Opinião

A perseverana§a de ideias: vida em marte, teoria da relatividade e cloroquina
O enfrentamento da pandemia tem mostrado a importa¢ncia do compartilhamento de informaa§aµes, maior colaboraça£o entre pesquisadores e instituia§aµes, menos competia§a£o e mais coletividade
Por Peter Schulz - 21/02/2021


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O pouso da nave “Perseverana§a” nasuperfÍcie do nosso planeta vizinho, que tem por missão buscar vesta­gios de vida presente ou passada por la¡, desenterrou memórias. A primeira érelacionada a um artigo de JoséReis na Revista Anhembi nos idos da década de 1950. Nãoencontrei o exemplar da revista aqui em casa, deve estar no gabinete em Limeira, que talvez eu volte a ocupar nesse ano. Depois lembrei de uma troca de correspondaªncia com o grande divulgador de ciência mexicano Sergio de Ranãgules, que escreveu bastante sobre o assunto. Em seguida, como secreto admirador do programa espacial sovianãtico na infa¢ncia, recordei as missaµes pioneiras ao planeta vermelho, ainda nos anos 1960: a Missão Marte.

A ideia de que hávida no planeta com o nome mitola³gico éantiga. Em 1854, William Whewell, cientista e tea³logo, teorizou que por la¡ existiriam mares e, possivelmente, formas de vida. Essa hipa³tese viralizou com a observação dos famosos canais de Marte por Giovanni Schiaparelli mais para o final daquele século (1877). Nãoeram estruturas nasuperfÍcie do planeta, tratava-se de uma ilusão de a³ptica, como foi verificado em várias observações subsequentes atéo ini­cio do século XX. Mas que possibilidade fanta¡stica, mesmo que o rigor da ciência pedisse cautela! Daa­ temos um dos cla¡ssicos da ficção cienta­fica, “A guerra dos mundos” (1897) de H. G. Wells, publicado pouco depois do livro “Marte” (1895) do astra´nomo Percival Lowell, que especulou sobre a ilusão de a³ptica como sendo sim obras de engenharia aliena­gena. Lowell continuou insistindo na ideia e seu segundo livro de 1906, aprofunda as especulações sobre a civilização marciana.

Vasculhando a rede de canais virtuais do nosso planeta podemos nos deparar com a imagem da primeira pa¡gina do “The Salt Lake Tribune”, edição de 13 de outubro de 1912 e sua manchete: “Marte povoado por um vasto vegetal pensante”. A imagem não tem resolução suficiente para ler o texto, apenas a linha fina, que diz que a teoria seria do prof. Campbell do Observatório Lick. Quem seria esse personagem? William Wallace Campbell (1862-1938) foi um astra´nomo estadunidense e diretor do observata³rio mencionado[I]. Os textos oficiais e acadaªmicos não mencionam essa teoria, mesmo porque foi Campbell quem determinou que a atmosfera de Marte não daria suporte a formas de vida. De fato, a autoria da teoria foi desmentida por Campbell em cartas (a propagação da teoria continuou por uns anos, sendo sempre desmentida pelo astra´nomo)[II]. Trata-se, portanto, da mais pura desinformação/fake News, como tão bem conhecemos hoje.

O nome de Campbell deveria ser mais conhecido por outras contribuições. Ele foi o primeiro a propor a verificação da Teoria da Relatividade pela observação de um eclipse solar, bem antes de Arthur Eddington em 1919, com observações em Sobral e Sa£o Tomée Pra­ncipe[III]. Campbell já tentara verificar o desvio da luz por campos gravitacionais em um eclipse de 1914 e outro em 1918. Mas os equipamentos não tinham resolução suficiente para observar o efeito. O eclipse de 1914, alia¡s, foi observado na Raºssia e, devido a  eclosão da Primeira Guerra Mundial, os instrumentos foram improvisados. Mas coube a Campbell, com um eclipse solar em 1922, a importante tarefa de realizar a primeira das várias confirmações das observações de Eddington de 1919, que foram contestadas não por poucos cientistas e por razões externas a  ciência Como também temos observado, infelizmente e com desalento, em importantes questões relativas a  pandemia que sofremos.

E poderia surgir ainda a pergunta: mas como Campbell tentou confirmar a Teoria da Relatividade Geral em 1914 se, como tanto se escreve e diz por aa­, ela éde 1915? Bem, em 1915 Einstein publicou a cereja desse fanta¡stico bolo, o artigo “As equações de campo da gravitação”, que foi o brilhante epa­logo de um projeto osa Teoria da relatividade Geral osdesenvolvido ao longo de 10 anos em vários outros artigos. Em um desses artigos, de 1911, Einstein estabelece a “Influaªncia da Gravitação sobre a propagação da luz”[IV]. A ciência como forma de conhecimento e atividade humana éainda pouco conhecida pelo paºblico, leigo ou não. Na questãoem pauta, muitos ainda se contentam e propagam o mito de que o grande cientista, depois do “ano miraculoso” de 1905, ficou trancado 10 anos para então finalmente divulgar sua grande teoria geral. Nada mais equivocado, pois nesse período, Einstein publicou 54 artigos cienta­ficos, boa parte deles sobre assuntos outros da Fa­sica. Ciência éassim, realizada passo a passo, compartilhando e discutindo ideias dentro da comunidade cienta­fica, checando constantemente os resultados, sem milagres, mesmo para as mais geniais ideias.

A história acima foi encontrada e costurada um pouco por acaso, refere-se a um tema bem distinto dos grandes problemas que enfrentamos no momento, além de distante no tempo. Mas talvez ajude a entender como cientistas podem propagar desinformação, como a desinformação viraliza e como ideias em ciência são desenvolvidas aos poucos, debatidas e verificadas. O caso da suposta vida inteligente em Marte, foi, digamos, inofensivo, e gerou pelo menos um cla¡ssico de ficção cienta­fica. Exemplos atuais são bem mais sombrios.

