Opinião

Reflexaµes em tempos de pandemia, necropola­tica e genoca­dios
Na³s ainda não resolvemos nossas demandas do passado. E éesse passado que corre atrás de nós, de tempos em tempos, gritando em nossos ouvidos e nos cobrando pelas nossas da­vidas como era­nias e faºrias.
Por Gislene Aparecida dos Santos - 06/05/2020


Foto: Bernardo Jardim Ribeiro

Algumas reflexões parecem inadequadas em tempos de pandemia, com tantas pessoas sofrendo pela perda de empregos, pela morte de entes queridos, quando não por terem, elas mesmas, contraa­do a doena§a. Mas, como pesquisadores e pesquisadoras, temos a obrigação de refletir sobre tudo isso considerando um cena¡rio que va¡ além dasuperfÍcie.
Taªm sido frequentes os debates virtuais, em diferentes partes do mundo, sobre o tema, chamando a atenção para os efeitos da covid-19 sobre as populações mais vulnera¡veis (mulheres, ma£es solo, afrodescendentes, inda­genas, moradores das periferias e favelas, pessoas com deficiência e pessoas em situação de rua). a‰ bem possí­vel (embora ainda não tenham surgido muitos dados referentes, especificamente, ao impacto do novo coronava­rus no agravamento das desigualdades sociais) que sejam esses os grupos mais afetados pelos efeitos colaterais da pandemia, como a impossibilidade de sustento ou pela falta de assistaªncia de um Estado que nunca se preparou para atender essa população e, agora, tem agravado a sua inefica¡cia.

Sem dados precisos, eu não teria condições de afirmar, com a certeza que a ciência exige, fazendo o cruzamento de diferentes indicadores, quem seriam as pessoas mais afetadas pela covid-19. Em plena pandemia, não se pode fechar qualquer estata­stica global sobre o assunto. Contudo, os dados levantados atéo momento indicam, por exemplo, que em Nova York os negros podem estar entre os que mais morrem vitimas da covid-19. E, também, em outros Estados dos EUA, se as informações divulgadas atéo momento puderem ser comprovadas[1].

Negros e o novo coronava­rus

No texto “We need class, race, and gender sensitive policies to fight the Covid-19 crisis”[2], os autores apresentam avaliações iniciais sobre a covid-19 em Nova York e Nova Jersey, com base em dados do New York City Department of Health and Mental Hygiene que foram divulgados pela ma­dia[3]. Para eles, o novo coronava­rus estaria atingindo, com mais força, os bairros onde residem pessoas de baixa renda. E, ainda, seria prova¡vel que, nessas localidades, também haja maior número de mortos. O artigo também faz referaªncia ao cruzamento de dados sobre a incidaªncia de doenças crônicas, respirata³rias e comorbidades que agravam o quadro da covid-19 com o Código de Enderea§amento Postal (CEP) das localidades onde residem fama­lias negras.

No Brasil, também comea§am a surgir informações que apontam para o mesmo sentido. Segundo dados do Ministanãrio da Saúde, háindicativos de que a covid-19 tem sido mais letal entre os negros[4]. Sabemos que ainda hámuito a investigar sobre o tema já que a cobertura populacional da aplicação de testes para diagnosticar a doença ainda émuito baixa no Paa­s.

Contudo, não seria surpresa se chegássemos a  constatação de que, pelos mesmos fatores descritos acima, os negros e os pobres brasileiros estara£o entre os mais afetados pela doença e pela morte decorrente dela. Se assim for, esses sera£o indicativos muito precisos da sobreposição e intersecção de diferentes marcadores sociais da diferença revelando que os grupos socialmente vulnera¡veis aos demais efeitos das desigualdades sociais também seriam os mais afetados pela pandemia da covid-19. Ainda estamos no plano das especulações. Mas háfatores que fogem do campo do “achismo”.

Como pesquisadores e pesquisadoras, talvez estejamos nos deixando levar pelo medo aterrorizante da pandemia de covid-19 e sua letalidade sem atentar para o fato de que hálgo mais associado a ela para o qual épreciso buscar a cura. Na³s ainda não resolvemos nossas demandas do passado. E éesse passado que corre atrás de nós, de tempos em tempos, gritando em nossos ouvidos e nos cobrando pelas nossas da­vidas como era­nias e faºrias.

