Opinião

Reduzir desigualdades. Se não agora, quando?
O esfora§o deve estar em identificar necessidades enquanto nação, constituindo projeto que ouse inverter a pira¢mide tributa¡ria brasileira, hoje extremamente regressiva e desigual.
Por Ergon Cugler - 29/06/2020



Em meio a s diversas visaµes de mundo e concepções econa´micas ou de modelo de Estado, o combate a s desigualdades socioecona´micas surge como um possí­vel ma­nimo maºltiplo comum para que o dia¡logo ocorra. Evidaªncia disso, uma pesquisa da Oxfam Brasil (2019) aponta que 94% dos brasileiros concordam que os impostos pagos pela população devem ser usados em benefa­cio dos mais pobres, enquanto 86% diz que o progresso do Paa­s estãodiretamente ligado a  redução da desigualdade socioecona´mica.

Poranãm, enquanto o debate segue em alta osmais ainda diante da pandemia da covid-19 –, os relatórios do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) colocam o Brasil como o sanãtimopaís mais desigual do mundo. Ainda, o Brasil fica em segundo lugar (atrás apenas do Catar) comopaís com maior concentração de renda entre o 1% mais rico, “a parcela dos 10% mais ricos do Brasil concentra 41,9% da renda total dopaís; e a parcela do 1% mais rico concentra 28,3% da renda”.

No entanto, se o combate a s desigualdades socioecona´micas nos une enquanto brasileiros, por que seguimos no topo do ranking da desigualdade mundial?

Estrutura e pra¡xis

Ao longo do texto da Constituição (1988) encontramos quatro vezes a palavra “desigualdade”: (i) no artigo 3º, inciso III, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” como objetivo fundamental da República; (ii) no artigo 43, “visando a seu desenvolvimento e a  redução das desigualdades regionais”; (iii) no artigo 165, § 7º, como objetivo do ora§amento e do plano plurianual, a redução de “desigualdades inter-regionais, segundo critanãrio populacional”; e (iv) no artigo 170, item VII, estabelecendo como princa­pio da ordem econa´mica a “redução das desigualdades regionais e sociais”. Sendo que para se alcana§ar tais objetivos deve-se ainda cumprir os cinco princa­pios da administração pública (artigo 37): a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a publicidade e a eficiência.

Poranãm, éespecialmente na reta³rica da eficiência onde ocorre um sequestro da narrativa que busca justificar o distanciamento do Estado como instrumento de enfrentamento a s desigualdades existentes, forjando uma incerteza quanto a quem seráresponsável por tal papel. Alia¡s, se não o Estado, quem?

Exemplo disso, no campo econa´mico, no planejamento e no ora§amento écomum ouvir o discurso da austeridade osisto anã, de “corte de gastos” –, para uma eficiência das contas públicas, defendido por dois argumentos: (i) de que o ajuste fiscal poderia atrair investidores estrangeiros, por fazer do Paa­s exemplo de bom pagador; e (ii) em referaªncia ao ora§amento domanãstico como meta¡fora, fala-se que “não se pode gastar mais do que entra no lar”. Nesse sentido, submete-se o planejamento estratanãgico e a composição do ora§amento paºblico a  pola­tica de ajuste fiscal permanente, tratando investimentos a áreas sensa­veis como se fossem apenas gastos a serem cortados em função da eficiência.

Um ajuste fiscal, poranãm, não melhora necessariamente a confianção de investidores. Pelo contra¡rio, como o Estado também realiza compras e consome de empresas diversas osalém de financiar programas de renda ou incentivo fiscal que resultam em consumo das fama­lias –, o “corte de gastos paºblicos” resulta, muitas vezes, em redução da demanda, dificultando o investimento por não existir expectativa de lucro por parte do empresa¡rio. Quanto a  meta¡fora do ora§amento domanãstico, os economistas Pedro Rossi, Esther Dweck e Fla¡vio Arantes (2018) escrevem: (a) diferente das fama­lias, o governo tem capacidade de definir seu ora§amento, sendo a arrecadação uma decisão pola­tica e, por exemplo, possí­vel escolher “tributar pessoas ricas ou importações de bens de luxo, para não fechar hospitais”; (b) também diferente das fama­lias, “quando o governo gasta, parte dessa renda retorna sob forma de impostos”; e (c) as fama­lias não emitem moeda, ta­tulos e não definem taxas de juros das da­vidas que pagam, diferente do governo.

