Humanidades

Na áfrica do Sul, cultura foi um importante mecanismo de combate ao Apartheid
O trabalho afasta-se da luta partida¡ria — encabea§ada por Nelson Mandela — e revela a resistência por meio da cultura, representada na pesquisa pela revista The African Drum.
Por Beatriz Azevedo - 17/11/2020


Reprodução

O Apartheid, pola­tica de segregação imposta pela população branca da áfrica do Sul entre os anos de 1948 até1994, teve como principal figura de resistência Nelson Mandela, que foi forte opositor do regime. A pesquisa de doutorado de Naºbia Aguilar Ribeiro busca aprofundar-se na complexidade da resistência por parte da população negra. O trabalho afasta-se da luta partida¡ria — encabea§ada por Nelson Mandela — e revela a resistência por meio da cultura, representada na pesquisa pela revista The African Drum. 

O trabalho A música como mecanismo de resistência no Apartheid analisa os dez primeiros anos da pola­tica de segregação institucionalizada. Orientada pela professora Maria Cristina Cortez Wissenbach, a pesquisa éda Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e conta com o apoio da Coordenação de Aperfeia§oamento de Pessoal de Na­vel Superior (Capes). A pesquisa de doutorado ainda estãoem andamento. 

“Na³s precisamos pensar em outros agentes hista³ricos. Apesar da importanta­ssima luta pola­tica, existiam outros sujeitos lutando no cotidiano contra as formas de repressão. a‰ isso que a revista mostra”, diz Naºbia ao Jornal da USP. A The African Drum — ou apenas Drum — era composta de jornalistas, editores e fota³grafos negros. As publicações começam em mara§o de 1951 atéo ano de 1984. Entretanto, as matérias cra­ticas ao regime foram publicadas entre os anos de 1951 a 1958. Ela comea§a a valorizar uma estanãtica negra indo na contrama£o do discurso predominante que dizia que essa estanãtica não deveria ser valorizada.

“A revista me ajudou a entender que o Apartheid foi um sistema dina¢mico aperfeia§oado ao longo do tempo e émuito mais complexo do que as definições rápidas que encontramos. As dina¢micas são muito mais fluidas, existem muito mais histórias atémesmo quando a gente pensa no que seria uma resistência e quem seriam os opositores do regime”, explica Naºbia.

A revista

A revista Drum nasce na Cidade do Cabo, na áfrica do Sul, como um projeto de brancos que intencionava publicar textos sobre as populações tradicionais da regia£o, falar sobre rituais, casamentos, etc. No mesmo ano de sua fundação a revista comea§a a atuar  em Johannesburgo (áfrica do Sul). No século 19 foram descobertos minanãrios em Johannesburgo, o que culmina na chegada de grande número de pessoas, de outras cidades ou atépaa­ses, a  cidade. Isso resulta no contato entre pessoas de diferentes nacionalidades, com diferentes costumes e gera uma dina¢mica cultural muito rica na regia£o. 

Quando a revista chega a Johannesburgo, se depara com uma vida urbana e cultural muito diferente da Cidade do Cabo e passa a retratar isso. Comea§a a ter espaço para a cultura urbana. E éa partir desses acontecimentos que ela comea§a a apresentar o vianãs da resistência.

A Drum usava a cultura para resistir ao Apartheid e dentro disso havia inda­cios cra­ticos de vianãs pola­tico. Um exemplo que a pesquisadora traz éo de Miriam Makeba, cantora sul-africana que gravou a música Khawuleza, sobre as batidas policiais na casa de mulheres negras. Na anãpoca, era comum que homens trabalhassem fora e que as mulheres ficassem em casa e, como fonte de renda extra, elas produziam cerveja artesanal, o que era ilegal. Os policiais faziam buscas violentas em suas casas. A casa da ma£e de Miriam foi alvo de uma dessas buscas.

A representação da opressão estãona revista porque, no momento em que a música cantada por Miriam écolocada nas pa¡ginas, as pessoas se identificam. “Em um regime de opressão as experiências coletivas são comuns. Nãotem como as autoridades proibirem uma pessoa de cantar”, conta Naºbia. 

Miriam cantava músicas tradicionais na linguagem usada pela população negra, assim como muitos outros artistas que estrelaram as edições. As pessoas encontravam naquelas pa¡ginas acontecimentos presentes em suas vidas. A violência policial também tinha destaque, os repa³rteres que passavam por isso encontravam espaço para relatar suas experiências. “Eram pessoas negras sofrendo a opressão e falando sobre ela direta e indiretamente”, explica a pesquisadora.

As edições chegavam a mais de 40 mil ca³pias mensais com 50 pa¡ginas, em média. a‰ difa­cil mapear quem eram os leitores. O que se sabe éque a revista representava a população negra e teve uma demanda crescente. Então o pra³prio crescimento do número de edições indica quem consumia a revista.

A repressão

O vianãs crítico permaneceu na linha editorial da revista de 1951 até1958. Com a pesquisa ainda em andamento, Naºbia afirma que ainda não conseguiu identificar como a revista conseguiu manter o conteaºdo pola­tico por tantos anos em um sistema de repressão. “A grande pergunta écomo o sistema permitia que existisse um espaço de cra­tica por todo esse tempo.”

No ano de 1958, muitos jornalistas comea§am a ser perseguidos e um deles éassassinado. A opressão comea§a a ser sentida entre os responsa¡veis pelas publicações e, então, o modo de trabalhar as matérias muda e o vianãs pola­tico de resistência desaparece. Os assuntos das matérias comea§am a ser moda, esporte, vida doméstica e afins.

Complexidade das dina¢micas sociais

“O Apartheid foi um sistema muito complexo e não foi um momento fechado, foi se aperfeia§oando ao longo do tempo, com as leis e comportamentos”, ressalta a pesquisadora. Ela diz ainda que pensar nessas dina¢micas épossibilitar que novos sujeitos hista³ricos ativos na resistência aparea§am. “Se olharmos apenas para a luta pola­tico-partida¡ria acabamos apagando sujeitos que lutaram no cotidiano e esquecemos de grupos importantes.”

A revista canalizou os processos de endurecimento da segregação e como os indivíduos reagiram a isso no dia a dia e permitiu o contato com outras narrativas sobre o momento hista³rico. Assim épossí­vel olhar para o Apartheid como algo muito mais complexo do que apenas um regime de segregação entre brancos e negros. 

A pesquisa lana§a olhar para as pessoas que viviam nesse momento e como elas viviam. “Quando pensamos em um sistema tão abrangente, existem as caracteri­sticas gerais mas temos acontecimentos mais particulares. Por exemplo, a experiência de homens pode ter sido diferente das mulheres, ou as de adultos diferentes das criana§as e assim por diante”, conclui Naºbia.

Mais informações: e-mail nubiaaguilar@gmail.com

 

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