Humanidades

Pesquisa sugere que YouTube contribui para desconfianção sobre vacinas
O estudo da Unicamp, repercutido pela revista Science, evidencia a necessidade de monitoramento de desinformaa§aµes na plataforma em idiomas diferentes do inglaªs
Por Eliane da Fonseca Daré - 22/11/2020


Reprodução

No ini­cio de 2019, a Organização Mundial da Saúde já considerava a hesitação vacinal uma das maiores ameaa§as a  saúde global. Com a pandemia do Coronava­rus e com a fase final de testes de vacinas, a circulação de va­deos com desinformação no YouTube e atravanãs de redes sociais como o WhatsApp tem preocupado ainda mais as autoridades mundiais. Um artigo publicado no final de outubro na revista Frontiers revela que, apesar de declarações de comprometimento do YouTube em relação ao combate a desinformações perigosas, aquelas relacionadas a vacinas continuam sendo disseminadas em va­deos em portuguaªs, gerando lucro para produtores de conteaºdo e para a própria plataforma. Devido aos riscos que esse problema oferece para a aceitação de uma futura vacina contra a Covid-19 e, consequentemente, para o controle da pandemia, o estudo gerou repercussão na revista Science. O artigo faz parte da pesquisa de Dayane Machado, aluna de doutorado do Departamento de Pola­tica Cienta­fica e Tecnola³gica (DPCT) do Instituto de Geociências da Unicamp, orientada pela docente Leda Gitahy. Tambanãm éassinado por Alexandre Fioravante de Siqueira, da Universidade da Califa³rnia, em Berkeley, nos Estados Unidos.

De acordo com Dayane, o estudo visava verificar se o YouTube estaria combatendo as desinformações sobre vacinas conforme vinha declarando nos últimos meses. A pa³s-graduanda pesquisa o movimento antivacinação em seu doutorado e decidiu analisar essa rede por dois motivos: essa éuma plataforma que ainda recebe pouca atenção por parte de pesquisadores do campo de estudos da desinformação; e a empresa tem sido alvo de uma sanãrie de esca¢ndalos devido ao seu sistema de recomendação, que privilegia conteaºdos extremos e negacionistas, como materiais de extrema direita, terraplanismo, teorias da conspiração, dentre outros. Dayane, Leda e Alexandre desenvolveram uma metodologia que tentasse simular o comportamento de um usua¡rio normal navegando na plataforma para identificar o que o paºblico possivelmente encontraria sobre o tema. Para especificar quais desses va­deos continham desinformação, foram criadas seis categorias principais de análise: segurança, efetividade, saúde alternativa, moralidade, teorias da conspiração e outros (como liberdade de escolha e apelo emocional).

Dayene : Empresa tem sido alvo de uma sanãrie de esca¢ndalos devido ao seu sistema
de recomendação, que privilegia conteaºdos extremos e negacionistas
Pa³s-graduanda Dayane Machado: Empresa tem sido alvo de uma sanãrie de esca¢ndalos
devido ao seu sistema de recomendação, que privilegia
conteaºdos extremos e negacionistas

A amostra inicial continha 158 va­deos. Desse total, os estudiosos identificaram 52 va­deos em 20 canais com desinformação sobre vacinas. A coleta dos dados foi feita por Alexandre, que integra o Grupo de Estudos da Desinformação em Redes Sociais (EDReS) da Unicamp, do qual a professora Leda éuma das coordenadoras. “Os va­deos foram salvos em um banco de dados, pois alguns deles podem ser derrubados da rede por conta de seu conteaºdo. Analisamos em cada um os seis critanãrios dos va­deos e das propagandas neles inseridas, os chamados anunciantes”, conta Leda. O resultado do estudo sugere que o YouTube não tem feito o suficiente para combater a circulação de desinformações sobre vacinas e de certa forma incentiva a produção desse tipo de material atravanãs da monetização de conteaºdo. “Apesar da plataforma já ter se posicionado sobre o combate a conteaºdos danosos, va­deos com desinformações sobre vacinas continuam sendo divulgados em portuguaªs porque háinteresses em não retira¡-los”, afirma a docente. Leda Gitahy lembra ainda que o modelo de nega³cio das bigtechs émovido por cliques e por propagandas. Um relatório recente do Centro de Combate ao a“dio Digital (CCDH) estima, por exemplo, que Facebook, Instagram, Twitter e YouTube lucram até1 bilha£o de da³lares por ano graças ao movimento antivacinação.

De acordo com Dayane, que éa primeira autora do artigo, “as principais desinformações encontradas na análise coincidem com as mais populares entre as comunidades de oposição a vacinas: afirmações de que os imunizantes contem ingredientes perigosos; defesa da liberdade de escolha e incentivo a  ‘pesquisa independente’; promoção de servia§os de saúde alternativa; o mito de que vacinas causam doena§as; teorias da conspiração e a alegação de que causam efeitos colaterais severos”. O artigo revela também uma parceria entre os canais que promovem servia§os de saúde alternativa. “Essa colaboração ocorre atravanãs da reprodução de va­deos de canais associados ou atravanãs do apoio a criadores de conteaºdo que fazem parte da rede. Os canais espalham desconfianção em relação a instituições tradicionais, como organizações de saúde pública, médicos, cientistas e imprensa para promover a si mesmos como fontes confia¡veis e lucrar com a venda de servia§os de saúde alternativa”, destaca Dayane. Esses canais usam diferentes estratanãgias financeiras para obterem ganhos, como a venda de cursos, livros e tratamentos alternativos, solicitando doações por meio de plataformas de arrecadação e depa³sitos em contas banca¡rias e atémesmo de grandes empresas, por meio de anaºncios no YouTube.

