Humanidades

Crise de coronava­rus expaµe tensão fundamental no governo da China
Crise de coronava­rus expaµe tensão fundamental no governo da China, afirma o socia³logo de Stanford e especialista em China Xueguang Zhou
Por Noa Ronkin - 09/02/2020

Crédito da foto: Getty Images
Um guarda de segurança fica do lado de fora do Huanan
Seafood Wholesale Market, que foi vinculado a casos de coronava­rus,
em 17 de janeiro de 2020 em Wuhan, prova­ncia de Hubei, China.

A sociologia organizacional pode não ser o primeiro campo acadêmico em que as pessoas tendem a procurar uma explicação das origens de uma crise de saúde pública, como a disseminação do coronava­rus Wuhan, mas da perspectiva do socia³logo de Stanford e membro do corpo docente da APARC, Xueguang Zhou , , especialista em mudança na sociedade chinesa contempora¢nea, a escrita na parede hámuito tempo estãopresente para todos verem. Zhou, que também éprofessor de Desenvolvimento Econa´mico Kwoh-Ting Li e membro saªnior da FSI, estuda organizações chinesas, construção de estados chineses e burocracia chinesa. Seu trabalho lana§a luz sobre as caracteri­sticas e tensaµes no governo da China e épertinente para entender o desenrolar da crise do coronava­rus e a resposta do governo chinaªs a ela.

Na entrevista a seguir, Zhou fala sobre essas questões, sua pesquisa sobre os fundamentos institucionais da governana§a na China e alguns dos desafios que opaís enfrenta agora. A conversa foi editada para maior duração e clareza.

P: O número de mortos pelo coronava­rus continua aumentando na China continental, juntamente com a raiva pela resposta do governo ao surto. Quais são as implicações desta crise para a governana§a chinesa?

Este não éapenas um surto de um novo va­rus, étambém uma manifestação do colapso das estruturas de governana§a da China. A crise expa´s as rachaduras no sistema. a‰ verdade que qualquer governo pode estar despreparado para lidar com um surto de uma nova epidemia. No entanto, com base no que sabemos agora, a nova cepa de va­rus foi detectada em Wuhan algumas semanas antes do ini­cio do surto, mas as burocracias em vários na­veis não funcionaram e as autoridades envolvidas não foram alertadas.

Eu não culparia as autoridades locais, que seguiram o mesmo velho padrãode resposta a  crise. Por razões culturais e políticas, sua principal preocupação era manter-se baixo e manter as coisas esta¡veis ​​apenas algumas semanas antes do Ano Novo Chinaªs e antes das reuniaµes anuais do Congresso Popular da Prova­ncia. Esse padrãode resposta foi incorporado a  burocracia chinesa hános. Mas, neste caso, o comportamento padrãoexpa´s as fraquezas dos governos central e local. Podemos imaginar cenas semelhantes de crises na saúde e outros problemas acontecendo em outras prova­ncias e cidades chinesas, porque os funciona¡rios tem mentalidades semelhantes. O problema não écom funciona¡rios individuais, aqui ou ali, mas sim que a burocracia geral foi domada para responder a essas informações dissonantes dessa maneira.

Espero que esta crise se torne um ponto de virada; que a gravidade da situação afeta a vida das pessoas com profundidade suficiente para torna¡-las conscientes do tipo de condições que precisam ser transformadas. Espero que isso os faz perceber que o governo deve melhorar seu processo de tomada de decisão, transparaªncia e abertura a s contribuições da sociedade. O atual sistema de governana§a na China éprojetado para implementação de decisão de cima para baixo, não para agrupamento e transmissão de informações de baixo para cima. Portanto, embora a informação seja abundante - como foi o caso do coronava­rus - não hátransferaªncia eficiente de informações das localidades para os na­veis superiores. E este último não pode lidar com a carga de informações vindas do vasto territa³rio dopaís e da enorme população heterogaªnea. De fato,

P: Desde que o coronava­rus eclodiu, houve um aumento de interesse em sua pesquisa sobre governana§a chinesa. Conte-nos mais sobre isso.  

