Humanidades

Laªnin, uma das principais figuras da “era dos extremos”
As diferentes faces de um dos personagens mais importantes da história da Raºssia e do mundo
Por Maria Laura López - 24/04/2020


O revoluciona¡rio russo Vladimir Ilitch Laªnin (1870-1927) osFoto Library Via Flickr

Como pola­tico, intelectual e estrategista, Vladimir Ilitch Laªnin (1870-1927) tinha todas as qualidades necessa¡rias para se destacar na “era dos extremos”, conforme a expressão do historiador brita¢nico Eric Hobsbawn (1917-2012). Por isso, foi apontado por Hobsbawm como o personagem de maior impacto individual na história do século 20. Hoje, exatos 150 anos após o seu nascimento osque se deu em 22 de abril de 1870 -, ainda épossí­vel ouvir os ecos de suas ideias, tanto em seus pontos positivos como negativos.

Nascido na buca³lica Simbrsk, cidade do interior da Raºssia, Laªnin foi antes Vladimir Ilitch Ulyanov, nome dado por seu pai, Ilya Ulyanov, que trabalhava como inspetor das escolas públicas da regia£o. “Era uma pessoa que tinha um cargo com algum status no sistema educacional da Raºssia czarista. Sua familia era como uma de classe média alta”, afirma Osvaldo Coggiola, professor do Departamento de Hista³ria da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, especialista em história contempora¢nea.

O cara¡ter quase nobre de sua fama­lia, obtido graças aos servia§os prestados pelo pai ao governo do czar, concedeu a Vladimir Ulyanov certos privilanãgios que ele não se recusava a usar quando necessa¡rio. No entanto, dois golpes atingiriam os Ulyanov e transformariam totalmente a dina¢mica da fama­lia: a morte do pai, em 1886, e a condenação de Aleksandr, irmão mais velho de Vladimir, um ano depois. “O irmão se engajou no movimento revoluciona¡rio e participou de uma conspiração para matar o czar, sendo enforcado por isso quando o plano falhou”, diz Coggiola.

Segundo o professor, a morte do irmão marcou a vida de Vladimir, e agiu como impulsionador para um engajamento pola­tico muito forte. “Isso aconteceu com a familia toda: a ma£e e a irmã também passaram a apoiar seu maior envolvimento em questões políticas, o que explica muitos traa§os de sua personalidade”, aponta Coggiola. Depois desses acontecimentos, os Ulyanov foram isolados pela camada burguesa da cidade, o que provocou uma raiva direcionada aos nobres e liberais que Vladimir alimentaria atéo final de sua vida.

A ma¡ fama que a familia carregou a partir de então foi um empecilho em vários outros momentos. Recusado na Universidade de Sa£o Petersburgo e expulso da Universidade de Kazan, Vladimir Ulyanov precisou estudar por conta própria e são conseguiu um diploma depois da insistaªncia da ma£e para que o deixassem prestar a prova de Direito em Sa£o Petersburgo, na qual passou sem falhas. “Com 20 anos, já formado, se vinculou ao ca­rculo revoluciona¡rio, sem participar de ações terroristas como seu irmão, mas tentando formar um partido opera¡rio, o partido social-democrata”, afirma o professor.

Sempre trabalhando para disseminar sua interpretação das ideias de Marx, Vladimir foi preso em 1895 e mandado para a Sibanãria dois anos depois. De acordo com Coggiola, la¡ ele cumpriu o resto de sua pena com bastante tempo para estudar e escrever. “Durante esse período ele acabou produzindo o que se tornaria depois uma de suas obras mais importantes, O Desenvolvimento do Capitalismo na Raºssia, na qual ele analisa as relações de produção mundial e o crescimento da divisão de classes nopaís.”

