Arte e ciência não são antaga´nicas, mas complementares. Unidas elas podem induzir a fée a esperana§a. Podem testemunhar a história, denunciar injustia§as, elevar o sublime e trazer a tona o que háde melhor no ser humano.

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Se pensarmos em fragmentos de tempos pretanãritos e atuais relacionados a vacina, podemos encontra¡-los, em várias ocasiaµes, refletidos na arte. E, por meio dela, revelam-se histórias, crena§as, informações falsas, esperanças, além de um caminho de expressiva importa¢ncia para a saúde mundial. Assim, obras produzidas no século XIX, bem como manifestações artasticas contempora¢neas — a fotografia e a arte urbana emergem com significativa presença neste texto — são exemplos, aqui, da repercussão de contextos onde vacina e arte se aproximaram. E épossível perceber muito do passado no presente.
Em 1884, o pintor francaªs EugeÌ€ne-Ernest Hillemacher deu tons a obra Edward Jenner vaccinating a boy. Nessa pintura em a³leo sobre tela, a cena se desenrola no interior de uma casa simples, com tijolos acinzentados, bera§o de madeira pra³ximo a s figuras centrais e bules pretos pendurados em uma espanãcie de prateleira. No centro da imagem, vestida com saia volumosa em tom terroso, avental azul, duas pea§as de vestua¡rio na parte superior e cabelos adornados por um toucado branco, a mulher segura o pequeno garoto, quase desnudo, não fosse por um tecido que encobre parte de seu corpo. Ao lado do menino estãoo médico inglês Edward Jenner, que segura firmemente o braa§o esquerdo da criana§a e nela insere uma substância, sob os olhares atentos de um homem e de uma menina mais velha. Ao fundo estãodois animais, possivelmente vacas, além de palhas no pilar de sustentação.
Em 1796, quando a varaola ainda atormentava o mundo, carregando uma expressiva taxa de mortalidade, bem como ocasionando temaveis erupções na pele, levando a desfiguração, Jenner, fazendo uso de conhecimentos existentes naquele tempo, além de observações, em relevante experimentação, extraiu fragmentos da paºstula provocada pela varaola bovina em uma mulher que ordenhava vacas e estava infectada por tal doena§a, inserindo-os em um menino. Tempos depois, o médico inoculou naquele garoto o laquido retirado de uma ferida de varaola, no entanto a criana§a, protegida pelo procedimento anterior, não desenvolveu a forma humana da doença infecciosa.
A vacina de Jenner osque foi a primeira desenvolvida com sucesso contra a varaola osencontrou resistências, provenientes, também, do desconhecimento, de alegações falsas e do medo. Na gravura satarica The Cow-Pock-or-the Wonderful Effects of the New Inoculation!, de 1802, de James Gillray, o médico, prestes a vacinar uma mulher, tem ao seu redor diversos pacientes que, de maneira ila³gica, sustentam nas peles erupções no formato de vaca.
Com o transcurso do tempo, éimportante destacar, sobreveio o aprimoramento do conhecimento cientafico. Em maio de 1980, a Organização Mundial da Saúde (OMS) celebrou a erradicação da varaola, uma conquista que se tornou possível graças ao intenso programa de vacinação e a cooperação global executados ao longo de anos.
Na fotografia contempora¢nea, apesar da vacina não aparecer diretamente na sanãrie Marcados, 1981/1983, da fota³grafa suaa§a Claudia Andujar, ela se reflete indiretamente e de forma relevante. A artista, que mora no Brasil desde os anos 1950, viveu por algum tempo com os Yanomami, na regia£o de Catrimani, em Roraima, construindo com eles uma relação. Ocorre que, nos anos 1970, com a construção da rodovia federal Perimetral Norte e a presença de garimpeiros na regia£o, doenças infecciosas chegaram aos indagenas (que, sem imunidade, sofreram uma severa mortandade de seu povo).
Nos idos de 1980, Andujar e dois médicos dirigiram-se a terra Yanomami, na Amaza´nia, para a vacinação dos indagenas. Em preto e branco, a sanãrie de fotografias Marcados repercute o período em que a saúde era uma área crucial a ser tratada. Com o olhar expressivo, fitando a ca¢mera fotogra¡fica, segurando a criana§a no colo ou esboa§ando um sorriso tamido, os indagenas foram fotografados por Andujar. Os Yanomami usavam no pescoa§o, como se fossem colares, placas numeradas; essa numeração e as fotografias foram os modos encontrados para a identificação e cadastramento dos indagenas, possibilitando, assim, o recebimento da vacinação. Danãcadas depois da realização das fotografias, estas alcana§aram o mundo da arte. E, nessa esfera, em uma leitura da obra, pode-se relaciona¡-la e diferencia¡-la, contudo de maneira positiva, de experiências precedentes da própria fota³grafa. De origem judaica, Andujar, ainda adolescente, aos 13 anos, perdeu parte da famalia, que foi levada para campos de concentração. Se confrontarmos com os tempos sombrios decorrentes das atrocidades nazistas, onde pessoas viravam números (ou sambolos) que podiam servir de marcação para a morte, os números naquelas fotografias de Andujar, ao contra¡rio, representavam a marcação para a vida. A vacinação trazia aos corpos dos Yanomami a imunização que precisavam para viver: “marcados para viverâ€, como assinalado, em 2005, por ocasia£o de exposição da fota³grafa.
