Humanidades

Cadernos do IEB trazem textos que discutem o Brasil contempora¢neo
Publicaça£o do Instituto de Estudos Brasileiros da USP reaºne contribuia§aµes de semina¡rio realizado em 2018
Por Luiz Prado - 07/01/2021


Detalhe da capa da nova edição dos Cadernos do IEB osFoto: Reprodução

Uma edição dedicada a passar em revista trabalhos que investigam o Brasil, desde o final do século 19 atéa atualidade, em suas diversas facetas. Esse éo número 13 dos Cadernos do IEB, publicação do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. Intitulada Pesquisa e Dia¡logo sobre o Brasil Contempora¢neo, a publicação reaºne 14 artigos que reproduzem trabalhos apresentados no simpa³sio de mesmo nome realizado entre 7 e 9 de novembro de 2018 no pra³prio IEB.

“Ao preparar estes textos para a sanãrie Cadernos do IEB, os organizadores reforçam impressaµes que permearam os dia¡logos em torno das pesquisas apresentadas em novembro de 2018, sentimentos pertinentes ao projeto de Sanãrgio Buarque de Holanda ao fundar a instituição”, escrevem na apresentação os organizadores da revista, professora Fla¡via Camargo Toni, vice-diretora do IEB, Danilo avila, doutorando em Hista³ria pela Universidade Estadual Paulista Jaºlio de Mesquita Filho (Unesp), e Raphael Guilherme de Carvalho, pa³s-doutorando pelo IEB. “Os dia¡logos são ricos e produtivos, onde a diversidade de temas e disciplinas encontra Espaços fanãrteis para auxiliar na democratização da universidade e dos modos de pensar e participar da vida pública brasileira”, salienta o trio.

avila assina um dos artigos mais instigantes da revista, Perseguição Burocra¡tica e Paranoia na Maºsica de Concerto Durante a Ditadura Militar. No estudo, o autor analisa um ofa­cio da Divisão de Segurança e Informação do Ministanãrio da Educação, datado de setembro de 1969 e assinado por sua representante, Anna Edy Hecker Abreu de Andrade. O documento registra a paranoia do regime militar direcionada, nesse caso em particular, para os artistas da música de concerto, como o tí­tulo do trabalho explicita.

“Uma dimensão moral e uma dimensão pola­tica conviveram na perseguição pola­tica e na censura praticadas no Brasil durante o período da ditadura militar”, escreve o pesquisador. “A música de concerto, no entanto, impunha alguns obsta¡culos para sua avaliação pola­tica e moral, uma vez que écomplicado inferir um conteaºdo supostamente amoral a partir de informações puramente musicais.”


O historiador, escritor e professor da USP, Sanãrgio Buarque de Holanda
 Foto: Reprodução

Atravanãs do documento analisado osque inclui uma a¡rvore geneala³gica e um mapa da “organização comunista de maºsicos no Brasil” -, avila procura o modo de agir dos mecanismos de perseguição pola­tica da burocracia estatal. O ofa­cio traz momentos memora¡veis, como a apresentação de Ma¡rio de Andrade como “o primeiro lider da música no Brasil, comandado e orientado pela Unia£o Sovianãtica com a finalidade de fazer a penetração do comunismo no Brasil por intermanãdio da arte” e também a caracterização de Heitor e Arminda Villa-Lobos, Lorenzo e Helena Fernandez, Camargo, Edoardo e Francesco Guarnieri como “a primeira geração de maºsicos comunistas tutelados no Brasil, praticamente todos os compositores enquadrados no que a musicologia e a historiografia denominaram, grosseiramente, como ‘modernismo nacionalista’”.

Para avila, o teor do ofa­cio evoca os escritos do socia³logo alema£o Theodor Adorno (1903-1969) sobre a paranoia e manifesta uma prática que, infelizmente, volta a ocupar a grama¡tica pola­tica. Um processo pra³ximo ao que Adorno chamou de semicultura, que recorre a fa³rmulas que convaªm ora para justificar desgraças acontecidas, ora para profetizar cata¡strofes. O estilo paranoico tem toda a informação de que precisa e constra³i evidaªncias como estratanãgias contra seus adversa¡rios.