Por mais de dez anos, venho fazendo um trabalho de campo na China e publicando meus escritos sobre esse ta³pico em chinaªs. Em 2017, publiquei uma coleção de ensaios em um volume cuja tradução para o inglês éA lógica institucional da governana§a na China: uma abordagem organizacional . O tema do livro éa relação entre o governo central da China e os diferentes na­veis do governo local com relação a várias questões de governana§a. Esse relacionamento estãocheio de atritos e desafios para governar a China, que a crise do coronava­rus já expa´s.

No prazo de seis meses após a publicação, o livro foi “sem abrigos” na China e a reimpressão foi proibida. A editora devolveu os direitos autorais para mim. Então eu fiz um versão digitaldispona­vel para download gratuito. Desde o surgimento do coronava­rus, em poucos dias, as referaªncias ao livro foram compartilhadas na plataforma de ma­dia social chinesa Weibo quase 4.000 vezes. Esse conjunto de questões que venho discutindo hámais de uma década tornou-se repentinamente altamente relevante. Por um lado, fico triste com essa mudança de eventos: a s vezes vocênão quer que suas previsaµes se tornem realidade. No entanto, também me sinto justificado. Ou seja, hámuito tempo, venho estudando algo que considerava fundamental, mas nunca totalmente compreendido, e agora de repente as linhas de argumentação que desenvolvi ao longo dos anos estãocirculando amplamente e tendo impacto. Estou trabalhando em uma tradução para o inglês do livro.

P: Vocaª descreve uma tensão fundamental no governo da China. O que éessa tensão e como ela se manifesta?

Dada a escala formida¡vel da governana§a na China, a centralização da autoridade inevitavelmente introduz uma separação entre a formulação de políticas no centro e a implementação de políticas nos na­veis locais. Essa separação gera uma tensão fundamental entre a centralização da autoridade e a governana§a local eficaz. A fonte da tensão éesta: a extensão da centralização da autoridade éalcana§ada a  custa da eficácia na governana§a local. Ou seja, a centralização da autoridade coloca os direitos e os recursos de decisão mais distantes daqueles na­veis que possuem informações e capacidades mais precisas na solução de problemas. Por outro lado, o fortalecimento das capacidades de governana§a local implica a expansão da autoridade local, que muitas vezes leva a (ou éinterpretada como) desvio do centro,

Nos últimos anos, sob a nova liderana§a, a China passou por uma tremenda consolidação e centralização do poder pola­tico. E foi isso que paralisou os governos locais. Eles não tem autonomia e iniciativa e evitam a responsabilidade. Um resultado éque as informações são filtradas ou bloqueadas de umnívelde governana§a para outro. Os problemas surgem todos os dias e nunca chegam a  ma­dia ou a  atenção do paºblico: hácidentes, crimes, corrupção e pessoas protestam, mas nunca ouvimos falar disso. O surto de coronava­rus éum caso extremo em que as autoridades simplesmente não podem ocultar e, temporariamente, ouvimos mais vozes e cra­ticas via ma­dia social e outros canais informais.

Espero que esta crise seja um ponto de virada e faz com que a sociedade chinesa perceba que a informação e o compartilhamento eficiente de informações são fundamentais para o seu bem-estar. De tempos em tempos, eu publico resenhas de livros, comenta¡rios e meus pensamentos sobre vários tópicos em uma pa¡gina pessoal no Weibo. Ha¡ um tempo, publiquei minhas reflexões depois de assistir a  minissanãrie da HBO em Chernobyl , considerando as falhas que causaram o desastre de Chernobyl na perspectiva da sociologia organizacional. E essas são todas falhas de informação. Existem muitos paralelos com o que aconteceu agora em Wuhan. Desde o surto de va­rus, esse post foi compartilhado muitas vezes na China, nas ma­dias sociais e em vários outros canais.

P: Quais são as implicações dessa tensão fundamental entre a centralização da autoridade e a governana§a eficaz no futuro da China?

