outro pesquisador vai relatando tudo que estãoacontecendo, de forma cursiva como uma redação. Isso dura são um episãodio da brincadeira.


Depois, os dados da planilha e os descritos são somados a uma microanálise das imagens. Calculam-se tempo, forma de interação, se a criana§a olhou para a ma£e, para o orientador, para outra criana§a, se tocou, se mexeu, o que ela disse. a‰ uma planilha que analisa o comportamento infantil minuto a minuto. Todo o processo de monitorar as criana§as atravanãs da ca¢mera passa por comissão de anãtica e os pais assinam um termo de consentimento.

Refora§o de estereotipia como forma de ajustamento: preconceito

Mas, por que as criana§as, mesmo em um contexto que não épadrãoda heteronormatividade, acabam reproduzindo estereotipias de gaªnero que não condizem com o seu desenvolvimento familiar? Segundo o Elder Cerqueira, dois fatores podem explicar esse fena´meno: o preconceito e a influaªncia da macrocultura.

O primeiro diz respeito ao reforço de esterea³tipo de gaªnero feita sem intenção por pais e familiares para evitar que a criana§a passe por algum tipo de preconceito na infa¢ncia.

“Os pais e toda a sociedade acham que essa criana§a pode viver preconceito, quando entrar na escola, na própria fama­lia, por vários motivos. Parece que os pais, para evitar que essa criana§a sofra preconceito, tem uma mega-preocupação, ao que desenvolve o padra£o. E, a s vezes, nospercebemos que eles atéexageram, maximizam, algo que énatural são para provar que estão‘tudo bem’” 


Elder Cerqueira

Ana Beatriz, autora da pesquisa, conta um caso em especial que chamou muito atenção dos pesquisadores sobre a situação de reforço de padraµes de gaªnero no ambiente familiar. “Foi de uma criana§a, de uma menininha, adotada por um casal de lanãsbicas. Primeiro que o quarto dela era todo rosa, cheio de brinquedos rosa, completamente dentro dos padraµes de gaªnero propagados dentro de nossa sociedade heteronormativa. No meio da brincadeira teve uma hora que foi muito interessante, ela estava brincando que estava num supermercado passando as compras, as ma£es estavam na função de caixa do supermercado, quando ela olhou para ma£e e fez ‘são um instante que já já o pai vem pagar’. a‰ uma coisa que não édo núcleo familiar dela. Porque ela tem duas ma£es. Sa³ que na brincadeira, ela reproduz um padrãode dizer que quem vai pagar a conta éo pai”, ressalta a autora da pesquisa.

“A literatura diz que isso acontece, da própria familia homoparental repetir o padrãoheteronormativo como forma de ajustamento. Em que o casal estãotão preocupado, éuma intenção boa em não ser diferente das outras, que ele se ajusta ao padrãoheteronormativo mesmo sendo um casal gay”, acentua o Elder Cerqueira.

O segundo ponto éa influaªncia da macrocultura, da ma­dia, da música, da TV, da internet, que estãoalém do controle dos pais. Desta forma, os pais não são os aºnicos modelos de atuação no desenvolvimento infantil.

“Na cultura da infa¢ncia, o poder que os pais tem sobre o fena´meno da infa¢ncia parece ser um pouco menos do que as teorias cla¡ssicas em psicologia diziam. Parece que existe uma relação da criana§a com a macrocultura, o mundo, que não étotalmente filtrada pelos pais. Então as criana§as aprendem as músicas, as brincadeiras, do mundo sem que os pais tenham 100% de controle de filtro. Os pais não são os aºnicos modelos. O que importa para nós, da psicologia do desenvolvimento, édizer: em questões de gaªnero e sexualidade os pais não são os aºnicos modelos dessa criana§a”, conclui Elder.

 

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