Opinião

Corpo e territa³rio: perspectivas de quilombo a partir da cracola¢ndia
Compreendendo que, acima de tudo, háum tra¢nsito de corporeidade, de movimento, que se intersecciona ao movimento da cidade. Observa-se que oito em cada dez usuários regulares de crack nestas cenas são negras e negros.
Por Amanda Gabriela Amparo - 17/11/2020


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Partindo da noção de territorialização do corpo e corpo territa³rio, analisamos a dimensão de quilombo pensado a partir da “cracola¢ndia” (1). Trabalhando os marcadores dos corpos que habitam este Espaço, podera­amos chama¡-los de corpo/cidade e talvez expandir tal noção, possibilitando explorar outros modos de pensar este espaço “cracola¢ndia”.

Compreendendo que, acima de tudo, háum tra¢nsito de corporeidade, de movimento, que se intersecciona ao movimento da cidade. Observa-se que oito em cada dez usuários regulares de crack nestas cenas são negras e negros. Com isso podemos apreender a possibilidade de pensar a “cracola¢ndia” como um espaço de refaºgio de pretas e pretos, já marcados na cidade pela ausaªncia de possibilidades de estar em outros cantos. Podendo entender que a “cracola¢ndia”, nesta dimensão, exerce o papel de um quilombo urbano.
A experiência de pensar a “cracola¢ndia” vai muito além de uma questãomeramente espacial, mas sem daºvida éuma questãode pensar pessoas e seus universos. Sa£o tantas as questões que se intercruzam na análise deste fluxo (2), que talvez seja muito difa­cil não considerar o grau de dificuldade de olhar para todas estas relações, e compreender que acima de tudo háum tra¢nsito de corporeidade, de movimento, que se intersecciona ao movimento da cidade. No entanto, notar estas corporeidades anã, antes de mais nada, entender sua estrutura no todo da cidade, para, partindo daa­, compreendaª-las dentro de um grupo como o da “cracola¢ndia”. Traçar os marcadores destes corpos, o que podera­amos chamar de corpo/cidade, e talvez expandir tal noção, nos possibilitando explorar outros modos de pensar este Espaço, “cracola¢ndia”, éo que pretendemos.

Os corpos aqui se configuram enquanto quem quer existir, existir na cidade, para cidade e da cidade. No entrelace da relação destes corpos com a cidade épossí­vel entendaª-los também como um corpo que resiste a  cidade, e esta resistência se configura como existaªncia na “cracola¢ndia”. Então os marcadores destes corpos/cidade que habitam a “cracola¢ndia” são em sua maioria produzidos pela própria cidade na mesma dimensão em que são produtores. Observar os dados sobre os corpos que transitam em tal espaço éuma forma de entender as complexidades do territa³rio. Oito em cada dez usuários regulares de crack são negros. Oito em cada dez não chegaram ao ensino manãdio, 40% deles estãoem situação de rua, 49% já tiveram passagem pelo sistema prisional (Garcia, 2016). A vulnerabilidade na qual épossí­vel perceber tais corpos, não édentro da dimensão “cracola¢ndia”, mas na dimensão cidade, énela que estes marcadores funcionam enquanto um seletor de experiências, positivas ou negativas, que inclui ou exclui. Entendaª-los nasDimensões em que a cidade os compreende, étambém entender qual o papel que Espaços como o da “cracola¢ndia” pode estar exercendo na vida das pessoas que o habitam.

Então aqui poda­amos pensar na “cracola¢ndia” como um espaço de refaºgio de pretos e pretas, já marcados na cidade, marcados pela ausaªncia de possibilidade de estar em outros cantos da cidade, e assim não seria demais compreender que a “cracola¢ndia” nesta dimensão exerce o papel de um quilombo urbano. A proposta desta conceituação não seria romantizar ou mesmo superqualificar tal Espaço, mas trazer a  tona a premissa de territa³rio, que se formula enquanto tal, acima de tudo, pelo conjunto de relações que ali se forma, que ali transita. a‰ dar significado ao contexto comum dos seus habitantes, onde mais importante do que a localização geogra¡fica (atéporque a “cracola¢ndia” não se localiza apenas em um ponto especa­fico, se trata de um territa³rio em movimento) éo seu fluxo de relações, que perpassa a condição relativamente comum de pretas e pretos na cidade. A vulnerabilidade na qual se encontra a categoria preta/preto dentro da cidade énesta, e por esta condição épossí­vel pensar que a “cracola¢ndia” passa a ser o aºnico lugar de possiblidade de existaªncia para alguns.

A perspectiva de existaªncia éintra­nseca, poranãm a existaªncia traz em si a concepção fundamental de resistência. Resistir ao racismo, a  exclusão, ao medo, a  solida£o, a  fome, ao frio, a  morte. Com isso épossí­vel pensar neste territa³rio como uma comunidade que, em alguma medida, se estabelece enquanto la³cus de alteridade em relação a  cidade. A noção aqui de aquilombamento se da¡, portanto, como uma ação conta­nua de existaªncia auta´noma frente aos antagonismos que se evidenciam na cidade. Beatriz Nascimento nos chama a atenção para a ideia de a instituição quilombo não estar apenas direcionada ao territa³rio, mas ao indiva­duo em si, cada pessoa pode ser um quilombo (Nascimento, 1994; apud RATTS, 2006). Tendo como eixo tal perspectiva, épossí­vel pensar nestes corpos/quilombos que, no encontro com o coletivo possí­vel de sua existaªncia na “cracola¢ndia”, se configuram como um territa³rio itinerante que resiste a s prática s da cidade, mas que também éproduzido por ela.

Notas:
(1) O termo “cracola¢ndia” estãosendo usado entre aspas por se tratar de um termo pejorativo, que identifica determinadas aglomerações de pessoas em Espaços do centro de Sa£o Paulo, mais especificamente no bairro da Luz. Em uma entrevista, Carl Hart nos chama a atenção para o poder estigmatizante do termo, uma vez que são muitas as relações e interações neste Espaço, e que o uso da substância crack não poderia ser a definidora de tais interações.

(2) Fluxo éo nome dado a s ruas onde estãoconcentrado o maior número de pessoas da área conhecida como “cracola¢ndia”, mas que isso tem aqui também uma dimensão de tra¢nsito de relações e objetos. A exemplo a autora Taniele Rui (2014) utiliza-se da categoria nativa “fluxo” para dar conta da circulação de pessoas, objetos e relações nesse territa³rio, reforçando a ideia de uma dina¢mica.

As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Amanda Gabriela Amparo
Mestranda na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 

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