Humanidades

Ideias pandaªmicas do século V aC Atenas
A 'praga ateniense' não era apenas ateniense, embora tenhamos o relato de seu impacto apenas em Atenas. Tambanãm atingiu o Egito e grande parte do territa³rio do rei persa, segundo Tuca­dides, e chegou a Atenas pelo Pireu e pelo norte do mar Egeu.
Por Oxford - 28/07/2020


Crédito: Shutterstock Tuca­dides, o grande historiador grego, fez a primeira observação cuidadosa do impacto de uma pandemia durante a praga ateniense do século V


Professor Rosalind Thomas, Balliol College.

COVID-19 levou a reflexa£o sobre muitas pandemias anteriores, sobretudo os surtos de peste no 17 º século  e a Peste Negra na 14 ª . Quero voltar ainda mais a  grande praga de Atenas no século V aC, que atingiu os atenienses logo após o ini­cio da grande guerra do Peloponeso contra Esparta e seus aliados em 431 aC 

A praga ateniense levou o historiador Tuca­dides a oferecer em sua Hista³ria uma descrição médica e secular completa, de modo que, se ocorresse novamente, as pessoas "não deixariam de reconhecaª-la", como ele dizia com cautela. Tuca­dides também ofereceu uma análise brilhante e abrasadora dos efeitos sociais e mentais da praga, uma devastação da ordem social que foi observada após outras pandemias. Como sobrevivente, ele ofereceu como sua própria observação que os sobreviventes adquiriam imunidade, a primeira atestada (escrita) observação desse fena´meno. Foi uma praga absolutamente catastra³fica, com um enorme número de mortos; a doença precisa não éclaramente identifica¡vel. Podemos aprender alguma coisa com a conta dele?

"A taxa de mortalidade era muito maior, éclaro, do que nossa atual pandemia: dos 4.000 soldados atenienses que navegaram para o norte da Granãcia, 1.050 foram perdidos em 40 dias"


A 'praga ateniense' não era apenas ateniense, embora tenhamos o relato de seu impacto apenas em Atenas. Tambanãm atingiu o Egito e grande parte do territa³rio do rei persa, segundo Tuca­dides, e chegou a Atenas pelo Pireu e pelo norte do mar Egeu. A taxa de mortalidade foi muito maior, éclaro, do que a nossa atual pandemia: dos 4.000 soldados atenienses que navegaram para o norte da Granãcia, 1.050 foram perdidos em 40 dias.

Tuca­dides fala dos sintomas de febre alta, inflamação, espirros, va´mitos e espasmos e sede insuporta¡vel, com pessoas se jogando em tanques de chuva, outras se recuperando, mas perdendo extremidades e atémesmo a visão ou a memória. Ele descreve os agonizantes reunidos em torno de poa§os e montes de mortos nas ruas e aténos templos. Tuca­dides falou por experiência pessoal.

Existem aspectos da praga ateniense que tocam nossa própria experiência atual, e outros que Tuca­dides, como estudante da natureza humana, levaram as gerações futuras a ponderar - e a procurar novamente. Primeiro, não havia cura: o que funcionou para alguns falhou para outros, e os médicos não puderam ajudar.

Tuca­dides refere-se de maneira um tanto a¡cida ao tratamento por regime (dieta etc.), que era o novo manãtodo hipocra¡tico da anãpoca: não teve efeito e os médicos morreram com mais frequência do que seus pacientes. Segundo, foi agravada pelas condições aglomeradas de Atenas e pelos "lugares mais populosos", como Tuca­dides apontou cuidadosamente.

O lider estadista Panãricles havia convencido os atenienses no ini­cio da guerra a evacuar o campo para dentro dos muros de Atenas, e não se aventurar a combater o exanãrcito invasor; Ironicamente, sua determinação em guerra com Esparta, mas não em terras, tornou a praga mais destrutiva. Além disso, foi totalmente inesperado. Mesmo Panãricles, elogiado pela sabedoria e prudaªncia, não podia prever isso, e ele exortou os atenienses a sua postura de linha dura para proteger o impanãrio ateniense, no auge de sua confiana§a. A praga não aceitava pessoas - ricos e pobres morreram. O pra³prio Panãricles morreu. Os soldados hoplitas (bastante abastados) morreram e infectaram outros. Tuca­dides teve o cuidado de deixar claro, contra a teoria médica hipocra¡tica, que isso era infecção e tinha pouco a ver com o modo de vida, os cuidados médicos ou o humor;

"Existem aspectos da praga ateniense que tocam nossa própria experiência atual ... Primeiro, não havia cura: o que funcionou para alguns falhou para outros e os médicos não puderam ajudar"


 Tuca­dides ofereceu uma visão totalmente secular da praga. Sua causa era terrivelmente desconhecida: ele deixaria especulações sobre suas causas para os outros, "se as causas puderem ser consideradas adequadas para tal agitação". Sua natureza era "além dos logotipos" (além da descrição ou do entendimento). Muitos gregos, no entanto, teriam acreditado que foi o deus Apolo quem enviou a praga como punição, e oferecendo uma descrição cienta­fica em larga escala dos sintomas e do curso da doena§a, como nos novos manãtodos hipa³cratas de observação objetiva, Tuca­dides estava dizendo que isso era passa­vel de investigação e observação humana e da nova ciência da medicina (ele diz que não havia cura, mas talvez alguém pudesse esperar por uma). Sua aªnfase estava nessa descrição detalhada e nos efeitos sociais e morais.