Nãosabemos ao certo quantas pessoas morrem, por dia, vitimas da covid-19 no Brasil. Entretanto, indago: se fa´ssemos comparar os dados que ora temos acerca dos mortos que contraa­ram o novo coronava­rus com o número de mortes de jovens negros vitimas de violência, a quais conclusaµes chegara­amos?


Sim, estamos em tempos de pandemia e háque se cuidar para evitar mortes, a fome e o enlouquecimento provocado pelo isolamento social de quem pode se isolar. Mas também éfundamental não desprezar outras questões graves.

Nãosabemos ao certo quantas pessoas morrem, por dia, vitimas da covid-19 no Brasil. Entretanto, indago: se fa´ssemos comparar os dados que ora temos acerca dos mortos que contraa­ram o novo coronava­rus com o número de mortes de jovens negros vitimas de violência, a quais conclusaµes chegara­amos?

Violaªncia e genoca­dio

Em 2019, foram divulgados dados coletados pelo Instituto de Pesquisa Econa´mica Aplicada (Ipea), no Atlas da Violaªncia, e do Forum Brasileiro de Segurança Paºblica que mostram que, em 2017, 75,5% das vitimas de homicidios, no Paa­s, eram negras (pretas e pardas), chegando a  taxa de 43,1 por 100 mil habitantes. “Apenas em 2017, 35.783 jovens de 15 a 29 anos foram mortos, uma taxa de 69,9 homicidios para cada 100 mil jovens, recorde nos últimos 10 anos”[5].

Chama a atenção o fato de a morte dessas pessoas pretas, pardas e das favelas nunca ter sido enxergada como parte de um flagelo social ou de uma hecatombe. Seriam pessoas consideradas sem utilidade, como frisou, tempos atrás, Viviane Forrester em seu livro O horror econa´mico? Pessoas que precisariam existir para serem descartadas já que não hálugar para elas no mundo do lucro cada vez mais obtido sem a consta¢ncia da presença humana. Pessoas desnecessa¡rias em um projeto civilizata³rio marcado pela exigaªncia do trabalho como forma de alcana§ar a dignidade, mas no qual não existe mais emprego para todos? Qual seria o espaço dessas pessoas? Sa£o alvo das contradições imanentes de um modelo econa´mico predata³rio que as torna supanãrfluas, dispensa¡veis?

Sim, épossí­vel que se diga que esse tipo de comparação não éaceita¡vel em termos mais precisos. Nãose pode comparar o número de mortos em uma pandemia com o número de mortos por homicidios. Sa£o fena´menos diferentes, com caracteri­sticas totalmente diversas. Todavia, o que quero ressaltar éexatamente isso. Sa£o eventos diversos que tem em comum o paºblico que afetam e os resultados que produzem: as pessoas negras que morrem. Podemos ter aqui evidaªncias de um genoca­dio, algo já mencionado, décadas atrás, por Abdias do Nascimento, no livro O genoca­dio do negro brasileiro, que se tornou um cla¡ssico?

Costumo dizer que genoca­dio épalavra forte e que assusta. Mas como tratar esses números sem fazer menção a esse termo? Se não genoca­dio, efeitos da necropola­tica, como quer Achille Mbembe e Dennis de Oliveira[6]?

Escolhendo quem vive e quem morre

Necropola­tica éo modo como o Estado, por meio de suas políticas, decide, a cada minuto, quem vive e quem morre. Penso que, agora, isso possa estar ocorrendo em hospitais de todo o mundo. Nãofaltam dados para indicar que o tratamento das pessoas pobres e pretas, nos servia§os de saúde, também édesigual[7]. Se tiver que escolher, quem “o médico” escolhera¡ para a UTI e para o uso do respirador, para o hospital com equipamentos de ponta e para o hospital de campanha[8]? Podemos nos esquecer dos algoritmos que da£o preferaªncia a brancos, em detrimento do atendimento dos negros, como revela pesquisa de Ziad Obermeyer e outros?[9]. Quem são as pessoas que apresentam, em maior medida, as comorbidades que as fragilizam para a covid-19? E por que apresentam tais doenças crônicas?