A primeira vacina contra a poliomielite surgiu em 1955. Antes da imunização, a doença atingiu especialmente criana§as em todo o mundo, tirando de muitas delas a capacidade de andar, de respirar sozinhas, de morar com a familia ou de viver. A artista Frida Kahlo foi uma das vitimas da doena§a. Nascida em 1907, quando a vacina era inexistente, a artista teve poliomielite aos seis anos; como consequaªncia da doena§a: o péesquerdo atrofiado e a perna direita muito fina, fato que lhe rendeu o apelido, quando criana§a, de “Frida da perna de pauâ€. As compridas saias mexicanas que a artista usava, e percebidas em várias de suas obras, eram um meio de esconder as sequelas da infecção e o sofrimento que suportava.
A criana§a pequena, com a cabea§a amparada por uma mulher, recebe a vacina em gotas contra a poliomielite, na aldeia de Sabbatum, Soma¡lia. Na sua direção, reverbera-se uma profusão de olhares, a maioria infantis. A fotografia, em preto e branco, édo fota³grafo Sebastia£o Salgado. Em 2001, Salgado se uniu ao empenho mundial para a eliminação global da poliomielite, ocasionada pelo contagioso poliovarus selvagem, que pode levar a paralisia irreversavel e a morte. O fota³grafo percorreupaíses endaªmicos — a anãpoca —, como andia, Paquistão, República Democra¡tica do Congo, Soma¡lia e Suda£o, onde presenciou o expressivo esfora§o para a exterminação da doena§a, que unia profissionais da saúde e voluntários — efeito da Iniciativa Global para a Erradicação da Pa³lio (GPEI), iniciada em 1988 — em imensa campanha de vacinação contra a doença infecciosa.
O Brasil, após campanhas de vacinação em massa, foi certificado como livre da pa³lio em 1994. Em 2003, Afeganistão, Egito, andia, Niganãria, Nager, Paquistão e Soma¡lia eram os aºnicospaíses onde a poliomielite permanecia endaªmica. A continuação da vacinação massiva e a vigila¢ncia são formas para libertar o planeta dessa terravel doença viral. Uma questãohumanita¡ria. Em agosto de 2020, somente Paquistão e Afeganistão ainda transmitiam o poliovarus selvagem. No entanto, apesar da diminuição de casos da aludida doença (graças a ampla cobertura vacinal e aos esforços mundiais para a erradicação da poliomielite), a vacinação éde extrema importa¢ncia para a proteção contra o varus. Para que pessoas não sejam impedidas de correr, de andar, de se movimentar e de viver.
Com a pandemia da covid-19, manifestações artasticas repercutem a importa¢ncia da vacinação. Em 2020, um muro em Na¡poles, Ita¡lia, foi escolhido como suporte para duas imagens de San Gennaro (também conhecido, no Brasil, como Sa£o Janua¡rio), protetor daquela cidade. As obras, criadas digitalmente, impressas em papel e coladas no muro, lado a lado, são do artista urbano italiano conhecido como Flase. Na primeira, San Gennaro aparece vestido, em tons de amarelo e alaranjado, com o manto e a mitra (paramento litaºrgico, de forma ca´nica, para a cabea§a), além de usar ma¡scara de proteção facial contra o novo coronavarus. Com a ma£o direita, o santo faz um gesto que remete a um movimento oriundo da Antiguidade, ligado a reta³rica cla¡ssica e que entrou no universo cristão. Como se quisesse dizer algo e, para tanto, pedisse atenção. Talvez para muitos a ma£o direita levemente levantada do santo possa, ainda, ser interpretada como uma baªnção dada a cidade da qual éo protetor. Na segunda figura, San Gennaro, vestindo paramentos religiosos na cor laranja, detalhes dourados e crucifixo no pescoa§o, segura um tubo de ensaio preenchido com laquido vermelho escuro. Uma etiqueta amarrada ao tubo indica a palavra “vacinaâ€. Na anãpoca em que a obra foi criada, ainda não havia vacina contra a covid-19, mas esperava-se muito por ela. Nesse contexto, talvez o laquido vermelho da vacina na ma£o de San Gennaro pudesse simbolizar fée confiana§a. Vale lembrar que a Ita¡lia, no inicio da pandemia, foi um dospaíses muito afetados. Além disso, a San Gennaro atribui-se vários milagres.