“O estilo paranoico recorre a diversos lugares-comuns, como os presentes na narrativa de Anna Edy Hecker Abreu de Andrade, por exemplo, o fato de ter um inimigo que estãosempre na iminaªncia do ataque, contra o qual perdemos tempo se não nos preparamos para lutar, visto que: controla a ma­dia; direciona nota­cias falsas; possui fundos financeiros ilimitados; tem segredos para exercer grande influaªncia sobre pessoas sem instrução, bem como se ramifica na administração da educação e da cultura”, explica o pesquisador.

Ma¡rio, missivas e mala¡ria

Em matérias menos estapafaºrdias do que aquelas que o acusam de integrar os quadros da Unia£o Sovianãtica, Ma¡rio de Andrade volta a ocupar a revista em artigos nos quais assume o protagonismo. Um deles envereda por sua relação epistolar com o jornalista e pola­tico fluminense Carlos Lacerda (1914-1977) durante as décadas de 1930 e 1940.

Intitulado Literatura e Engajamento nas Cartas de Ma¡rio de Andrade e Carlos Lacerda, o texto assinado pelo pa³s-doutorando do IEB Rodrigo Jorge Ribeiro Neves segue das primeiras correspondaªncias trocadas, quando o então jovem Lacerda se dirigia ao modernista em cores formais e falando em nome da Casa do Estudante do Brasil, atéa consolidação da relação, quando suas cra­ticas ao trabalho poanãtico de Ma¡rio eram digeridas por este em cartas agridoces.

“Um tema presente em quase todas as cartas de Lacerda a Ma¡rio éa pola­tica, especialmente como campo de tensão em que se inserem a criação litera¡ria e o papel do intelectual paºblico”, aponta Neves no texto. “A poesia, a literatura, a misanãria, a pola­tica e a guerra nas cartas de Ma¡rio de Andrade e Carlos Lacerda não são apenas temas que atravessam o dia¡logo dos dois missivistas, mas categorias em que se inscrevem a trajeta³ria e a formação de cada um, com seus desvios, dissensos e tentativas, ainda que, a s vezes, frustradas, de alguma conciliação.”


O escritor modernista Ma¡rio de Andrade osFoto: Reprodução

Por sua vez, em Filosofia da Maleita: o Imagina¡rio Amaza´nico de Ma¡rio de Andrade, o também pa³s-doutorando do IEB Caion Meneguello Natal salta sobre artigos de jornal e trechos do livro O Turista Aprendiz, que Ma¡rio dedica a  condição nortista, especificamente aquela associada a  mala¡ria e seus contrapontos com a vida das metra³poles do Sul do Paa­s.

Ma¡rio esteve na Regia£o Norte entre maio e agosto de 1927, viajando no vapor Pedro I e penetrando os rios Madeira, Solimaµes e Amazonas, na companhia abastada de Ola­via Guedes Penteado, ostensiva patrocinadora dos modernistas, Margarida Guedes Penteado, sobrinha de Ola­via, e Dulce do Amaral Pinto, filha de Tarsila do Amaral. A trupe visitou locais como Belanãm, Santaranãm, Porto Velho, a“bidos, Manaus e Sa£o Lua­s, indo atéIquitos, no Peru. Ma¡rio registrou o cotidiano e as tradições por onde passava, compondo um dia¡rio de viagem que integra o volume de O Turista Aprendiz. De suas observações, a mala¡ria osou maleita osmereceu grandes reflexões.

“Aqui, maleita designa uma disposição ana­mica diversa daquela encontrada no cotidiano das metra³poles modernas”, resume Natal. “Maleita éo signo de uma indiferença em relação a desejos, conquistas e necessidades materiais; avesso a s grandes tarefas e ambições engendradas pela sociedade industrial. Os maleiteiros a que Ma¡rio se refere não são necessariamente pessoas enfermas, mas desapegadas. O autor inverte, pois, a valoração da doena§a: a maleita constitui, em sua perspectiva, a condição de uma libertação.”

Natal aponta que a imagem da preguia§a advinda da maleita passa a simbolizar, para Ma¡rio, o contra¡rio da civilização ocidental representada pelo Sul do Paa­s: o elemento amaza´nico se torna contraponto ao desenvolvimento econa´mico de Sa£o Paulo. “Na perspectiva marioandradina, surgem, então, doispaíses: um ao sul, regido pelas normas do progresso material, e outro ao norte, quase completamente imerso na natureza selvagem.”

