Opinião

O direito de ter opinia£o
Se alguém diz “na minha opinia£o, a terra éplana”, esta não éuma opinia£o aceita¡vel. Porque a terra écomprovadamente redonda.
Por Daniel Martins-de-Souza - 26/11/2020


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a‰ possí­vel afirmar que uma das maiores conquistas da humanidade éo direto de expressar suas opiniaµes. Direito este que éparte da tão apreciada liberdade de expressão, garantida por lei, a todos os cidada£os brasileiros. Expressar nossa opinia£o tem sido ainda mais frequente na era das redes sociais, onde encontramos canais totalmente abertos a s mais diversas opiniaµes, sem nenhuma barreira ou limite.

Algumas décadas atrás, os fa³runs para expressão de opiniaµes que atingissem uma quantidade significativa de pessoas eram muito restritos. Alguns poucos membros da sociedade opinavam: aqueles muita­ssimo poucos indivíduos que podiam escrever uma coluna de jornal ou comentar num telejornal. A grande maioria das opiniaµes das pessoas eram emitidas a um número muito limitado de ouvintes, numa conversa de bar, ou na mesa de jantar. Talvez num jornal local.

Em meados da década de 1990, os grandes meios de comunicação passaram a tornar a participação popular mais presente em suas programações (no caso das ra¡dios e TVs) ou publicações (no caso dos jornais e revistas). Esta popularização passou a possibilitar que a quantidade de opiniaµes nos grandes meios de comunicação se ampliasse cada vez mais.  

E as redes sociais, já no século XXI, vieram para coroar o direto que cada individuo tem de expressar sua opinia£o a milhares, milhões de pessoas potencialmente, assim como o apresentador de um grande telejornal diariamente. Este éum feito maravilhoso para a humanidade. Cada indiva­duo da sociedade teria direto e élivre para expressar o que pensa (teria, pois, infelizmente, ainda não háuma inclusão digital que propicie isso de verdade a  grande parte da população brasileira).

Amedida que a humanidade conquista um feito, reflexos deste aparecem e temos de ir sintonizando finamente como a conquista deve ser usufrua­da. Creio estarmos justamente neste momento de necessidade de ajuste, pois ao passo que temos direito de ter e expressar nossa opinia£o, temos também de exercer maior responsabilidade sobre ela. E hoje em dia, a responsabilidade sobre o que se fala e escreve, praticamente não existe.

O que temos visto e vivenciado diariamente éum aumento no número de canais que garantem o direito da expressão de opiniaµes, mas muito pouca, ou nenhuma cobrana§a de responsabilidade sobre elas. Cada um fala e escreve o que quer e bem entende, da forma que acha mais adequado. E quando isso acontece por trás de uma tela, de um teclado, de uma webcam ou atépor trás de um microfone, parece que inclusive a simpatia e cordialidade se perdem.

Algumas pessoas defendem que podem dizer e escrever o que bem entender, mesmo sem assumir qualquer responsabilidade, pois aquela éa opinia£o pessoal dela. Opinia£o esta que éparte do direito garantido pela constituição da liberdade de se expressar. Assim, ninguanãm tem o direto de questionar o que édito por outrem.

Mas estãojustamente aa­ um enorme equa­voco. Ao passo que temos o direito de opinar, temos o dever de nos responsabilizar pelo que dizemos. a‰ justamente da liberdade de expressar sem responsabilidade que nascem as famigeradas “fake news”: conceitos, fatos ou nota­cias expressas, sem nenhuma responsabilidade com a verdade, mas fortemente tendenciosas a  opinia£o ou intenção do interlocutor. E a partir daa­, especialmente dado o infinito alcance que os meios de comunicação e redes sociais tem, temos visto enxurradas de opiniaµes deletanãrias que desmontam, com muito poder e do dia para a noite, o trabalho conceitual de séculos da ciência e da justia§a social.