"Tuca­dides ofereceu uma visão totalmente secular da praga. Sua causa era terrivelmente desconhecida ... 'se as causas podem ser consideradas adequadas para tal agitação'. Sua natureza era "além dos logotipos" (além da descrição ou do entendimento)". 


Pois ele enfatiza primeiro que o elemento mais perigoso era o desespero ou desa¢nimo (athumia), que atingia sempre que alguém se sentia enjoado, enfraquecendo seu poder de resistência. Ele enfatiza que aqueles que tentaram cuidar dos doentes adoeceram, enquanto os que ficaram sozinhos morreram de negligaªncia.

Tuca­dides traz a corrosão da ordem social e dos valores morais quando as pessoas abandonam as formalidades apropriadas para o enterro. Houve o ini­cio da "anomia", literalmente "ilegalidade" ou despreocupação com os costumes e a tradição. Essa passagem teve profunda influaªncia nas descrições posteriores da praga: "os homens ousaram fazer o que formalmente haviam feito em segredo", vendo o mesmo desastre atingindo todos da mesma forma ", os de boa sorte morrendo repentinamente e os que nada tomavam suas posses".

Corpos e posses eram igualmente efaªmeros e, portanto, os homens se divertiam: "nem o medo dos deuses nem a lei humana impediam as pessoas", ninguanãm temia a possibilidade de vir a  justia§a, pois provavelmente não viveriam para vaª-la. E assim, nessas passagens mais sombrias, Tuca­dides recalibra os debates contempora¢neos sobre a natureza da crena§a religiosa e o propa³sito da punição para rastrear o ini­cio do decla­nio da ordem social.

"Nesta passagem mais sombria, Tuca­dides recalibra os debates contempora¢neos sobre a natureza da crena§a religiosa e o propa³sito da punição para rastrear o ini­cio do decla­nio da ordem social".


Deve-se enfatizar o quanto extraordinariamente original essa análise era na anãpoca: nenhum escritor tentou analisar o colapso das normas sociais dessa maneira. a‰ um quadro tão intransigente que alguns estudiosos acham que deve ser um pouco exagerado, mas que nega o valor da astuta testemunha ocular. Lembramos que isso ocorreu no auge da prosperidade e confianção atenienses: a era dos templos da Acra³pole e o fermento intelectual visível na traganãdia, na comédia, na filosofia e na democracia radical ateniense. Nem tudo desmoronou, embora tenha havido um efeito imediato da desmoralização aguda, enquanto os efeitos a longo prazo podem ser mais difa­ceis de calibrar - o que Tuca­dides viu como um mal-estar a longo prazo e perda de integridade.

O contraste com a nossa própria experiência égritante. O Coronava­rus criou um vasto reservata³rio de sacrifa­cio individual por outros, respeito maºtuo e responsabilidade pelo bem maior (alguns, sem daºvida, aproveitando-se também). Mas dois pontos se destacam. Mesmo na descrição escuro Tuca­dides, houve a humanidade: ele não dizer que os médicos tentaram tendem a doente (são eles também morreu - como agora); ele fazdiga que amigos e familiares tentaram cuidar um do outro (apenas eles morreram). De fato, em um raio de esperana§a, ele explica que as pessoas foram melhor atendidas e aplaudidas por aqueles que tiveram a praga e sobreviveram, pois 'sabiam de antema£o' e não tinham medo, e de fato os sobreviventes alimentavam a 'esperana§a vazia' de que nunca novamente adoece. Portanto, havia inúmeros ajudantes que se sacrificam e se compadecem, e eles são foram prejudicados pela própria doena§a. Ele sugere, talvez, que pelo menos se vocêsouber com antecedaªncia, talvez não seja tão insuporta¡vel na próxima vez.

"Nãohouve resposta do Estado, nenhum sistema de saúde, nenhum conhecimento ou pola­tica de saúde pública: a democracia ateniense era sofisticada, mas na questãoda praga, essa era uma resposta do tipo faz vocêmesmo ..."


E, finalmente, não houve resposta do Estado, nem sistema de saúde, nem conhecimento ou pola­tica de saúde pública: a democracia ateniense era sofisticada, mas, no que se refere a  praga, essa era uma resposta do tipo faz vocêmesmo, inteiramente privada. Tanto quanto sabemos, a única resposta pública pública por parte dos atenienses foi purificar a ilha sagrada de Delos e introduzir o culto ao deus curador Asclanãpio.

"Foi atravanãs de uma observação cuidadosa que Tuca­dides deduziu a operação do que chamamos de "imunidade adquirida"


Foi atravanãs de uma observação cuidadosa que Tuca­dides deduziu a operação do que chamamos de "imunidade adquirida", e ele certamente estava oferecendo uma teoria rival a  ciência nascente da medicina em torno de Hipa³crates.

A outra lição duradoura desse historiador que desejava que os leitores interpretassem o futuro por meio de um conhecimento preciso do passado era sobre a natureza humana: as reações dos seres humanos diante da cata¡strofe e da morte inexplica¡vel e os efeitos mais amplos nos valores sociais , moralidade e andaimes da justia§a. Ele teve o cuidado de dizer mais tarde que a própria guerra também tinha efeitos corrosivos, mas isso era humanamente artificial e, de certa forma, evita¡vel; a praga foi completamente inesperada e uma força da natureza. Assim, no final, ele nos ensina a esperarmudanças profundas noníveldas reações dos indivíduos e valores sociais mais amplos diante de uma grande revolta; e nonívelestadual, esperar o inesperado - e esperar um bom governo quando for atingido. Os atenienses continuaram a guerra de qualquer maneira.

 

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