Competitivo, obstinado e estrategista

Foi em 1901 que Vladimir usou pela primeira vez o pseuda´nimo Laªnin, nome com o qual publicou seu primeiro grande desvio da ortodoxia marxista, Que Fazer?, em 1902. No texto, o revoluciona¡rio traz um plano de ação derivado de um partido unificado, no qual todos exerceriam um papel de acordo com o que fosse previamente decidido. E foi justamente esse ponto o causador de uma ruptura no Partido Social Democrata Russo. “Laªnin defendia que são poderia ser filiado ao partido quem participasse ativamente dos trabalhos propostos. Ele queria colocar uma fronteira clara em quem era membro do partido e quem não era”, explica Coggiola.

Seu colega Julius Martov, por outro lado, queria um partido tradicional, que aceitasse filiados com outros interesses. Assim, diz Coggiola, Laªnin coordenou os bolcheviques, grupo que detinha os filiados mais radicais e que aceitavam sua ideia de centralismo democra¡tico, enquanto Martov liderou os mencheviques, que “eram mais relaxados em relação a s próprias normas e tinham uma aliana§a com a burguesia liberal, que não queria fazer a revolução”, conta o professor, que vaª nos mencheviques uma forma de reivindicação tolerante em relação ao governo, o que mostrava a fragilidade pola­tica do grupo.

Laªnin durante a Revolução Russa de 1917 osFoto: Reprodução

Em 1905, depois de várias derrotas na Guerra Russo-Japonesa, teve ini­cio uma revolta em Sa£o Petersburgo. Reivindicando melhores condições de trabalho, reformas econa´micas e o fim dos privilanãgios da estrutura absolutista, manifestantes marcharam em protesto atéo Pala¡cio de Inverno para entregar uma petição ao czar Nicolau II. Sob comando do czar, a pola­cia abriu fogo e milhares de pessoas foram mortas ou ficaram feridas no episãodio conhecido como “Domingo Sangrento”, o que levou Laªnin a ensaiar a Revolução Russa.

No entanto, isso são seria realmente possí­vel depois do fracasso da Raºssia na Primeira Guerra Mundial, que eclodiu em 1914. O czar, que já havia destrua­do todo resqua­cio de popularidade no “Domingo Sangrento”, utilizou seus recursos em uma guerra imperialista que deixou seu povo em uma situação de misanãria ainda pior. “Era o melhor cena¡rio para uma revolução e Laªnin teve papel decisivo nisso”, afirma Coggiola. Segundo ele, além de convocar os trabalhadores para abandonar a guerra estrangeira e lutar pelo poder em seu pra³priopaís, ele precisou convencer grande parte do seu partido a tomar o governo.

A revolução de mara§o de 1917 levou ao poder o menchevique Alexander Kerensky, que falhou em retirar opaís da guerra, erro que lhe custaria a governana§a. “Nesse período Laªnin também fez aliana§a com pessoas de fora dos bolcheviques, em especial Trotsky, que ingressou no partido apoiando suas ideias e fazendo com que eles ganhassem a maioria”, explica o professor. Em outubro do mesmo ano os bolcheviques organizaram uma insurreição que deu ini­cio a  ditadura de um partido aºnico, que combateria qualquer oposição.

A familia Romanov, fuzilada pelos bolcheviques: o czar Nicolau II, a esposa e filhos
Foto:  Wikimedia Commons

Segundo Coggiola, um dos períodos mais conturbados do governo foi o que se deu entre a Revolução de outubro 1917 e a proclamação oficial da Unia£o das Repúblicas Socialistas Sovianãticas (URSS), em 1922. A familia imperial russa dos Romanov oso czar, esposa e filhos osfoi fuzilada em julho de 1918 por tropas bolcheviques. “O governo bolchevique se mostrou muito forte ao conseguir sobreviver a  guerra civil que se instaurou entre os que eram a favor do partido e os contra-revoluciona¡rios”, afirma o professor. Mas a situação são foi realmente amenizada quando ele organizou a Nova Pola­tica Econa´mica (NEP), que pretendeu voltar parcialmente a  economia capitalista.