Na análise, os pesquisadores identificaram anaºncios de 39 marcas em 13 va­deos. Entre elas, estãomarcas globais como Mobil, Kia, Fiat, Philips, Spotify, Eucerin (Beiersdorf) e Buscopan (Boehringer Ingelheim), além de anaºncios dos governos da andia e do Japa£o. “Apesar de o Programa de Parceiros do YouTube — serviço que permite a monetização de conteaºdo — ser uma fonte de renda importante, os canais da amostra usam estratanãgias econa´micas variadas para garantir o lucro mesmo que seu conteaºdo seja identificado como impra³prio e desmonetizado pela plataforma”, diz Dayane. Segundo Leda, “apesar de o YouTube dizer que controla o conteaºdo, em portuguaªs isso não ocorre porque o moderador algora­tmico não identifica quando os conteaºdos de desinformação adaptam o tema. As grafias são alteradas propositalmente para não passarem pelo filtro da rede, que éautoma¡tica”.



Pandemia

“A circulação de desinformações que atacam a segurança e a eficácia das vacinas e questionam a legitimidade das instituições oficiais associadas a elas éextremamente preocupante nesse contexto de pandemia. E éespecialmente problema¡tico que os produtores de conteaºdo associados a esse tipo de material estejam sendo premiados e incentivados a criar esse tipo de va­deo (via sistema de monetização do pra³prio YouTube e atravanãs de outros recursos que esses produtores vão adotando para assegurar os lucros)”, preocupa-se Dayane. Segundo a aluna do DPCT/IG, “ha¡ estudos mostrando que a exposição excessiva a desinformações — e teorias da conspiração — sobre vacinas pode influenciar, por exemplo, na tomada de decisão das pessoas de não se vacinarem. Então, épossí­vel dizer que essa crise de desinformação pode interferir na percepção da população em relação a uma vacina contra Covid-19 e aténo imagina¡rio das vacinas de forma geral”. Nãohácomo prever, no entanto, os na­veis de aceitação quando a vacina contra a Covid-19 estiver dispona­vel. “a‰ por isso que uma campanha que buscasse compreender e responder a s ansiedades e daºvidas da população sobre esse tema seria essencial. a‰ o tipo de estratanãgia que já deveria estar sendo colocada em prática pelos órgãos oficiais hálguns meses”, diz a pa³s-graduanda.

Com a pandemia, os movimentos antivacinação aproveitaram a onda de ansiedade e de incerteza que a população vive para alcana§ar paºblicos diversos. Com o WhatsApp, especialmente, a difusão de va­deos com conteaºdos de desinformação passou a ser muita mais rápida. “Essa dina¢mica de disseminação já era esperada entre os estudiosos da área. Já a postura mais recente do presidente da República de mencionar supostas medidas de obrigatoriedade relacionadas a  vacinação contra a Covid-19 parece parte de uma estratanãgia para manter a confusão e mais uma vez espalhar desconfianção em relação a s instituições e aos processos - aqueles relacionados ao desenvolvimento de vacinas e a  produção cienta­fica de forma geral. Com isso, ele ao mesmo tempo sinaliza uma certa validação das comunidades que já se opaµem a vacinas, ajuda a criar polaªmicas em relação a questões secunda¡rias e consegue atacar atores que vem sendo considerados inimigos do governo federal”, destaca Dayane.

De acordo com a pa³s-graduanda, o pra³ximo passo da pesquisa éinvestigar o papel do YouTube na disseminação de desinformações sobre a Covid-19. “Queremos entender como e se asmudanças nas políticas de uso da plataforma vão sendo implementadas no Brasil, além de identificar quem estãopor trás desse tipo de conteaºdo”, diz.


Professora Leda Gitahy: As grafias são alteradas propositalmente para não passarem
pelo filtro da rede, que éautoma¡tica

Science

Para Leda Gitahy, “o artigo publicado na Frontiers éoriginal, foi bem redigido e o conteaºdo éde fronteira. Diversos outros trabalhos com as mesmas caracteri­sticas são feitos no DPCT, mas não tem o mesmo impacto num momento como esse. Tudo isso gerou o interesse da Science”. A divulgação do trabalho na revista obrigou a um posicionamento do YouTube sobre o artigo. “Em geral, grande parte dos trabalhos não recebe muita atenção da empresa. Então, esse aspecto já foi bastante satisfata³rio para o nosso grupo. Outro ponto interessante éque o trabalho acaba sendo divulgado para paºblicos mais diversos e isso traz benefa­cios em termos de divulgação cienta­fica e também em termos de colaboração com outras instituições epaíses”, aponta Dayane. O estudo da Unicamp faz parte, justamente, de um conjunto de artigos publicados na Frontier sobre os novos rumos na comunicação cienta­fica e ambiental.

 

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