Tanto esta afirmação éverdadeira que hoje temos visto questões superadas pela ciência hádécadas (eventualmente háséculos!) voltarem como forma de explicação para conceitos da natureza. A crena§a de que a terra éplana éuma das maiores evidaªncias deste argumento. E bem aa­ que estãoo que me fez escrever este texto: conceitos comprovados cientificamente baseiam-se em dados. Nãoem opinia£o.

Se alguém diz “na minha opinia£o, a terra éplana”, esta não éuma opinia£o aceita¡vel. Porque a terra écomprovadamente redonda. Temos aqui então um dilema, pois, numa sociedade democra¡tica, todos tem direito a sua própria opinia£o. Mas tenho eu direito a uma opinia£o que écomprovadamente não verdadeira? Ou ainda tenho eu direito a uma opinia£o não aceita¡vel socialmente? a‰ justamente sob a luz de exercer o direito a  opinia£o que as pessoas praticam atitudes homofa³bicas, racistas e aténeofascistas nas redes sociais diariamente.

Uma opinia£o sãolida e com poder agregador perante a sociedade e não tendenciosa a  formação de uma nota­cia falsa éaquela baseada em dados. Dados verdadeiros, sãolidos e apropriadamente interpretados. Para ilustrar este ponto, temos diversos exemplos atualmente: a última eleição presidencial nos EUA tem sido posta em xeque por alguns quanto a  sua validade; o uso de urnas eletra´nicas na eleição para prefeitos aqui no Brasil foi também questionado por alguns. Mas quais são os dados que comprovam - ou ao menos indicam - que as eleições nos EUA foram fraudadas ou que as urnas eletra´nicas não funcionam no Brasil? Atéagora, nenhum. As alegações são somente opiniaµes pessoais, sem base em dados. As alegações baseiam-se em sentimentos de um apoio popular não quantificado. Assim, são opiniaµes que tendem a gerar nota­cias falsas, que se espalham com grande força e rapidez, ainda mais dependendo do interlocutor que as traz.

Durante a pandemia, éacalorado o debate sobre o tratamento da COVID-19. Uma das perguntas que permeiam a discussão cotidiana anã: Ha¡ algum medicamento eficaz para tratar a COVID-19? a‰ comum ler e ouvir respostas como “na opinia£o do Doutor Fulano, o medicamento XYZ funciona”. Mas a questãoaqui éque em termos de tratamento de uma doena§a, não existe opinia£o: ou o medicamento funciona ou não funciona, baseado em dados cienta­ficos. De maneira muito genanãrica, para o tratamento efetivo de uma doena§a, existe a necessidade de estudar em diversas fases e em diferentes modelos biola³gicos (células, animais atéchegar em humanos) os efeitos de um composto qua­mico (um medicamento) sobre a doena§a. Os dados destas investigações, conduzidas com rigor e apropriada cadaªncia cienta­fica, éque va£o definir se um tratamento éefetivo ou não. Assim, a opinia£o do “Doutor Fulano” são éva¡lida se houver dados que comprovem sua afirmação. Do contra¡rio, não importa a opinia£o dele. A opinia£o sobre um remanãdio são éva¡lida se houver comprovação cienta­fica. Voltando a pergunta então: Ha¡ algum medicamento eficaz para tratar a COVID-19? A resposta é“não”, pois atéhoje, não háestudo cienta­fico que comprove a eficácia de um medicamento sobre a COVID-19. E isso independe da opinia£o de qualquer pessoa.