Cada vez fico mais convencida de que o olhar interdisciplinar para a determinação social da saúde e da doença éfundamental para entender a necropola­tica evidente ao avaliar o cena¡rio aqui apresentado.

Devemos considerar o modo como o bina´mio saúde-doença se faz presente na estrutura social e econa´mica. Avaliar que classe, gaªnero, identidade sexual, cor, raça, etnia produzidas e interpretadas pela rede de significados que cada sociedade e cada cultura constra³i são fundamentais na definição dos corpos que sera£o aºteis, inaºteis, acolhidos, repelidos, tratados, maltratados, abandonados ou protegidos, curados ou que perecera£o. Nosso modelo de Estado e nosso estilo de vida estãoassentados sobre a produção da morte de pessoas pretas, pobres, faveladas. Aqui estou refletindo sobre políticas de exterma­nio que não deixam de existir. E são várias formas de matar. Matar o corpo e matar a alma.

Penso que estejamos em meio a  fala¡cia de uma solidariedade que, talvez, termine ao final da pandemia. Espero que não termine. Ha¡ sempre pessoas legitimamente solida¡rias. Mas não creio que seráalgo duradouro. Pode ser cruel o que vou dizer, mas penso que essa solidariedade seja um modo da classe média e alta lavar a alma por não participar, de modo mais constante, da transformação radical que épreciso fazer para que o mundo seja diferente. a‰ como se essa classe média e alta dissesse: “Eu posso contribuir agora para, depois, voltar aos privilanãgios dos quais eu não quero abrir ma£o”. Eliminar privilanãgios éalgo essencial para corrigir ou erradicar as desigualdades gritantes que temos no mundo. E eu acredito mais na solidariedade dos mais pobres em relação a eles mesmos.

Pesquisadores devem ver além

Por isso, temos que olhar além da covid-19. Obviamente, temos que contribuir com nossos conhecimentos para oferecer soluções e enxergar o problema. Nãoestou dizendo (e jamais diria) que não devemos propor projetos para lidar com o novo coronava­rus. Muito pelo contra¡rio, temos que realizar pesquisas porque nosso olhar faz a diferença. E já temos excelentes projetos de pesquisa realizadas pela Universidade de Sa£o Paulo como também ações de extensão universita¡ria que se voltam para as comunidades do entorno da USP e de outras comunidades de Sa£o Paulo, somando esforços com organizações da sociedade civil que salvam vidas. Ações que merecem nosso apoio e respeito.

Contudo, como pesquisadores, épreciso nos perguntar: “Como podemos somar?”. Penso que podemos contribuir produzindo conhecimento que considere as várias facetas de um processo de produção de desigualdades que resulta na morte e no exterma­nio de pessoas dos mesmos grupos sociais em diferentes partes do mundo, em diferentes tempos, desde muito tempo.

Isso étriste, doloroso e épreciso que tratemos com a profundidade e o rigor que o fena´meno merece. a‰ urgente que busquemos, por meio de pesquisas sanãrias, compreender e produzir conhecimento para transformar esse cena¡rio de iniquidade mesmo que não estejamos aqui para presenciar a emergaªncia de um novo modelo sãocio-econa´mico-cultural no qual esse flagelo seja inadmissa­vel.

Somos pessoas sensa­veis a s desigualdades sociais e podemos, com vagar e seriedade, construir o conhecimento que pode fazer a diferença a partir do olhar de quem pertence aos grupos socialmente vulnera¡veis (como os pesquisadores e pesquisadoras que se organizam no recente nPeriferias, Grupo de Pesquisa das Periferias do Instituto de Estudos Avana§ados da USP) e, também, daqueles e daquelas que escolheram ser nossos parceiros e parceiras dedicando-se a pensar conosco, construindo suas carreiras por meio de pesquisas que contribuem para entender essas questões.

Essa, penso, éuma relevante contribuição que a Universidade de Sa£o Paulo pode oferecer na compreensão dos fena´menos que envolvem diferentes formas de matar e morrer, sejam elas decorrentes de uma pandemia, do genoca­dio ou expressaµes da face da necropola­tica.

*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com

Gislene Aparecida dos Santos
Professora associada da EACH/USP e coordenadora do grupo de estudos nPeriferias do IEA/USP

 

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