Os Cadernos do IEB ainda trazem Ma¡rio de Andrade em mais dois artigos: Manuscrito do Curso de Filosofia e Hista³ria da Arte de Ma¡rio de Andrade: Perspectivas de Estudo, de Luciana Barongeno, e Ma¡rio de Andrade, Moa§ambique e Santa Cruz, de Enrique Valarelli Menezes.

A nova condição do rap

Outro destaque da edição éo artigo Rap e Indústria Cultural: Notas de Pesquisa, da professora de Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL) Daniela Vieira dos Santos. Aqui, a autora deita o olhar sobre um tema contempora¢neo que batiza como nova condição do rap.

“Se antes sina´nimo de ‘mau gosto’, ‘violência’ e marginalização, além de um importante sinalizador de classe social, o rap passa a ser ouvido, no tempo presente, por uma parcela de jovens universita¡rios de classe média”, explica Daniela. “Mas essa nova audiaªncia, parece-me se associa a  inclusão nas universidades públicas brasileiras, nos últimos 15 anos, de negros, mulheres e filhos da classe trabalhadora. As transformações no cena¡rio do rap vinculam-se não apenas com o desenvolvimento da tecnologia, em especial com o advento da internet, mas, em certa medida, com asmudanças advindas com as políticas de inclusão social iniciadas na gestãodo presidente Luiz Ina¡cio Lula da Silva.”

No tra¢nsito do texto, Daniela apresenta os resultados preliminares da pesquisa, que procura entender as origens dessa nova condição do rap e seus desdobramentos. A autora aborda o empreendedorismo que marca a atual postura dos rappers, as novas condições de produção e circulação das músicas osagora inseridas em redes sociais e acompanhadas de videoclipes ose a mudança tanto nas tema¡ticas evocadas nas letras como na recepção do paºblico.

“A percepção de parte das ambiguidades que envolve asmudanças do lugar social e simba³lico do rap, qual seja, forte combate ao racismo antinegro e pouca cra­tica anticapitalista, encontra lugar no ethos de racionalidade que envolve a subjetividade neoliberal; isso torna o problema de pesquisa mais amplo e complexo”, proclama Daniela. “Compreender a estruturação do capitalismo levando em conta o impacto da subjetividade neoliberal permite entender, por exemplo, as estratanãgias de carreira dos artistas. a‰ justamente essa nova condição que contribuiu para a ampliação da audiaªncia e, particularmente, a um status diferenciado do artista negro, advindo da periferia, no mercado de bens simba³licos. O na³ entre luta antirracista e leveza com relação a  cra­tica ao capitalismo traz consequaªncias importantes para refletir sobre a inserção do negro no mercado de bens simba³licos.”

Um Brasil de muitos temas

Ziguezagueando pela variedade de temas, a publicação também discute a memória do teatro musicado em Sa£o Paulo, no artigo de Virga­nia de Almeida Bessa, as contribuições do gea³grafo Milton Santos para o estudo de objetos editoriais, no texto de Luciana Salazar Salgado, e os rumores do fim da revista Klaxon nas cartas dos autores modernistas, por Ana Maria Formoso Cardoso e Silva.

Além do trabalho de Daniela, outros estudos relacionados a  música e seus correlatos aparecem em O Espeta¡culo Sonoro e Paºblico das “Machinas Falantes”, de Juliana Panãrez Gonza¡lez, e A Maºsica como Instrumento de Relações Internacionais: a Exposição Universal de Bruxelas de 1910 e o Ano do Brasil na Frana§a de 2005, de Camila Fresca.

Fecham a publicação as contribuições Estudos Brasileiros nos Projetos de Hista³ria da Humanidade da Unesco em Meados do Sanãculo 20, de Raphael Guilherme de Carvalho, O Legado Tea³rico de Waldisa Raºssio Camargo Guarnieri para a Museologia Internacional, de Viviane Panelli Sarraf, e A Brasilidade na Saúde: Ciências e Terapaªuticas Espirituais, de Tania Cristina de Oliveira Valente.

O número 13 dos Cadernos do IEB pode ser acessado gratuitamente em http://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/551

 

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