Opinião

Um diálogo necessário sobre o devir de uma nova ontologia do saber
A reflexão sobre a relação entre Biblioteconomia e Ciência da Informação (CI) convida-nos a um exercício de humildade intelectual e reflexão crítica.
Por Edison Luís dos Santos - 20/07/2025


Domínio público


A reflexão sobre a relação entre Biblioteconomia e Ciência da Informação (CI) convida-nos a um exercício de humildade intelectual e reflexão crítica. Primeiramente gostaria de destacar que os artigos Biblioteconomia não é subcampo: é ciência, é prática, é história, escrito por Leonardo Assis, e Biblioteconomia e Ciência da Informação: dois campos que podem se fortalecer a partir das especificidades, escrito por Ricardo Queiroz, serão aqui analisados, porque representam contribuições valiosas de pesquisadores dedicados, cujos esforços merecem nosso reconhecimento. Seus argumentos – embora distintos – compartilham um compromisso genuíno com o desenvolvimento desses campos do saber.

Neste ensaio, propomos não uma crítica destrutiva, mas uma reflexão aberta sobre como podemos pensar essas áreas em tempos de profundas transformações. Creio que ambos os autores nos fornecem bases sólidas para pensar os desafios atuais.

A discussão sobre a relação entre Biblioteconomia e Ciência da Informação (CI) tem sido marcada por um duplo movimento: de um lado, a defesa apaixonada da autonomia da Biblioteconomia como campo científico e prático; de outro, a tentativa de harmonização entre as duas áreas, como se fossem complementares, mas distintas. Leonardo Assis, em seu artigo reivindica com propriedade que a “Biblioteconomia não é subcampo: é ciência, é prática, é história”, no qual ergue uma trincheira contra a subalternização da Biblioteconomia, subsidiado por sua convicção na maturidade epistemológica e histórica do savoir-faire da Biblioteconomia.

Ricardo Queiroz, por sua vez, defende que “os campos da Biblioteconomia e Ciência da Informação podem se fortalecer a partir das especificidades”, e propõe uma coexistência pacífica, na qual cada disciplina preservaria sua identidade, mas colaboraria em pontos de convergência. Ambos os textos, porém, partem de um pressuposto que merece ser questionado: a ideia de que Biblioteconomia e CI são entidades estáveis, cujos limites podem ser traçados com precisão.

E se, em vez de tentar definir fronteiras ou buscar equilíbrios diplomáticos, assumíssemos que ambas estão em colapso — não por fraqueza, mas porque o próprio conceito de “campo disciplinar” está se dissolvendo na era da infocracia?

Assis, em sua defesa da autonomia da Biblioteconomia, nos oferece um importante alerta contra reducionismos que possam diminuir a riqueza histórica e prática dessa área. Seu trabalho nos faz lembrar que toda disciplina carrega em si tradições que merecem ser valorizadas. Tem razão ao destacar que a Biblioteconomia possui uma história própria, uma epistemologia consolidada e um ethos prático que a distingue. Sua crítica à redução da área a um “subcampo” da CI é justa, especialmente quando lembra que a Biblioteconomia precede em séculos a Ciência da Informação, com raízes que remontam às bibliotecas de Alexandria e às práticas medievais de catalogação. No entanto, seu argumento pode ser confundido com um conservadorismo involuntário: ao insistir na autonomia da Biblioteconomia como uma disciplina tradicional.

Como sabemos, o fato é que o próprio objeto da área — o conhecimento registrado, sua organização e acesso — está sendo radicalmente reconfigurado por tecnologias digitais, algoritmos e novas formas de produção e disseminação da informação. Como afirma Byung-Chul Han, em Infocracia, “a informação já não é mais um bem a ser organizado, mas um fluxo a ser governado”. A Biblioteconomia não pode mais se definir apenas por suas técnicas históricas (classificação, catalogação, preservação) sem correr o risco de se tornar um anacronismo.

Queiroz, por sua vez, com sua proposta de diálogo entre campos, demonstra uma generosidade intelectual que muito tem a contribuir para o avanço do conhecimento. Por outro lado, embora reconheça a inevitabilidade do diálogo entre Biblioteconomia e CI, acaba resvalando em uma armadilha liberal: acreditar que é possível negociar fronteiras e manter uma divisão justa de territórios. Sua visão é pragmática, porém ingênua, pois supõe que as duas áreas podem coexistir sem atritos, como se fossem vizinhos que compartilham o mesmo quintal sem invadir o espaço um do outro.

