Humanidades

Recorde de normas jura­dicas não garante direitos na pandemia, criticam pesquisadores
Levantamento identifica contradia§a£o e excessos normativos que dificultam a comunicaça£o com a populaa§a£o sobre as aa§aµes da pandemia; veto a lei das máscaras écitado como exemplo
Por Ivanir Ferreira - 11/07/2020


De janeiro a maio de 2020, o governo do presidente Jair Bolsonaro e outros órgãos federais editaram pelo menos 1236 normas jura­dicas relacionadas a  covid-19, entre elas 705 portarias, 65 resoluções, 32 medidas provisãorias e 14 decretos presidenciais. Foto: Municip-San Isidoro osFlickr
 
A pandemia da covid-19 foi a principal justificativa da Unia£o para a edição de um número recorde de normas jura­dicas. A quantidade poranãm, ao contra¡rio de propiciar mais proteção, tem dificultado o entendimento da população quanto ao comportamento a ser adotado durante a pandemia. a‰ o que aponta levantamento do Centro de Pesquisa e Estudos sobre Direito Sanita¡rio (Cepedisa), da Faculdade de Saúde Paºblica (FSP) da USP, em parceria com a ONG Conectas Direitos Humanos, a partir de informações compiladas do Dia¡rio Oficial da Unia£o e de outras publicações oficiais.

De janeiro a maio de 2020, o governo do presidente Jair Bolsonaro e outros órgãos federais editaram pelo menos 1236 normas jura­dicas relacionadas a  covid-19, entre elas 705 portarias, 65 resoluções, 32 medidas provisãorias e 14 decretos presidenciais. Entre os objetivos do projeto Mapeamento e análise das normas jura­dicas de resposta a  Covid-19 no Brasil estãocriar um banco de dados de normas editadas durante o período, saber como as autoridades governamentais responderam normativamente a esse momento emergencial e analisar o impacto da nova legislação sobre os direitos humanos (redução dos direitos trabalhistas, liberdade de ir e vir, acesso a informações sobre a pandemia, a servia§os de saúde, produtos e servia§os essenciais, dentre outros).

A professora Deisy Ventura, pesquisadora da FSP e uma das coordenadoras do projeto, diz ao Jornal da USP que “ter muitas leis não significa que as pessoas estejam mais protegidas ou tenham seus direitos resguardados”. Para entendimento, cita o caso do veto presidencial ao Projeto de Lei (PL) sobre a obrigatoriedade de uso de ma¡scara pela população. “O presidente agiu contra a saúde pública ao vetar pontos importantes da lei”, afirma a professora. Com a decisão, o mandata¡rio desobrigou o uso de proteção facial em Espaços paºblicos, estabelecimentos comerciais, templos religiosos, instituições de ensino e presa­dios, o que contrapa´s as orientações sanita¡rias de vários estados e munica­pios brasileiros, que adotaram leis mais restritivas.

Diante do abrandamento do PL, o Supremo Tribunal Federal (STF)  decidiu que as medidas criadas no a¢mbito federal não afastariam as competaªncias de estados e munica­pios e que durante a pandemia os cidada£os deveriam seguir regras locais. A intervenção do STF “amenizou o problema, mas a população ficou desnorteada quanto aos comandos contradita³rios das autoridades”, afirma.

Regulamentação sobre a fronteira Brasil-Venezuela

Segundo o mapeamento, de janeiro a 31 de maio de 2020, o Governo Federal editou 57 Medidas Provisãorias (MP), entre as quais 32 estavam relacionadas a  pandemia, o que representou quatro vezes mais do que o número de MPs publicadas no ano passado, nesse mesmo período. Quinzenalmente, o Cepedisa e a Conectas publicara£o o Boletim de Direitos na Pandemia, abordando algum tema do mapeamento, com uma linguagem mais acessa­vel a  população. A primeira edição oferece ao leitor conceitos ba¡sicos oriundos de normas internacionais, como “o que éuma pandemia” e “como se da¡ nome a s doena§as”. Apresenta também uma análise das normas sobre o tra¢nsito de pessoas nas fronteiras brasileiras durante a pandemia.


Deisy Ventura diz que sobre o tema “fronteiras” foram editadas 15 portarias interministeriais. “Algumas delas infringem leis brasileiras e tratados ratificados entrepaíses vizinhos”, como foi o caso da portaria nº 255, editada em 22 de maio de 2020. O texto discrimina, sobretudo, o povo venezuelano, que ficou proibido de entrar no territa³rio brasileiro mesmo tendo residaªncia fixa, filhos ou ca´njuges brasileiros. Outra portaria (255/19), editada logo em seguida, trata da deportação suma¡ria dos venezuelanos em caso de insistaªncia destes em atravessar a fronteira. “Essas portarias violam o Estatuto dos Refugiados e outros tratados internacionais”, relata a pesquisadora.

Para Fernando Aith, um dos idealizadores do projeto e professor do Departamento de Pola­ticas e Gestãode Saúde, da FSP, a intensa atividade do Poder Executivo éalgo antidemocra¡tico e que “revela a falta de diretrizes e de norteamento de ações para responder aos desafios impostos pela pandemia”. Segundo o pesquisador, “o excesso de leis dificulta o exerca­cio da cidadania porque as pessoas comuns não conseguem acompanhar todos os atos normativos”.

Aith lembra ainda que boa parte das 1196 normas infralegais (isto anã, as de hierarquia inferior a das leis)  que não passam pelo Poder Legislativo permitem que o Poder Executivo imponha novas obrigações para o cidada£o sem que estas estejam previstas em nenhuma outra lei, e são muitas vezes contrarias a  própria lei ou a  Constituição. Em outras palavras, as normas infralegais osportarias, resoluções, regulamentos e dispositivos secunda¡rios osdeveriam apenas complementar ou explicar as leis.

 

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