Vocaª pode ler este para¡grafo acima e se contrapor, dizendo que teve COVID-19 e que se curou, por exemplo, tomando 3 copos de águaa cada 1 hora. Ao passo que, na sua opinia£o, este seja o caminho da cura da COVID-19, esta éuma observação isolada, baseada na sua experiência, única e individual. Logo, não éuma opinia£o que vale como verdade. Provavelmente nem seja uma opinia£o segura e responsável. Para comprovarmos se 3 copos de águaa cada 1 hora tem a capacidade de curar a COVID-19, um estudo sistema¡tico e com rigor e design cienta­fico deve ser conduzido em centenas de milhares de pessoas. As observações cla­nicas e sintomatola³gicas sera£o coletadas por cientistas capacitados para interpreta¡-los e somente a partir destes resultados podera­amos afirmar se esta seria uma maneira de curar a COVID-19. Assim, seráque alguém tem direito de ter a opinia£o que 3 copos de águaa cada hora curam a COVID-19? Frente a responsabilidade envolvida neste caso, talvez esta não seja uma opinia£o que tenhamos direito de ter. a‰ uma situação na qual a responsabilidade pela opinia£o impacta o seu direito constitucionalmente garantido de expa´-la.

Na³s vivemos em uma era na qual nunca tanta informação esteve tão dispona­vel. Todas as enciclopanãdias do mundo e as experiências pessoais da humanidade estãonas palmas de nossas ma£os. Na era da informação, a maneira com a qual se usa o conhecimento determina se ébom ou ruim ter tanta informação dispona­vel. Dentre os tópicos mais discutidos da humanidade nas últimas semanas estãoas vacinas para preveção da COVID-19. E o assunto vacina nos traz novamente para a discussão sobre como o obscurantismo pode ser cultivado, mesmo em tempos de tanta luz. Ha¡ uma crena§a, posta justamente por pessoas que expaµe opiniaµes de forma irresponsável, de que vacinas fazem mal a s pessoas. Este éum argumento insustenta¡vel cientificamente. Assim, não deve ser uma opinia£o va¡lida. Grande parte da “opinia£o” sobre o eventual mal que as vacinas fazem vem de crena§as pessoais ou do fato de dados cienta­ficos serem interpretados equivocadamente.

Certa vez li um blog anti-vacina que explicava o porquaª uma vacina faz mal. Ao ler o texto, pude perceber que o autor, apoiado num texto cienta­fico lega­timo, interpretou-o de maneira escandalosamente equivocada. E assim espalhou pela web sua interpretação: estudo cienta­fico mostra que vacinas causam doena§as. O autor do texto era um advogado. Em posse de dados que esta pessoa não tem preparo tanãcnico para interpretar osafinal, o estudo cienta­fico havia sido conduzido por imunologistas, cuja formação émuito distinta - gerou um entendimento incorreto e perigosa­ssimo, pois sua interpretação apoiava-se justamente em um texto cienta­fico. E tudo que clamo aqui é“confie na ciaªncia”. E quando alguém usa a ciência pra justamente sustentar um argumento errado? Especialmente para defendaª-lo a outras pessoas que também não tem as melhores condições para interpreta¡-lo? Este éum exemplo de como o acesso a muita informação pode ser deletanãrio. a‰ importanta­ssimo, portanto, que usemos filtros adequados no acesso a informação. Eu como bioqua­mico, por exemplo, não tenho a menor condição de ler um texto jura­dico e interpreta¡-lo. Assim, devo procurar um canal, certificado e conduzido por especialistas no assunto, que o fazm. Do contra¡rio, as pessoas podem atése apoiar em dados cienta­ficos, mas para conclusaµes equivocadas. E pior, difundindo estes equa­vocos nas redes sociais, por exemplo, gerando uma falsa sensação de confianção em quem laª.

Abro um paraªnteses: o que discuto aqui versa sobre o conceito de vacina. Isso não tem a ver com a preocupação sobre a segurança e eficácia das vacinas que estãosendo produzidas para COVID-19. Sem sombra de daºvidas, as vacinas que estãosendo aceleradamente produzidas precisam ter sua eficácia comprovada, com estudos cienta­ficos robustos e rigorosos, seguindo o ritmo da ciência Preocupar-se e cobrar das autoridades a eficácia e segurança das vacinas para COVID-19 éimportanta­ssimo e atéum ato de cidadania de cada um de nós. Com isso, a ciência écapaz de nos ajudar. E tem nos ajudado. Veja o quanto descobrimos sobre esta doença todos os dias.