O problema é que o quintal está sendo corroído por forças externas: a ascensão da inteligência artificial, a desintermediação do acesso à informação, a crise das instituições de memória (bibliotecas, arquivos, museus) e a mercantilização do conhecimento. Nesse contexto, a busca por “especificidades” parece um exercício de nostalgia disciplinar. Como alerta Verónica Perales Blanco, em Decolonizing knowledge organization, “a fetichização das fronteiras disciplinares é um sintoma da incapacidade de enfrentar a desordem epistemológica do século 21”.

Assim, esta não é uma crítica às pessoas ou instituições, mas um reconhecimento de que todos – pesquisadores, profissionais e instituições – estamos aprendendo a navegar em um terreno em constante mutação. A proposta de uma “nova ontologia do saber” que ora apresentamos aqui surge não como rejeição, mas como tentativa de acolhimento das múltiplas vozes que compõem esses campos – incluindo saberes tradicionalmente marginalizados, como bem aponta Boaventura de Sousa Santos. Longe de ser um projeto de ruptura, trata-se de uma tentativa de inclusão e ampliação de perspectivas.

Por uma terceira via: o devir de uma nova ontologia do saber

Estamos diante de um contraponto perturbador: Biblioteconomia e Ciência da Informação não são campos que precisam de reconciliação ou demarcação, mas sim conceitos que devem ser superados em favor de uma nova ontologia do saber — uma ciência pós-disciplinar da “gestão do caos informacional”. Em vez de lutar por autonomia ou coexistência, deveríamos perguntar: o que significa organizar, preservar e dar acesso ao conhecimento em um mundo onde a informação não está mais contida em livros ou bancos de dados, mas pulverizada em fluxos algorítmicos, redes descentralizadas e memórias efêmeras?

Essa nova ontologia não seria nem “Biblioteconomia ampliada” nem “Ciência da Informação reformulada”, mas um campo híbrido, temporário e experimental, que incorporaria quatro pilares:

a) a crítica decolonial aos sistemas de classificação, reconhecendo que as estruturas tradicionais (como a CDU ou o sistema de Dewey) são heranças coloniais que perpetuam hierarquias do saber;
b) a epistemologia da infraestrutura, entendendo que plataformas digitais (Google, OpenAI, Wikimedia) são os novos “organizadores” do conhecimento, muitas vezes de forma opaca e antidemocrática;
c) a ecologia dos saberes, inspirada em Boaventura de Sousa Santos, na qual conhecimentos marginalizados (orais, indígenas, periféricos) não são “incluídos” em sistemas hegemônicos, mas desestabilizam-nos;
d) a teoria do caos aplicada à informação, aceitando que a desordem e a hiperconexão são irredutíveis e que o papel do profissional não é “controlar”, mas mediar conflitos e curar rupturas.

Nessa perspectiva, bibliotecários e cientistas da informação não seriam guardiões de sistemas, mas “xamãs do caos” — mediadores que navegam entre lógicas incomensuráveis (técnica, política, cultural) sem a ilusão de dominá-las. As bibliotecas, por sua vez, deixariam de ser “templos do saber” para se tornarem zonas de conflito, onde se negociam disputas de memória, apagamentos algorítmicos e direitos digitais.

Por fim, deixo algumas questões para reflexão: em vez de gastar energia defendendo territórios ou buscando harmonia, não seria prudente admitir o caráter agonístico da informação na era algorítmica? Será que a Biblioteconomia e a CI estão realmente em crise, ou estão se dissolvendo em algo maior, mais caótico e potencialmente libertador?

O desafio, portanto, não é preservar identidades disciplinares, mas reinventar a prática do conhecimento em um mundo onde a própria noção de “informação” está em xeque. Os mais ruidosos poderiam se manifestar proclamando o luto das disciplinas e o nascimento de uma nova práxis, todavia tão incerta quanto necessária. Penso que tais referências à “morte das disciplinas” não devem ser lidas como necrologia, mas como metáfora de transformação – assim como uma lagarta deve “morrer” para se tornar borboleta. As instituições e profissionais que dedicam suas vidas a essas áreas são mais necessários do que nunca, ainda que seu papel esteja se reconfigurando.


Concluo este texto com um convite: que possamos continuar esse diálogo de forma construtiva, reconhecendo o valor de todas as contribuições e trabalhando juntos para enfrentar os desafios que se apresentam. Afinal, convenhamos junto com Verónica Perales Blanco: “o conhecimento floresce na diversidade e no respeito mútuo”.


Edison Luís dos Santos
Coordenador do Grupo de Estudos Ontologias Abertas da Escola de Comunicações e Artes da USP

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com

 

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