“Durante todos esse anos Laªnin permaneceu como uma das figuras mais importantes não são do partido bolchevique mas também de toda a Raºssia, embora tenha tido uma participação pola­tica mais espora¡dica no último ano de vida”, conta Coggiola. Laªnin morreu em janeiro de 1924, em decorraªncia de sucessivos acidentes vasculares. Na linha para o governo estavam Sta¡lin e Trotsky, que disputaram o poder por um tempo, atéSta¡lin ganhar graças aos contatos que tinha. Trotsky foi exilado da URSS, fixando-se no Manãxico, onde foi assassinado anos depois a mando de Sta¡lin, tamanha era a rivalidade entre eles.

O legado

O que se seguiu foram anos de forte repressão pola­tica nopaís e um crescimento econa´mico seguido de tensaµes internacionais. “O regime que havia sido considerado revoluciona¡rio acabou se transformando em uma ditadura monstruosa que perseguiu opositores e matou pessoas”, afirma o professor. O governo de Sta¡lin durou 29 anos e, apesar de violento, transformou a URSS em uma potaªncia mundial e deu aopaís um papel decisivo na derrota da Alemanha na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Na sequaªncia, o governo de Nikita Sergueievitch Krushev foi marcado pela crise dos ma­sseis de Cuba, pela construção do Muro de Berlim, por erros pola­ticos e pela desorganização econa´mica, herdada depois por Leonid alitch Brejnev. Ao longo dos 18 anos em que esteve no poder, Brejnev teve que equilibrar a estagnação econa´mica e os gastos com a corrida armamentista contra os Estados Unidos.

Depois de dois governantes que mal terminaram um ano no poder, a URSS teve seu último secreta¡rio-geral, Mikhail Gorbachev, que conduziu o fim da Guerra Fria com os Estados Unidos e marcou o enfraquecimento do Partido Comunista. Tentando amenizar a crise institucional que se alastrava, Gorbachev propa´s duas reformas, a glasnot, que defendia uma abertura pola­tica, e a perestroika, que visava a uma reformulação econa´mica nopaís. Entretanto, segundo Coggiola, isso não foi suficiente e em 1991 a Unia£o Sovianãtica se dissolveu em 15 novas nações independentes. “A partir daa­ houve uma ascensão da democracia, embora são três presidentes tenham assumido atéhoje”, diz ele. O professor se refere a Boris Ianãltsin, Vladimir Putin e Dmitri Medvedev. Ianãltsin presidiu a Raºssia de 1991 a 1999 e Putin (2000-2008 e 2012 atéhoje) se alternou na direção dopaís com Medvedev (2008-2012), ora como presidente, ora como primeiro-ministro, mas sempre mantendo para si o poder real. O atual mandato de Putin vai até7 de maio de 2024.

No hista³rico de governos totalita¡rios e vitala­cios, Putin parece ser são mais um que pretende se manter no poder pelo que tempo que conseguir. De acordo com o professor, isso também éconsequaªncia da obra de Laªnin, pea§a-chave da história da Raºssia. “Em primeiro lugar seu legado mais direto foi a formação da Unia£o Sovianãtica. O acontecimento pola­tico mais importante da história do século 20, que foi decisivo em momentos como a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria”, aponta ele.

Ainda para Coggiola, a maior herana§a de Laªnin foi o conjunto de políticas suficientemente coerentes que formaram a teoria leninista. “Nãocabe aqui fazer um debate sobre seus pontos positivos e negativos. Em qualquer hipa³tese, ele foi um dos poucos lideres da história a ter toda uma teoria pola­tica com seu nome”, afirma o professor. Para o bem ou para o mal, Laªnin foi uma figura extremamente importante, e suas ideias são atualmente lembradas como forma de entender e de, talvez, mudar o mundo. Como a confirmar a presença do revoluciona¡rio no mundo contempora¢neo, atéhoje a maºmia de Laªnin repousa na Praça Vermelha, no centro de Moscou, a  vista do paºblico.

 

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