Essa tensão cria ciclos de centralização e descentralização ao longo do tempo. A descentralização gera diversos interesses e impulsiona desenvolvimentos econa´micos em diferentes partes dopaís. De fato, as décadas de ascensão econa´mica e reformas da China foram marcadas por uma tremenda descentralização. Foi o que fez a China ter tanto sucesso. Mas a descentralização representa uma ameaça para a autoridade central, portanto ela volta a  consolidação de poder, como observamos nos últimos anos sob a nova liderana§a.

Por outro lado, quanto mais recursos e direitos de decisão forem centralizados para cima, menor seráa eficácia da governana§a nos na­veis locais. Isso se manifesta na forma de falta de iniciativa dos governos locais, o que, por sua vez, cria a´nus para o governo central. A desaceleração econa´mica da China já estãopressionando tremendamente o governo central e, agora, com a luta para conter a disseminação do coronava­rus, a economia da China estãopraticamente paralisada. A estagnação econa´mica équase inevita¡vel, as questões são quanto severas sera£o e quanto tempo levara¡ para se recuperar dela.

Creio, portanto, que éapenas uma questãode tempo atéa China passar por mais uma fase de descentralização, mas isso provavelmente seráapenas outra parte de um ciclo perpanãtuo. O ciclo continuara¡, a menos que os desafios da China sejam traduzidos em ação pola­tica emudanças fundamentais sejam feitas nos fundamentos institucionais da governana§a. Taismudanças, no entanto, envolvera£o a burocracia chinesa e a ideologia oficial e dificilmente ocorrera£o no futuro pra³ximo.

P: Quais são algumas das descobertas de sua pesquisa sobre a burocracia chinesa?

Durante a última década, venho realizando trabalhos de campo e estudando o funcionamento interno da burocracia chinesa em ação: observando como as autoridades locais se comportam na solução de problemas, gerenciamento de crises, implementação de políticas e interagem com autoridades superiores e burocratas denívelinferior. Desenvolvi modelos e argumentos teóricos sobre como o estado chinaªs foi organizado e como ele opera tanto nonívellocal (perspectiva de baixo para cima) quanto nonívelcentral (perspectiva de cima para baixo).

Como parte desse projeto, estudei os padraµes de mobilidade profissional entre os burocratas da prova­ncia de Jiangsu, que possui a segunda maior economia da China, logo atrás de Xangai. Agora, tenho um conjunto de dados que abrange meio milha£o de registros em mais de 40.000 funciona¡rios, detalhando seus fluxos de carreira de 1990 a 2013. Este projeto lana§a luz sobre muitas questões importantes relacionadas a  burocracia e governana§a chinesa na China. Por exemplo, a dupla autoridade entre as linhas do partido e do governo éuma caracterí­stica definidora do estado do partido na China. Podemos examinar as principais caracteri­sticas desse fena´meno atravanãs das lentes da gestãode pessoas, ou seja, como as autoridades estãose movendo em diferentes posições entre o partido e o governo. Temos um artigo a ser publicado sobre esse assunto.

Outra linha de pesquisa neste projeto éo que chamo de “mobilidade espacial estratificada”, significando um padrãopelo qual apenas um punhado de funciona¡rios écapaz de ir além da jurisdição administrativa ao longo da escada burocra¡tica para a próxima jurisdição administrativa imediata denívelsuperior, enquanto a maioria funciona¡rios permanecem dentro de sua própria jurisdição vitala­cia. a‰ mobilidade polarizada, em forte contraste entre mobilidade espacial e mobilidade local. a‰ por isso que em cada localidade existem redes sociais densas e limites fortes. Esse tipo de mobilidade estratificada na burocracia chinesa tem enormes consequaªncias para entender como a China égovernada. Por exemplo, as redes locais se protegem ferozmente e tem fortes laa§os com os funciona¡rios de uma autoridade imediata, resultando em conluio entre os governos locais quando respondem a crises ou interagem com autoridades superiores. A falha em impedir que o surto de coronava­rus de Wuhan se transforme em epidemia éum exemplo disso. Então, abrimos essa conversa com o coronava­rus e terminamos com o mesmo ta³pico.

 

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