Se alguém diz “na minha opinia£o, a terra éplanaâ€, esta não éuma opinia£o aceita¡vel. Porque a terra écomprovadamente redonda.
Reprodução
a‰ possível afirmar que uma das maiores conquistas da humanidade éo direto de expressar suas opiniaµes. Direito este que éparte da tão apreciada liberdade de expressão, garantida por lei, a todos os cidada£os brasileiros. Expressar nossa opinia£o tem sido ainda mais frequente na era das redes sociais, onde encontramos canais totalmente abertos a s mais diversas opiniaµes, sem nenhuma barreira ou limite.
Algumas décadas atrás, os fa³runs para expressão de opiniaµes que atingissem uma quantidade significativa de pessoas eram muito restritos. Alguns poucos membros da sociedade opinavam: aqueles muitassimo poucos indivíduos que podiam escrever uma coluna de jornal ou comentar num telejornal. A grande maioria das opiniaµes das pessoas eram emitidas a um número muito limitado de ouvintes, numa conversa de bar, ou na mesa de jantar. Talvez num jornal local.
Em meados da década de 1990, os grandes meios de comunicação passaram a tornar a participação popular mais presente em suas programações (no caso das ra¡dios e TVs) ou publicações (no caso dos jornais e revistas). Esta popularização passou a possibilitar que a quantidade de opiniaµes nos grandes meios de comunicação se ampliasse cada vez mais. Â
E as redes sociais, já no século XXI, vieram para coroar o direto que cada individuo tem de expressar sua opinia£o a milhares, milhões de pessoas potencialmente, assim como o apresentador de um grande telejornal diariamente. Este éum feito maravilhoso para a humanidade. Cada indivaduo da sociedade teria direto e élivre para expressar o que pensa (teria, pois, infelizmente, ainda não háuma inclusão digital que propicie isso de verdade a grande parte da população brasileira).
Amedida que a humanidade conquista um feito, reflexos deste aparecem e temos de ir sintonizando finamente como a conquista deve ser usufruada. Creio estarmos justamente neste momento de necessidade de ajuste, pois ao passo que temos direito de ter e expressar nossa opinia£o, temos também de exercer maior responsabilidade sobre ela. E hoje em dia, a responsabilidade sobre o que se fala e escreve, praticamente não existe.
O que temos visto e vivenciado diariamente éum aumento no número de canais que garantem o direito da expressão de opiniaµes, mas muito pouca, ou nenhuma cobrana§a de responsabilidade sobre elas. Cada um fala e escreve o que quer e bem entende, da forma que acha mais adequado. E quando isso acontece por trás de uma tela, de um teclado, de uma webcam ou atépor trás de um microfone, parece que inclusive a simpatia e cordialidade se perdem.
Algumas pessoas defendem que podem dizer e escrever o que bem entender, mesmo sem assumir qualquer responsabilidade, pois aquela éa opinia£o pessoal dela. Opinia£o esta que éparte do direito garantido pela constituição da liberdade de se expressar. Assim, ninguanãm tem o direto de questionar o que édito por outrem.
Mas estãojustamente aa um enorme equavoco. Ao passo que temos o direito de opinar, temos o dever de nos responsabilizar pelo que dizemos. a‰ justamente da liberdade de expressar sem responsabilidade que nascem as famigeradas “fake newsâ€: conceitos, fatos ou notacias expressas, sem nenhuma responsabilidade com a verdade, mas fortemente tendenciosas a opinia£o ou intenção do interlocutor. E a partir daa, especialmente dado o infinito alcance que os meios de comunicação e redes sociais tem, temos visto enxurradas de opiniaµes deletanãrias que desmontam, com muito poder e do dia para a noite, o trabalho conceitual de séculos da ciência e da justia§a social.
Tanto esta afirmação éverdadeira que hoje temos visto questões superadas pela ciência hádécadas (eventualmente háséculos!) voltarem como forma de explicação para conceitos da natureza. A crena§a de que a terra éplana éuma das maiores evidaªncias deste argumento. E bem aa que estãoo que me fez escrever este texto: conceitos comprovados cientificamente baseiam-se em dados. Nãoem opinia£o.
Se alguém diz “na minha opinia£o, a terra éplanaâ€, esta não éuma opinia£o aceita¡vel. Porque a terra écomprovadamente redonda. Temos aqui então um dilema, pois, numa sociedade democra¡tica, todos tem direito a sua própria opinia£o. Mas tenho eu direito a uma opinia£o que écomprovadamente não verdadeira? Ou ainda tenho eu direito a uma opinia£o não aceita¡vel socialmente? a‰ justamente sob a luz de exercer o direito a opinia£o que as pessoas praticam atitudes homofa³bicas, racistas e aténeofascistas nas redes sociais diariamente.