Com base na tradição, acredita-se que o santo teve, após o seu martario e morte no século IV d.C., o sangue colhido e armazenado no interior de duas ampolas. Em Na¡poles, a féem San Gennaro égrande. Em 1527, a cidade fez um voto com o santo, firmado por contrato notarial — porque no período entre 1526 e aquele ano, eventos como guerra, erupções do Vesaºvio e epidemia afligiam e tiravam a esperana§a da população. Pediram ao santo proteção. Em agradecimento, seria construada uma nova capela na catedral, onde seriam alocados o tesouro, bem como as relaquias do santo. A capela foi inaugurada em 1646. Ademais, destaca-se o fena´meno da liquefação do sangue de San Gennaro, quando, em alguns momentos, a substância sãolida, que os fianãis acreditam se tratar do sangue do santo, transforma-se em laquido, evento conhecido como “o milagre†de San Gennaro, e sinal de bom pressa¡gio. Dito isto, em uma possível leitura da obra do artista urbano Flase, pode-se associar a substância avermelhada do tubo de ensaio (a vacina tão esperada) com o “milagre†da liquefação, simbolizando fée esperana§a.
No segundo semestre de 2020, a obra colocada em um suporte rente a uma parede de Roma, Ita¡lia, traz a imagem de Santo Esteva£o envolto em vestimenta que parece misturar tons de verde e azul. O santo carrega um incensa¡rio na ma£o direita, enquanto, com a esquerda, aperta uma seringa que emana uma substância alaranjada. Nas laterais da imagem, épossível ler: “Sagrada Vacinaâ€. Feita pelo artista urbano Mauro Pallotta, conhecido como Maupal, a obra também remete a s criações de artistas bizantinos, trazendo alguns elementos daquela arte, como frontalidade e bidimensionalidade, além do fundo que remete ao dourado (em uma simbologia de cores, na arte bizantina, o canãu dourado do fundo tinha ligação com a salvação).
Perto do Natal de 2020, em uma parede de Barcelona, Espanha, o artista urbano conhecido como Tvboy apresentou a imagem de um Papai Noel vestido de verde, gorro e luvas azuis. Com a lata de spray vermelha, a figura natalina substitui a palavra Navidad, de Feliz Navidad, por Sanidad (algo como trocar a palavra “Natal†por “Saúdeâ€); enquanto, no ombro esquerdo, sustenta um saco amarelo com os dizeres: “Vacina para a covid-19â€. Em sua conta no Instagram, o artista ressaltou: “Querido Papai Noel, vocêjá sabe…â€.
No Brasil, ao longo do segundo semestre de 2020, o artista urbano Eduardo Kobra apresentou, nas suas redes sociais, obras que destacam a vacina para o combate da covid-19. Em uma delas, o recipiente que guarda a vacina estãoaberto e parte da substância laquida, que preenche o seu interior, toma forma de uma ave a ala§ar voo, talvez uma pomba, como se buscasse encontrar a liberdade. Ao fundo estãoas formas geomanãtricas, caracteristicas dos trabalhos do artista, remetendo ao mapa do mundo. Na outra imagem, o inva³lucro aberto da vacina liberta várias borboletas. Cada uma delas alude a umpaís diferente. A representante do Brasil estãopousada bem perto do vidro da vacina. No fundo da obra, os elementos geomanãtricos lembram uma borboleta maior. A borboleta pode simbolizar muitas coisas, a depender do povo, da cultura, da religia£o, da regia£o. Sua metamorfose pode simbolizar a transformação. Desse modo, talvez a obra do artista diga muito sobre mudança, conhecimento cientafico, proteção, liberdade e esperana§a atrelados, no nosso tempo, a importa¢ncia do esparito cavico e da vacinação massiva.
Arte e ciência não são antaga´nicas, mas complementares. Unidas elas podem induzir a fée a esperana§a. Podem testemunhar a história, denunciar injustia§as, elevar o sublime e trazer a tona o que háde melhor no ser humano. A abordagem de vacinas, por meio da arte, contribui para expressar o passado, aproxima¡-lo do presente, bem como fortificar a releva¢ncia da imunização em massa para conter a disseminação de doenças e salvar vidas.
As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com
Carolina Rezende
Mestranda do Programa de PoÌs-Graduação Interunidades em EsteÌtica e HistoÌria da Arte (PGEHA) da USP, e Edson Leite, professor titular do Museu de Arte Contempora¢nea da USP e do PGEHA-USP