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Comportamento paternal inanãdito entre aranhas édescrito em espanãcie existente no Brasil
Os machos da espanãcie protegem filhotes e ovos contra predadores mesmo sem saber se são realmente seus pais
Por André Julião - 13/04/2021


Foto: Rafael Rios Moura

Os machos de algumas espanãcies de aranhas costumam canibalizar os filhotes de concorrentes ou simplesmente abandonar a prole quando não podem ter certeza da paternidade. Mas, no caso da Manogea porracea, a praxe écuidar de quaisquer filhotes ou ootecas (conjuntos de ovos embrulhados em seda) que forem encontrados em teias caracteri­sticas da espanãcie.

Esse comportamento de cuidado paternal, inanãdito entre aranhas solita¡rias, foi observado na M. porracea pela primeira vez em 2016. Agora, os pesquisadores demonstraram que os machos da espanãcie protegem filhotes e ovos contra predadores mesmo sem saber se são realmente seus pais.

Os achados foram publicados na revista Ethology por pesquisadores das universidades do Estado de Minas Gerais (UEMG), Federal de Uberla¢ndia (UFU) e Estadual de Campinas (Unicamp).

“Os machos fazem uma teia acima da construa­da pela faªmea ainda imatura sexualmente. Quando ela se torna fanãrtil, eles copulam. O macho pode continuar na teia protegendo a parceira contra competidores ou sair para tentar acasalar novamente, o que não garante que outros machos não acasalem também com aquela faªmea que ele deixou. Quando a parceira, por alguma raza£o, morre, ele desce para a teia dela e cuida dos filhotes. No nosso experimento, eles tomaram conta da prole mesmo quando os colocamos em uma teia com os filhotes de outro casal”, explica Rafael Rios Moura, professor do Departamento de Ciências Biola³gicas da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), em Ituiutaba.

Moura realizou o trabalho durante um esta¡gio de pa³s-doutorado no Programa de Pa³s-Graduação em Biologia Animal do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, com bolsa da FAPESP e supervisão do professor Joa£o Vasconcellos Neto https://bv.fapesp.br/pt/pesquisador/2208, um dos coautores do trabalho.

Os pesquisadores ainda não conseguiram determinar por que grande parte das faªmeas da espanãcie desaparece após pa´r os ovos, mas acreditam que, por acumularem bastante lipa­deos no período reprodutivo ose, portanto, estarem mais gordinhas –, possam atrair mais predadores do que os machos.

“Por outro lado, os machos dessa espanãcie constroem uma teia acima da teia da parceira e podem continuar a se alimentar durante a fase adulta. Esse comportamento também éraro em aranhas e pode aumentar a longevidade dos machos de M. porracea. O cena¡rio cria oportunidades para os machos cuidarem dos filhotes. Na ausaªncia dos pais, a sobrevivaªncia da prole émuito baixa. Por isso, o cuidado paternal éuma inovação evolutiva importante para a espanãcie”, diz Moura, que coordena o Naºcleo de Extensão e Pesquisa em Ecologia e Evolução (NEPEE) na UEMG e realiza divulgação cienta­fica no projeto “Rios de Ciência” nas redes sociais.

O comportamento são havia sido descrito antes em uma espanãcie africana de aranha (Stegodyphus dumicola), que vive em grandes teias comunita¡rias nas quais vários machos e faªmeas cuidam tanto dos pra³prios filhotes e ovos como dos de outros casais, o que échamado de cuidado aloparental.

No estudo publicado em 2017, que descreveu o cuidado paternal pela primeira vez, a equipe de Moura mostrou que, ao final da estação reprodutiva, 68% das ootecas eram cuidadas por machos e que uma quantidade significativamente maior de filhotes nascia de ovos vigiados por esses indiva­duos, em comparação aos que não recebiam cuidado nenhum.

Pai équem cuida

A M. porracea ocorre do Panama¡ a  Argentina, em cenários ecola³gicos bem distintos. A população estudada pelo grupo de pesquisadores brasileiros, poranãm, vive em plantações de eucalipto cercadas de áreas nativas de Cerrado na Fazenda Nova Monte Carmelo, em Estrela do Sul, Minas Gerais. As teias são construa­das próximas ao cha£o, utilizando como suporte galhos e a camada de folhas sobre o solo (serrapilheira).

Em laboratório, os pesquisadores observaram 40 machos, 57 faªmeas e 87 ootecas. Todos os machos foram encontrados na natureza, em teias com esses conjuntos de ovos. No laboratório, as faªmeas foram colocadas em caixas transparentes com galhos de eucalipto e bolas de algoda£o (para manter a umidade) por pelo menos 24 horas, para que construa­ssem as teias. Em seguida, cada uma foi removida e substitua­da por um macho e uma ooteca que não era necessariamente dele.

Para verificar se os machos protegem a prole adotiva de predadores, foram colocadas nas caixas aranhas de duas espanãcies (Faiditus caudatus e Argyrodes elevatus, ambas da familia Theridiidae), conhecidas por consumirem ovos e adultos da M. porracea. As observações foram realizadas por dez dias. Em algumas das caixas, usadas como controle, os predadores foram colocados sem o macho protetor e comeram os ovos. Nas outras, os machos foram observados assumindo uma posição de proteção das ootecas e dos filhotes e espantando os predadores quando eles se aproximavam. Em uma delas, o predador foi morto pelo macho.

“O número de filhotes que saiu das ootecas foi duas vezes e meia maior nos tratamentos em que os machos estavam presentes, mesmo sem poderem se certificar da paternidade. E tanto os pais biola³gicos quanto os adotivos foram igualmente efetivos na proteção contra predadores”, diz Moura.

Além de espantar predadores, os pesquisadores observaram em outros experimentos mais dois comportamentos que caracterizam cuidados paternais na espanãcie: os machos constantemente sugam as ootecas quando elas estãomolhadas, provavelmente retirando o excesso de umidade que pode atrair fungos ou prejudicar o desenvolvimento dos ovos. Fora isso, eles reconstroem fios de sustentação da teia, que, sem esse cuidado, poderia cair no cha£o e expor os ovos a formigas e outros predadores. Futuros trabalhos va£o descrever em detalhes esses comportamentos.

A estratanãgia da aranha de proteger qualquer prole da espanãcie, portanto, pode ser resumida pelos últimos versos do poema “Ode on a Distant Prospect of Eton College”, do poeta inglês Thomas Gray (1716-1771), que Moura usa no tí­tulo do artigo: “Onde a ignora¢ncia éuma baªnção, éloucura ser sa¡bio”.

 

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