Uma opinia£o sãolida e com poder agregador perante a sociedade e não tendenciosa a formação de uma notacia falsa éaquela baseada em dados. Dados verdadeiros, sãolidos e apropriadamente interpretados. Para ilustrar este ponto, temos diversos exemplos atualmente: a última eleição presidencial nos EUA tem sido posta em xeque por alguns quanto a sua validade; o uso de urnas eletra´nicas na eleição para prefeitos aqui no Brasil foi também questionado por alguns. Mas quais são os dados que comprovam - ou ao menos indicam - que as eleições nos EUA foram fraudadas ou que as urnas eletra´nicas não funcionam no Brasil? Atéagora, nenhum. As alegações são somente opiniaµes pessoais, sem base em dados. As alegações baseiam-se em sentimentos de um apoio popular não quantificado. Assim, são opiniaµes que tendem a gerar notacias falsas, que se espalham com grande força e rapidez, ainda mais dependendo do interlocutor que as traz.
Durante a pandemia, éacalorado o debate sobre o tratamento da COVID-19. Uma das perguntas que permeiam a discussão cotidiana anã: Ha¡ algum medicamento eficaz para tratar a COVID-19? a‰ comum ler e ouvir respostas como “na opinia£o do Doutor Fulano, o medicamento XYZ funcionaâ€. Mas a questãoaqui éque em termos de tratamento de uma doena§a, não existe opinia£o: ou o medicamento funciona ou não funciona, baseado em dados cientaficos. De maneira muito genanãrica, para o tratamento efetivo de uma doena§a, existe a necessidade de estudar em diversas fases e em diferentes modelos biola³gicos (células, animais atéchegar em humanos) os efeitos de um composto quamico (um medicamento) sobre a doena§a. Os dados destas investigações, conduzidas com rigor e apropriada cadaªncia cientafica, éque va£o definir se um tratamento éefetivo ou não. Assim, a opinia£o do “Doutor Fulano†são éva¡lida se houver dados que comprovem sua afirmação. Do contra¡rio, não importa a opinia£o dele. A opinia£o sobre um remanãdio são éva¡lida se houver comprovação cientafica. Voltando a pergunta então: Ha¡ algum medicamento eficaz para tratar a COVID-19? A resposta é“nãoâ€, pois atéhoje, não háestudo cientafico que comprove a eficácia de um medicamento sobre a COVID-19. E isso independe da opinia£o de qualquer pessoa.
Vocaª pode ler este para¡grafo acima e se contrapor, dizendo que teve COVID-19 e que se curou, por exemplo, tomando 3 copos de águaa cada 1 hora. Ao passo que, na sua opinia£o, este seja o caminho da cura da COVID-19, esta éuma observação isolada, baseada na sua experiência, única e individual. Logo, não éuma opinia£o que vale como verdade. Provavelmente nem seja uma opinia£o segura e responsável. Para comprovarmos se 3 copos de águaa cada 1 hora tem a capacidade de curar a COVID-19, um estudo sistema¡tico e com rigor e design cientafico deve ser conduzido em centenas de milhares de pessoas. As observações clanicas e sintomatola³gicas sera£o coletadas por cientistas capacitados para interpreta¡-los e somente a partir destes resultados poderaamos afirmar se esta seria uma maneira de curar a COVID-19. Assim, seráque alguém tem direito de ter a opinia£o que 3 copos de águaa cada hora curam a COVID-19? Frente a responsabilidade envolvida neste caso, talvez esta não seja uma opinia£o que tenhamos direito de ter. a‰ uma situação na qual a responsabilidade pela opinia£o impacta o seu direito constitucionalmente garantido de expa´-la.
Na³s vivemos em uma era na qual nunca tanta informação esteve tão disponavel. Todas as enciclopanãdias do mundo e as experiências pessoais da humanidade estãonas palmas de nossas ma£os. Na era da informação, a maneira com a qual se usa o conhecimento determina se ébom ou ruim ter tanta informação disponavel. Dentre os tópicos mais discutidos da humanidade nas últimas semanas estãoas vacinas para preveção da COVID-19. E o assunto vacina nos traz novamente para a discussão sobre como o obscurantismo pode ser cultivado, mesmo em tempos de tanta luz. Ha¡ uma crena§a, posta justamente por pessoas que expaµe opiniaµes de forma irresponsável, de que vacinas fazem mal a s pessoas. Este éum argumento insustenta¡vel cientificamente. Assim, não deve ser uma opinia£o va¡lida. Grande parte da “opinia£o†sobre o eventual mal que as vacinas fazem vem de crena§as pessoais ou do fato de dados cientaficos serem interpretados equivocadamente.
Certa vez li um blog anti-vacina que explicava o porquaª uma vacina faz mal. Ao ler o texto, pude perceber que o autor, apoiado num texto cientafico legatimo, interpretou-o de maneira escandalosamente equivocada. E assim espalhou pela web sua interpretação: estudo cientafico mostra que vacinas causam doena§as. O autor do texto era um advogado. Em posse de dados que esta pessoa não tem preparo tanãcnico para interpretar osafinal, o estudo cientafico havia sido conduzido por imunologistas, cuja formação émuito distinta - gerou um entendimento incorreto e perigosassimo, pois sua interpretação apoiava-se justamente em um texto cientafico. E tudo que clamo aqui é“confie na ciaªnciaâ€. E quando alguém usa a ciência pra justamente sustentar um argumento errado? Especialmente para defendaª-lo a outras pessoas que também não tem as melhores condições para interpreta¡-lo? Este éum exemplo de como o acesso a muita informação pode ser deletanãrio. a‰ importantassimo, portanto, que usemos filtros adequados no acesso a informação. Eu como bioquamico, por exemplo, não tenho a menor condição de ler um texto juradico e interpreta¡-lo. Assim, devo procurar um canal, certificado e conduzido por especialistas no assunto, que o fazm. Do contra¡rio, as pessoas podem atése apoiar em dados cientaficos, mas para conclusaµes equivocadas. E pior, difundindo estes equavocos nas redes sociais, por exemplo, gerando uma falsa sensação de confianção em quem laª.