Portanto, no campo econa´mico, a pola­tica de “corte de gastos paºblicos” osenquanto sequestro da narrativa da eficiência –, sequer éeficiente, eficaz ou efetiva, pois não gera necessariamente desenvolvimento econa´mico e ainda acentua desigualdades ao limitar esta­mulos fiscais aos que mais precisam. Na mesma linha, no campo do direito financeiro, os diversos instrumentos normativos oshaja vista a própria Constituição –, devem estar a serviço do povo. Mas, se além da percepção das desigualdades evidencia-se a ingeraªncia econa´mica, por que não usar tais normas e instrumentos a serviço do povo? Se não, a serviço do quaª?

Coesão e eficiência a serviço do povo

Ainda que exista coesão osconcorda¢ncia osdos brasileiros quanto a  necessidade de se enfrentar desigualdades socioecona´micas, nossa coaliza£o osarticulação ospara executar tal enfrentamento segue dispersa, muito pelo sequestro da narrativa da responsabilidade fiscal e social. Isso porque, enquanto os sa­mbolos seguem emaranhados e os instrumentos normativos são reduzidos a funções meramente procedimentais ou tanãcnico-deterministas, os pra³prios mecanismos de participação social, como audiaªncias públicas e plataformas de controle e fiscalização, seguem esvaziados ou engessados, limitando a expressão inclusive para se combater tais desigualdades.

Além disso, reduzir o papel do Estado apenas a  eficiência como destinação técnica dos recursos contraria um conjunto de normas que constitui a responsabilidade fiscal e social, por exemplo as Normas do Direito Financeiro (lei 4320/1964), a Lei de Responsabilidade Fiscal (lei complementar 101/2000) osmais adiante com a lei complementar 131/2009, a lei complementar 156/2016 e o decreto 7185/2010 –, o Sistema de Planejamento e de Ora§amento Federal (lei 10180/2001) e o acesso a  informação (lei 12527/2011). Isto anã, sendo o ora§amento não apenas uma lei recomendata³ria, mas um conjunto de normas a serem estrategicamente gerenciadas, hávalor vinculante e, portanto, demanda planejamento e discussão em sua totalidade: do financiamento a  distribuição.

No entanto, como recorda o professor Marcelo Arno Nerling, “o exerca­cio da cidadania não decorre de uma ‘lei natural’”, pelo contra¡rio, “pressupaµe de valores que inspirem e orientem a conduta de cidada£os livres, ativos e responsa¡veis, que tem vontade de Constituição”. Nesse sentido, a coesão social, por si são, tampouco égarantia de uma sociedade melhor, mas éa partir do exerca­cio da cidadania que tal coesão social pode construir arranjos estruturais menos desiguais e mais democra¡ticos para a sociedade.

Para tanto, épreciso encarar a responsabilidade fiscal e social para além de frases de efeito, incorporando-as como instrumento e objetivo estratanãgico, mais ainda durante crises. Dessa forma, superar a falsa polarização entre eficiência e combate a s desigualdades, pois quanto mais o Estado seja eficiente, mais recursos ele podera¡ utilizar para atender a população de forma mais equa¢nime; e a equidade, por sua vez, torna-se pré-requisito para propiciar condições de controle e participação social, fortalecendo a eficiência estrutural, pois gestãoplanejada e transparente previne riscos e corrige desvios (artigo 1º, § 1º da lei complementar 101/2000).

Nesse sentido, o esfora§o deve estar em identificar necessidades enquanto nação, constituindo projeto que ouse inverter a pira¢mide tributa¡ria brasileira, hoje extremamente regressiva e desigual. Ainda, somar forças ao debate de proposições hista³ricas, como a renda ba¡sica atravanãs de especialistas como Leandro Teodoro Ferreira e a taxação das grandes fortunas, ou a contribuição social emergencial sobre altas rendas, reafirmada pelos especialistas Fa¡bio Pereira dos Santos e Ursula Dias Peres.

Amadurecendo o debate e fazendo das leis mais do que checklists técnicos, talvez seja possí­vel exercitar a gestãodemocra¡tica, ampliar a transparaªncia e fazer do Estado um instrumento eficiente de enfrentamento a s desigualdades. Atéporque, se não agora, quando?


*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Ergon Cugler
Pesquisador da EACH/USP, associado ao Observatório Interdisciplinar de Pola­ticas Paºblicas (OIPP) e ao Grupo de Estudos em Tecnologia e Inovações na GestãoPaºblica (Getip)

 

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