O “tratamento precoce” da Covid-19 éum desses exemplos sombrios. a€s vanãsperas da efemanãride de um ano do primeiro caso confirmado de Covid-19 no Brasil (26 de fevereiro de 2020), contabilizamos mais de 10 milhões de casos e atéo final do maªs chegaremos a 250 mil mortes, enquanto no portal do Ministanãrio da Saúde, acessado no dia 19/02/2021, sobrevive nota informativa, que ainda recomenda o uso de hidroxicloroquina como tratamento precoce[V].

Ao contra¡rio dos inofensivos canais marcianos, trata-se de uma ilusão que provoca mortes, catapultada do ambiente cienta­fico aos meios de comunicação e a nefastas decisaµes políticas. A origem éum estudo preliminar, realizado a s pressas, com falhas metodola³gicas e apresentando resultados questiona¡veis, encabea§ado por Didier Raoult. Como a ciaªncia, palavra que eu uso indistintamente para designar a forma de conhecimento, sua comunidade e suas instituições, reagiu? Como sempre reage, seja em relação a¡ teoria da relatividade, seja em relação a um medicamento duvidoso. Verificando numa base de dados internacional (Web of Science), observa-se que em 2020 foram publicados 2090 artigos cienta­ficos com a palavra-chave “hydroxychloroquine”. Nãosão trabalhos preliminares, mas textos checados e avaliados. Esse número pode ser comparado ao de 2019, quando foram publicados um total de 569 com o mesmo ta³pico. O que esses números querem dizer? Primeiro que a ciência se mobilizou para verificar se o remanãdio éseguro e se funciona contra a Covid-19. Em segundo lugar, os artigos anteriores a  pandemia, algumas centenas por ano, mostram que, mesmo um remanãdio com uso aprovado hámuito tempo para determinadas outras doena§as, écontinua e perseverante a pesquisa para reavaliar seu manejo e segurança de uso e aplicação.

A segurança e efeito da hidroxicloroquina, precisava e precisa, diz-nos a ciaªncia, ser comprovados por testes clínicos cientificamente rigorosos. E juntando a palavra “hydroxychloroquine” com “clinical trials”, temos 405 documentos na mesma base de dados em 2020. Em 2019 foram 41, ou seja: mesmo em usos aprovados, como contra a mala¡ria, testes clínicos continuam sendo realizados. Mas voltando ao ano de 2020, nota-se que são centenas de testes clínicos e seus resultados variam. Isso depende de vários fatores, pois são realizados em populações diferentes. Em resumo, testes clínicos necessitam de uma meta-análise: comparação, em princa­pio rigorosa, de diferentes testes clínicos, avaliando a qualidade de cada um deles. As meta-análises mostram que a hidroxicloroquina e associados são inaºteis no combate a  Covid-19[VI]. No entanto, atenção: segundo a Web of Science, temos 62 meta-análises de hidroxicloroquina publicadas em 2020. A maioria chega a  mesma conclusão: o remanãdio éineficaz, quando não também inseguro. Mas algumas meta-análises são amba­guas nas suas conclusaµes e, assim, continuam a alimentar a desinformação. Precisara­amos de uma meta-análise de meta-análises? Alguns autores, referindo-se a questões anteriores a  atual pandemia sugerem exatamente isso. Jop de Vrieze no portal Sciencemag adverte[VII]: “Meta-análises são reconhecidas para encerrar debates cienta­ficos. Muitas vezes, no entanto, causam apenas mais controvanãrsia”. E Mark Sigman, entre outros, aponta a necessidade de meta-meta-análises[VIII], discutindo o impacto de escolhas subjetivas nos estudos que deveriam ser objetivos.

Enquanto esses cientistas discutem a importa¢ncia do rigor e da atenção, Didier Raoult, que recentemente admitiu que a cloroquina não funciona, para logo depois voltar atrás, caminha na lamenta¡vel direção oposta. Em uma carta ao editor do “International Journal of Antimicrobial Agents”, publicada no começo de 2021, ele apresenta uma “meta-análise” na qual propaµe que testes clínicos controlados e randomizados não são confia¡veis, pois apresentam resultados divergentes, e que apenas estudos observacionais deveriam ser considerados. Acusa também os estudos que ele não leva em consideração na sua “meta-análise”, como sendo antianãticos[IX]. A proposta ésimplesmente a negação do manãtodo cienta­fico e eliminação total da objetividade em favor de escolhas dominadas pela subjetividade. No extremo, o debate cienta­fico seria encerrado por meta-análises de opiniaµes.

O enfrentamento sanãrio da pandemia tem mostrado a importa¢ncia do compartilhamento de informações, maior colaboração entre pesquisadores e instituições, menos competição e mais coletividade. Mostra também que, isolados, cientistas podem se transformar em anticientistas. Curiosamente (ou não), Didier Raoult desponta naquela tão celebrada lista recente dos 100 mil pesquisadores mais influentes. Ele éo 450º cientista mais influente do mundo segundo as manãtricas que determinam as recompensas, basicamente o número de citações. a‰ possí­vel que estejamos no limiar de ter que reavaliar o que a comunidade cienta­fica estãofazendo com seus valores, seus critanãrios de excelaªncia e o controle desses critanãrios. Talvez alguns artigos deveriam ser assinados por instituições e não por indiva­duos. Para que persevere o que interessa ao conhecimento e ao bem paºblico.

As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com

Peter Schulz 
Professor do Instituto de Fa­sica "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente éprofessor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp. 

 

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