Opinião

Covid tem gaªnero?
A distância que háentre gaªnero gramatical e gaªnero biola³gico não desqualifica as reflexões de ativistas e acadaªmicos(as) debrua§ados(as) sobre temas como preconceito, machismo e exclusão.
Por Marcelo Módolo e Henrique Braga - 15/06/2020

Doma­nio paºblico

Pertencemos todos ao gaªnero homo. Na conhecida taxonomia das ciências biológicas (aquela que organiza reinos, filos, classes, etc.), nossa espanãcie sapiens estãono mesmo gaªnero de outras menos afortunadas (como o erectus, o georgicus, ou o heidelbergensis), todas extintas. Assim, somos do gaªnero homo e da espanãcie sapiens.
Casos como esse deixam claro que o termo “gaªnero” nem sempre remete a sexo ou a  noção social de gaªnero (que distingue pessoas cis e trans, por exemplo). Sua história talvez ajude a entender o termo: “gaªnero” provanãm do longa­nquo genus, que significava algo como origem, ascendaªncia. Teoricamente, elementos que tenham a mesma origem tera£o caracteri­sticas comuns e, desse modo, podem ser agrupados oso que pode explicar a recorraªncia desse termo em diferentes taxonomias (“gêneros discursivos”, “gêneros musicais” e tantos outros “do gaªnero” oscom o perda£o do trocadilho).

Isso não explica, poranãm, por que, na maioria das la­nguas roma¢nicas, o gaªnero lingua­stico se dividiu em “masculino” e “feminino”, ou mesmo, continuando o que ocorria em latim, masculino, feminino e neutro (caso do romeno). Ou ainda por que, com tal classificação, seria possí­vel atribuir “masculino” ou “feminino” a elementos que, em rigor, não parecem compata­veis com tal ordenação (o que haveria de masculino em “o esquema” e de feminino em “a ta¡tica”, por exemplo?).

Antes de discutir o gaªnero da covid-19 (algo seguramente menos enigma¡tico que o sexo dos anjos), vamos a uma breve reflexa£o sobre a noção de gaªnero lingua­stico.

Gaªnero lingua­stico: mistério ou arbitrariedade?

Em seus Princa­pios de lingua­stica geral, o linguista brasileiro Joaquim Mattoso Ca¢mara Jr. faz uma excepcional revisão bibliogra¡fica do gaªnero como categoria gramatical dos nomes. Entre outras coisas, Mattoso Ca¢mara pontua que a flexa£o de gaªnero émais exceção que regra nos substantivos em la­ngua portuguesa. Seja entre entes animados (“a ona§a”, “o ca´njuge”, “a testemunha”), seja entre inanimados (“o livro”, “o sofa¡â€, “a poltrona”), são muitos os nomes que não mudam de forma para indicar masculino e feminino (também não faria sentido buscar um feminino para “o sofa¡â€, ou um masculino para “a poltrona”).

Além disso, lembra Mattoso, os critanãrios das la­nguas para diferenciar os gêneros variam, indo além da divisão masculino/feminino. O autor cita o malaio, idioma em que, entre outros gêneros, háum para designar os seres humanos e outro para indicar os bichos de cauda. Mesmo em la­ngua portuguesa, háformas nominais que não são masculinas ou femininas: os demonstrativos neutros (“isto”, “isso” e “aquilo”) expressam o valor “não humano” ospodendo por isso assumir sentido pejorativo quando designam pessoas (em frases como “Isso éo lider de vocaªs?”, por exemplo). Isso acontece porque os pronomes do portuguaªs guardaram uma sorte de memória etimola³gica da grama¡tica latina, na qual o gaªnero neutro se manifestava. Resqua­cios da la­ngua mater.

Apesar dessas ponderações, seria exagero ou ingenuidade concluir que não hálguma relação entre gaªnero gramatical e gaªnero biola³gico ou social, inclusive porque este pode ser expresso por aquele (“o professor”/“a professora”, “o jovem”/“a jovem”, etc.). Entre outras hipa³teses, a primorosa revisão bibliogra¡fica de Ca¢mara Jr. menciona a que foi defendida pelo linguista alema£o Franz Bopp: povos indo-europeus teriam transferido a noção de sexo do reino animal para os demais elementos do universo, por meio de associações que os viam como “machos” ou “faªmeas”.