Depois de argumentar que a falta de formação para a compreensão de determinada pauta éa causa pela qual conceitos errados se espalham, énecessa¡rio lembrar que o ser humano, inteligente como anã, pode manipular a informação em prol de seu pra³prio benefa­cio. a‰ comum ver indivíduos cientificamente letrados defendendo causas que não tem embasamento cienta­fico, usando justamente suas credenciais como cientista para dar força a seus argumentos. Lembrem-se sempre que o uso da informação para promover desinformação nem sempre éignora¢ncia, mas uma estratanãgia, ainda mais em tempos de acirradas e polarizadas discussaµes de cunho pola­tico.

Voltando a atenção ao direto a  opinia£o e o incra­vel alcance das redes sociais, éobserva¡vel como conceitos incrustados na sociedade brasileira como o racismo e o preconceito contra as classes menos favorecidas emergem em tempos de crise. Quando tudo vai bem osespecialmente em termos econa´micos osha¡ menor polarização de opiniaµes e maior paz social. Quando a economia sucumbe ou situações como a atual pandemia emergem, hásempre a busca por culpados para aquelas situações. E éneste momento que invariavelmente estes conceitos reaparecem com muita força. O grande alcance das redes sociais une as opiniaµes, aumentando o eco significativamente. O eco étamanho que a sinceridade daquele individuo que exprime uma opinia£o - que deveria ser socialmente inaceita¡vel - étaxada como autaªntica e não despreza­vel, como se esperaria ser. E esta bizarra espanãcie de selo de autenticidade éque mostra as entranhas preconceituosas do povo, eclodidas violentamente nas redes sociais. Quando a economia brasileira vai mal, as políticas governamentais integrativas oschamadas sarcasticamente de populistas ossão culpadas. E por conseguinte, as classes desfavorecidas são culpadas pelo fracasso econa´mico daquele momento. Isso demonstra não são preconceito, mas a falta de conceitos das pessoas ao ignorar que promover maior igualdade de classes énecessa¡rio para a saúde da sociedade em todos os aspectos. Quando a diferença social égrande, não hápaz e equila­brio econa´mico. Para diminuir a desigualdade social, énatural que deva haver políticas promotoras desta noção. Momentos de crise, somadas a uma sociedade preconceituosa com ferramentas de alcance em massa pode realmente polarizar opiniaµes de forma deletanãria.

Mas como resolver isso tudo? Como eliminar o obscurantismo, representados recentemente por conceitos como os de terra plana e movimento antivacinas? Como levar aos cidada£os o conceito do opinar responsável, baseado em dados e não em crena§as? Como mostrar aos cidada£os que a ciência éconfia¡vel, dado seu rigor e imparcialidade? A resposta ésempre a mesma: educação. A educação éa resposta para todos os nossos problemas, inclusive os tantos outros que transcendem esta discussão. Além de uma educação que preze por dados e comprovações sãolidas, énecessa¡ria uma educação que cultive o respeito a  opinia£o do pra³ximo e a  diversidade de ideias. Com educação de qualidade e pautadas a  luz da ciência e de conhecimento sãolido, a população tera¡ discernimento sobre manobras de desinformação.

Temos o direito a uma opinia£o? Claro! O ideal éque cada um de nosexpresse sua opinia£o para um indiva­duo, a um grupo ou ao mundo, usando a potaªncia de alcance das redes sociais. Mas a responsabilidade de uma opinia£o, munida de dados confia¡veis, éalgo central para um mundo justo. O direito a  opinia£o éum legado que deve ser perpetuado na humanidade. Mas com sempre com respeito e responsabilidade.
 

As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Daniel Martins-de-Souza 
Professor de Bioquímica da UNICAMP, La­der do Laborata³rio de Neuroprotea´mica e pesquisador do Experimental Medicine Research Cluster (EMRC).

 

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