Opinião

Qual jornalismo cienta­fico seremos chamados a fazer em 2021?
Em primeiro lugar, em 2021 o jornalismo cienta­fico vai ser chamado a ser mais investigativo. Mais do que nunca, não podera¡ se acomodar a  espera de releases de publicaçaµes e universidades.
Por Luiza Caires - 26/12/2020


Doma­nio paºblico

Em 2020, a pandemia tornou o jornalismo cienta­fico de coadjuvante a  estrela no palco das nota­cias. Desde que trabalho na área, nunca vi termos tanta atenção e tanto Espaço. O que, éclaro, também expa´s nossos calcanhares-de-aquiles, problemas diversos que precisamos corrigir, e problemas novos que surgiram, tanto para uma geração de profissionais que cobre sua primeira pandemia, como para as que já passaram por outra, como a de HIV/Aids nas décadas de 1980-90, mas que trouxeram questões completamente diferentes das de hoje.

Em primeiro lugar, em 2021 o jornalismo cienta­fico vai ser chamado a ser mais investigativo. Mais do que nunca, não podera¡ se acomodar a  espera de releases de publicações e universidades. Com exceções, este ano, no Brasil, ficamos devendo um pouco em boas histórias com esta caracterí­stica.

Além disso, num período em que pola­ticos com tendaªncias antidemocra¡ticas governam algunspaíses, hámuitas informações a serem reveladas, parte delas envolvendo questões em que a ciência e a pola­tica se misturam. Assim, prática s de outras especialidades devem ser mobilizadas. Os jornalistas de ciências e de dados já trabalham bastante em parceria (muitos profissionais possuem as duas competaªncias). Mas essas são trocas que podem ser estendidas para outros campos. Um bom jornalista de ciências não deve apenas ser capaz de transformar informações complexas da biologia, ciências exatas e humanas em nota­cias compreensa­veis, e que fazm sentido na vida do paºblico. Precisa também entender como essas nota­cias conversam com o ambiente pola­tico e social da atualidade. E conhecer razoavelmente o campo das políticas cienta­ficas, isto anã, como cadapaís, governo e instituição escolhe a ciência em que vai investir seus recursos, como isso se da¡ na prática , além dos debates e disputas de visão de mundo e poder que aa­ se da£o.

a“rfa£os das fontes oficiais

Nos Estados Unidos, ouvimos depoimentos de colegas como a jornalista Maryn McKenna, do portal Wired, dizendo que nunca, na cobertura de saúde, viu o CDC (Control Diseases Center) tão ausente e a Casa Branca tão hostil para atender a imprensa. Segundo ela, tem sido muito difa­cil falar com representantes do CDC, e grande parte das nota­cias estãotendo que ser feita com base em informações vazadas ou por entrevistas “off the record” (com o gravador desligado), sem identificar as fontes osfunciona¡rios do órgão que simplesmente temem perder seus empregos. 

No Brasil, alguns posicionamentos do Ministanãrio da Saúde foram apontados pela própria comunidade cienta­fica como não cienta­ficos ou, no ma­nimo, afetados mais do que o tolera¡vel pelo cena¡rio pola­tico-ideola³gico. Dois se destacam: o atraso na divulgação dos boletins dia¡rios da pandemia, e que ainda davam questiona¡vel destaque ao número de “recuperados” (parcialmente contornado com a iniciativa do consãorcio de vea­culos de imprensa, que tem reunido estes dados); e os casos dos medicamentos sem comprovação contra a covid-19, hidroxicloroquina e nitazoxanida, propagandeados por autoridades. Esta última droga, celebrada pelo MCTIC (Ministanãrio da Ciência, Tecnologia, Informação e Comunicações) com supostos resultados de um estudo cienta­fico apresentados em pea§a publicita¡ria antes da divulgação em peria³dicos. O MCTIC éoutra pasta que também abandonou os pudores da seriedade cienta­fica e o rigor dos dados oscomo já havia nos mostrado, antes da pandemia, o caso dos embates com cientistas do Inpe, que resultaram atéem demissaµes. a‰ mais uma fonte oficial que, mais do que nunca, não pode ser ouvida sem cra­tica pelos jornalistas de ciaªncia, mesmo com os vários profissionais sanãrios que continuam por la¡.

Tudo isso nos deixou a³rfa£os, como profissionais, de um porto seguro para recorrer atrás das informações mais consolidadas. Para questões de saúde, como a pandemia, o Ministanãrio da Saúde seria o local mais fa¡cil, mas não émais tão a³bvio assim. Em ciaªncia, verdades nunca são definitivas, mas um relativo consenso sobre o que éo melhor conhecimento dispona­vel no momento sobre um tema importa. Ainda mais quando estamos lidando com mais incerteza do que o usual, por estar diante de um objeto de pesquisa totalmente novo, como o sars-cov-2. Assim, em 2021 continuaremos a aprender como navegar nesse cena¡rio de mais daºvidas que o habitual, sem o cais de entidades, antes modelos, para atracarmos.

O jornalismo cienta­fico do futuro também não podera¡ buscar a enganosa neutralidade do “ouvir vários lados”. Nãovejo incompatibilidade com a profissão ou demanãrito no fato de o jornalismo cienta­fico se assumir aliado aos valores da boa ciência Isso significa não dar espaço para o que a própria comunidade cienta­fica filtra: pesquisas mal desenhadas, incipientes, com conclusaµes precipitadas, e inferaªncias que não podem ser feitas. Ao longo de 2020, a imprensa evoluiu nesse aspecto osno ini­cio da pandemia ainda era mais comum ela dar espaço para debates como a efetividade ou não do isolamento social, sendo que cientistas defensores do “não” eram tão minorita¡rios quanto os que ainda negam o aquecimento global, por exemplo.

Foco na sindemia

Em 2021 o coronava­rus permanecera¡ presente, e o jornalismo cienta­fico ainda vai colocar a maior parte do seu foco nele. Mas eu espero que, mais que para a pandemia, voltemos nossos olhos para a sindemia, assim como Richard Horton insta governos e cientistas a fazerem. Em editorial na revista The Lancet, ele aplica a  covid-19 o conceito de duas ou mais condições interagindo de forma a causar mais danos do que a mera soma dessas doenças ou fatores. Enfermidades como ca¢ncer, diabete, obesidade osas chamadas comorbidades osmas também seus determinantes sociais.

Lidar com a covid-19 sob esse ponto de vista envolveria não apenas combater a propagação do va­rus, mas tomar medidas para modificar o contexto social das pessoas mais vulnera¡veis a ele, o que abrange educação, emprego, habitação, alimentação e meio ambiente. No que cabe ao jornalismo, étrazermos na cobertura de ciências esses aspectos, que podem e devem ser tratados cientificamente.

Por último, também relacionado a contextos, que em 2021 possamos cobrir mais a pandemia brasileira, que étotalmente diferente da pandemia nospaíses da Europa, nos EUA, para citar os locais que mais tem destaque no nosso noticia¡rio. Sa£o diversas pandemias que são tem em comum o mesmo va­rus como agente causador, mas que se da£o em contextos diversos de propagação, sistemas de saúde, organização urbana, clima, cultura, condições sociais.

As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Luiza Caires
jornalista, mestre em Comunicação pela ECA-USP e editora de Ciências do “Jornal da USP”

 

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