Tais analogias, poranãm, se existiram de fato, não sustentam as noções de gaªnero atuais das la­nguas neolatinas, que sequer são coincidentes (entre tantos outros exemplos, podemos lembrar que, em espanhol, “la nariz” e “la leche” são termos do gaªnero feminino).

O covid ou a covid?

Nãoháuma normativa oficial sobre o tema em la­ngua portuguesa, então não devemos ficar admirados se “falsos profetas da grama¡tica” surgirem apregoando uma saa­da “la³gica”: “como éuma doena§a, o certo éa covid-19”, alguns certamente diriam. Essa saa­da poderia ser exemplificada com um texto publicado pela Academia Brasileira de Letras, que, embora não tenha tomado posição no assunto, citou “a pandemia da covid-19” ao noticiar o lana§amento de sua seção jornala­stica sobre o tema.

Postura mais elogia¡vel foi a da Real Academia Espaa±ola: além de explicar a motivação das maiaºsculas (trata-se de uma abreviação de COronaVIrus Disease, algo como “doença do coronava­rus”), a entidade registrou que o feminino éaceita¡vel, por acompanhar o gaªnero feminino do substantivo “doena§a”. Ainda segundo a instituição espanhola, o masculino também écaba­vel, tendo em conta o que ocorre com outras enfermidades cujos nomes provaªm, por metona­mia, dos nomes de seus va­rus: o ebola e o zika, por exemplo.

Já a Acadanãmie Frana§aise explica que o gaªnero de um acra´nico ou sigla advanãm do núcleo do sintagma que a compaµe, assim: a S.N.C.F. (Socianãténationale des chemins de fer, Sociedade Nacional de Ferrovias), porque o núcleo desse sintagma é“sociedade” e o C.I.O. (Comitéinternational Olympique, Comitaª Ola­mpico Internacional), porque o núcleo, comitaª, éum nome masculino.

Quando um acra´nico ou sigla écomposto de palavras estrangeiras, o mesmo princa­pio se aplicaria. Dessa forma, apregoa a Acadanãmie, devera­amos dizer “a covid-19”, pois covid significa corona virus disease (“doença do coronava­rus”, o núcleo éo substantivo feminino “a doena§a”), enquanto “19” se refere a 2019, quando os primeiros casos em Wuhan, na China, foram divulgados publicamente pelo governo chinaªs no final de dezembro. Igualmente, como a Real Academia Espaa±ola, argumenta que o que acontece éque os falantes, por metona­mia, atribuem a  doença o tipo de pata³geno que a causa.

Em qualquer dos casos, note-se que reside a arbitrariedade (ou o mistanãrio) original dos gêneros gramaticais: “doena§as” não são “faªmeas”, nem “va­rus” são “machos”.

O “x” da questão

A distância que háentre gaªnero gramatical e gaªnero biola³gico não desqualifica as reflexões de ativistas e acadaªmicos(as) debrua§ados(as) sobre temas como preconceito, machismo e exclusão. Merece nota o incomum exemplo de Grada Kilomba, portuguesa cuja obra sociola³gica Mema³rias da plantação osepisãodios de racismo cotidiano foi publicada originalmente em la­ngua inglesa.

Na tradução a  la­ngua materna, a autora inseriu uma espanãcie de glossa¡rio, discutindo termos que usara com naturalidade em inglês, mas não lhe pareciam igualmente caba­veis em portuguaªs. Sobre o termo subject, a escritora pontua a exclusividade do masculino em portuguaªs, “o sujeito”: para ela, a inexistaªncia do feminino “a sujeita” ou do não bina¡rio “xs sujeitxs” exige buscarmos “compreender o que significa uma identidade não existir na sua própria la­ngua, escrita ou falada, ou ser identificada como um erro”.

*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Marcelo Ma³dolo
Professor da FFLCH-USP e pesquisador do CNPq,

Henrique Braga
Doutor em Filologia e La­ngua Portuguesa pela FFLCH-USP

 

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