Humanidades

Pesquisa investiga sofrimento psa­quico em tempos de capitalismo selvagem
A anorexia, depressão e cutting, por exemplo, são os nomes com que identificamos algumas das dores psa­quicas que temos vivido atualmente.
Por Ascom UFF/ MaisConhecer - 06/08/2019

Ha¡ muitas maneiras de acessar um tempo passado ou presente na história da humanidade, com suas formas de existir, de organizar a vida e se relacionar. Uma das chaves para conhecer cada um desses períodos éatravanãs dos modos de sofrimento que se produziram nele. A anorexia, depressão e cutting, por exemplo, são os nomes com que identificamos algumas das dores psa­quicas que temos vivido atualmente. Ao contra¡rio do que se pode imaginar, elas tem caracteri­sticas em comum e colocam em evidência o modo adoecido como temos nos relacionado em sociedade. 
Agência UEL

Buscando compreender esse cena¡rio, foi inaugurado, em 2011, o Laborata³rio de Investigação das Psicopatologias Contempora¢neas (Lapsicon), sob a coordenação da professora do Departamento de Psicologia da UFF de Volta Redonda, Claudia Henschel de Lima. De la¡ pra ca¡, o laboratório, que iniciou suas investigações em torno da psicopatologia do uso de drogas, tem expandido bastante a sua pesquisa na direção dos fena´menos clínicos contempora¢neos, numa tentativa de cuidar das formas de sofrimento que temos gerado com nosso modo de viver.

Segundo a psica³loga, que também supervisiona uma linha de esta¡gio no Servia§o de Psicologia Aplicada da UFF, associada a  pesquisa, “começou-se a receber nos últimos anos uma quantidade grande de demandas para tratamento da depressão em mulheres adultas principalmente, tratamento da anorexia, conduta autolesiva, uso de drogas e, mais recentemente, autismo”. De acordo com ela, “o SPA éuma espanãcie de laboratório no sentido de que ali temos como investigar na singularidade de cada caso quais as conjunturas de desencadeamento dessas psicopatologias e como podemos estabiliza¡-las ao longo do tempo”, explica.

"Ha¡ uma exigaªncia excessiva que o sujeito atribui a si pra³prio de estar sempre bem, sempre sauda¡vel, sempre conforme as normas sociais".

Claudia Henschel

O fio que costura todos esses sofrimentos anã, para Claudia, a forma contemporâneade organização social de cara¡ter neoliberal, que impacta diretamente o funcionamento subjetivo das pessoas: “O neoliberalismo tem esse traa§o que localiza no sujeito a responsabilidade completa pelo destino de sua vida. Com seu fundamento de valorização extrema do indiva­duo e quantificação de sua ação, estar bem numa determinada atividade depende única e exclusivamente do quanto vocêécapaz. Ha¡ uma exigaªncia excessiva que o sujeito atribui a si pra³prio de estar sempre bem, sempre sauda¡vel, sempre conforme as normas sociais”.

Um exemplo de como isso tem aparecido diz respeito ao sofrimento psa­quico estudantil, um dos eixos de investigação do Laborata³rio. Segundo a professora, “em 2016, começam a aparecer muitos alunos se candidatando a tratamento e todos tinham uma queixa de estarem com baixa­ssima concentração nos estudos, de não conseguir entender o que os professores falavam em aula, de olharem para o horizonte de suas vidas e não verem a possibilidade de avana§arem em nada. Tivemos algumas situações difa­ceis no campus e isso chamou a atenção dos meus bolsistas, que vieram me pedir a possibilidade de abrirmos vagas para tratamentos dessas situações dos estudantes. Muitos deles são extremamente preocupados com seu desempenho da universidade, para realizar o ideal que os pais projetaram neles”.