Abro um paraªnteses: o que discuto aqui versa sobre o conceito de vacina. Isso não tem a ver com a preocupação sobre a segurança e eficácia das vacinas que estãosendo produzidas para COVID-19. Sem sombra de daºvidas, as vacinas que estãosendo aceleradamente produzidas precisam ter sua eficácia comprovada, com estudos cientaficos robustos e rigorosos, seguindo o ritmo da ciência Preocupar-se e cobrar das autoridades a eficácia e segurança das vacinas para COVID-19 éimportantassimo e atéum ato de cidadania de cada um de nós. Com isso, a ciência écapaz de nos ajudar. E tem nos ajudado. Veja o quanto descobrimos sobre esta doença todos os dias.
Depois de argumentar que a falta de formação para a compreensão de determinada pauta éa causa pela qual conceitos errados se espalham, énecessa¡rio lembrar que o ser humano, inteligente como anã, pode manipular a informação em prol de seu pra³prio benefacio. a‰ comum ver indivíduos cientificamente letrados defendendo causas que não tem embasamento cientafico, usando justamente suas credenciais como cientista para dar força a seus argumentos. Lembrem-se sempre que o uso da informação para promover desinformação nem sempre éignora¢ncia, mas uma estratanãgia, ainda mais em tempos de acirradas e polarizadas discussaµes de cunho polatico.
Voltando a atenção ao direto a opinia£o e o incravel alcance das redes sociais, éobserva¡vel como conceitos incrustados na sociedade brasileira como o racismo e o preconceito contra as classes menos favorecidas emergem em tempos de crise. Quando tudo vai bem osespecialmente em termos econa´micos osha¡ menor polarização de opiniaµes e maior paz social. Quando a economia sucumbe ou situações como a atual pandemia emergem, hásempre a busca por culpados para aquelas situações. E éneste momento que invariavelmente estes conceitos reaparecem com muita força. O grande alcance das redes sociais une as opiniaµes, aumentando o eco significativamente. O eco étamanho que a sinceridade daquele individuo que exprime uma opinia£o - que deveria ser socialmente inaceita¡vel - étaxada como autaªntica e não desprezavel, como se esperaria ser. E esta bizarra espanãcie de selo de autenticidade éque mostra as entranhas preconceituosas do povo, eclodidas violentamente nas redes sociais. Quando a economia brasileira vai mal, as políticas governamentais integrativas oschamadas sarcasticamente de populistas ossão culpadas. E por conseguinte, as classes desfavorecidas são culpadas pelo fracasso econa´mico daquele momento. Isso demonstra não são preconceito, mas a falta de conceitos das pessoas ao ignorar que promover maior igualdade de classes énecessa¡rio para a saúde da sociedade em todos os aspectos. Quando a diferença social égrande, não hápaz e equilabrio econa´mico. Para diminuir a desigualdade social, énatural que deva haver políticas promotoras desta noção. Momentos de crise, somadas a uma sociedade preconceituosa com ferramentas de alcance em massa pode realmente polarizar opiniaµes de forma deletanãria.
Mas como resolver isso tudo? Como eliminar o obscurantismo, representados recentemente por conceitos como os de terra plana e movimento antivacinas? Como levar aos cidada£os o conceito do opinar responsável, baseado em dados e não em crena§as? Como mostrar aos cidada£os que a ciência éconfia¡vel, dado seu rigor e imparcialidade? A resposta ésempre a mesma: educação. A educação éa resposta para todos os nossos problemas, inclusive os tantos outros que transcendem esta discussão. Além de uma educação que preze por dados e comprovações sãolidas, énecessa¡ria uma educação que cultive o respeito a opinia£o do pra³ximo e a diversidade de ideias. Com educação de qualidade e pautadas a luz da ciência e de conhecimento sãolido, a população tera¡ discernimento sobre manobras de desinformação.
Temos o direito a uma opinia£o? Claro! O ideal éque cada um de nosexpresse sua opinia£o para um indivaduo, a um grupo ou ao mundo, usando a potaªncia de alcance das redes sociais. Mas a responsabilidade de uma opinia£o, munida de dados confia¡veis, éalgo central para um mundo justo. O direito a opinia£o éum legado que deve ser perpetuado na humanidade. Mas com sempre com respeito e responsabilidade.
Â
As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva
do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do
maisconhecer.com
Daniel Martins-de-SouzaÂ
Professor de Bioquímica da UNICAMP, Lader do Laborata³rio de Neuroprotea´mica e pesquisador do Experimental Medicine Research Cluster (EMRC).