O excesso de exigaªncia também aparece, embora de forma distinta, nas prática s de autolesão do sujeito (cutting), quadro cada vez mais frequente nos consulta³rios e também no SPA. Claudia explica que a autolesão écomum no momento de passagem da infa¢ncia para a adolescaªncia: “nesse momento uma sanãrie de modificações estãoacontecendo no funcionamento subjetivo e na própria imagem corporal. O peso muda, a altura muda, os caracteres sexuais secunda¡rios aparecem e alteram a estanãtica do sujeito que a s vezes seis meses antes era uma criana§a. Muitas vezes se experimentam as exigaªncias do mundo como uma espanãcie de experiência de não pertencimento. A equação anã: ‘eu não me enquadro, sou culpado pelo mal que produzo em meus pais e se sou culpado, merea§o o castigo e então me corto’. O efeito dessa conduta éa de produzir uma dor física que supere a dor da culpa por fazer mal a seus pais”, ressalta.

A prática da autolesão também coloca em evidência outro aspecto comum na cla­nica da contemporaneidade, em que a forma como o indiva­duo ataca o seu corpo acaba por coloca¡-lo vulnera¡vel diante da morte: “o que éa anorexia se não a estetização da morte? O sujeito faz uma cadaverização de seu corpo. O que éo cutting se não a prática de ferir e vilipendiar o corpo? Trabalhamos com sujeitos que fazem uso de 12, 14, 15 pedras de crack por dia. Sabemos que no horizonte desses recursos osa  lâmina, a não comer nada, a  droga osexiste a morte. Clinicamente falando, a tema¡tica não éuma exceção, mas a regra. Todos os dias na cla­nica édia de prevenção do suica­dio”.

Para o mestrando em psicologia Thalles Cavalcanti Sampaio, que já participou do Lapsicon como volunta¡rio, monitor e também bolsista de iniciação cienta­fica, “um projeto como esse traz a  tona a importa¢ncia da universidade pública para a educação e a ciência Nãoésão a garantia de um ensino superior de qualidade, como a prova viva de que, no Brasil, a ciência édesenvolvida dentro das nossas universidades. Estar inserido no Lapsicon me deu a oportunidade de aprender o que éser um pesquisador hoje no Brasil, o que éuma carreira acadaªmica. O Lapsicon me fez querer ser professor, cientista e pesquisador”.

O estudante de psicologia Daniel Cavalcante, atualmente estagia¡rio do SPA e bolsista de iniciação cienta­fica do laboratório, engrossa o coro: “vejo que a universidade pública éo maior expoente nacional em produção cienta­fica e tecnologiica, como em nenhum outro ambiente. A UFF transforma não são a minha vida, como a de colegas meus e das pessoas que usufruem dos produtos e servia§os dela a  comunidade”, enfatiza.

Maria Stela Campos, também mestranda em psicologia com passagem pelo Lapsicon, tem uma vivaªncia parecida com a de Thalles e Daniel: “participar do Lapsicon permitiu que eu me reconhecesse como pesquisadora, o que em minha concepção ultrapassa a formação acadaªmica. Trata-se de um projeto que atravessa também minha vida pessoal”.

Para a coordenadora do laboratório, Thalles, Daniel e Maria não são simplesmente alunos: “eles são meus parceiros de pesquisa”. Segundo ela, ao contra¡rio do que muitos pensam, “a profissão do psica³logo éancorada em princa­pios cienta­ficos. O estudante não estãoali para fazer uma reprodução de saberes; isso ele já fez na escola. Ele estãoali para produzir conhecimento. A bolsa de iniciação cienta­fica éisso. A bolsa de extensão éisso. A bolsa de monitoria éisso. Essas são as ferramentas que a universidade oferece para a produção de cientistas. Chamo meus estudantes de cientistas em formação”.

Apaixonada pelo seu trabalho e pela psicologia, Claudia afirma não se ver fazendo outra coisa na vida: “se tem uma coisa pela qual não me arrependo éter insistido numa profissão que minha familia na anãpoca dizia que não iria dar certo. E eu disse: ‘vai dar certo’. Fiz a universidade num momento terra­vel dopaís que era prévio a  abertura pola­tica. Cursei o mestrado e o doutorado o tempo todo acreditando que era possí­vel. Acho que éisso o que transmito aos meus alunos, o ‘épossí­vel’. Eles, por sua vez, transmitem isso aos pacientes”, conclui.

 

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