Opinião

Alguns encontros entre arte e vacina
Arte e ciência não são antaga´nicas, mas complementares. Unidas elas podem induzir a  fée a  esperana§a. Podem testemunhar a história, denunciar injustia§as, elevar o sublime e trazer a  tona o que háde melhor no ser humano.
Por Carolina Rezende e Edson Leite - 11/03/2021


Reprodução

Se pensarmos em fragmentos de tempos pretanãritos e atuais relacionados a  vacina, podemos encontra¡-los, em várias ocasiaµes, refletidos na arte. E, por meio dela, revelam-se histórias, crena§as, informações falsas, esperanças, além de um caminho de expressiva importa¢ncia para a saúde mundial. Assim, obras produzidas no século XIX, bem como manifestações arta­sticas contempora¢neas — a fotografia e a arte urbana emergem com significativa presença neste texto — são exemplos, aqui, da repercussão de contextos onde vacina e arte se aproximaram. E épossí­vel perceber muito do passado no presente.
Em 1884, o pintor francaªs EugeÌ€ne-Ernest Hillemacher deu tons a  obra Edward Jenner vaccinating a boy. Nessa pintura em a³leo sobre tela, a cena se desenrola no interior de uma casa simples, com tijolos acinzentados, bera§o de madeira pra³ximo a s figuras centrais e bules pretos pendurados em uma espanãcie de prateleira. No centro da imagem, vestida com saia volumosa em tom terroso, avental azul, duas pea§as de vestua¡rio na parte superior e cabelos adornados por um toucado branco, a mulher segura o pequeno garoto, quase desnudo, não fosse por um tecido que encobre parte de seu corpo. Ao lado do menino estãoo médico inglês Edward Jenner, que segura firmemente o braa§o esquerdo da criana§a e nela insere uma substância, sob os olhares atentos de um homem e de uma menina mais velha. Ao fundo estãodois animais, possivelmente vacas, além de palhas no pilar de sustentação.

Em 1796, quando a vara­ola ainda atormentava o mundo, carregando uma expressiva taxa de mortalidade, bem como ocasionando tema­veis erupções na pele, levando a  desfiguração, Jenner, fazendo uso de conhecimentos existentes naquele tempo, além de observações, em relevante experimentação, extraiu fragmentos da paºstula provocada pela vara­ola bovina em uma mulher que ordenhava vacas e estava infectada por tal doena§a, inserindo-os em um menino. Tempos depois, o médico inoculou naquele garoto o la­quido retirado de uma ferida de vara­ola, no entanto a criana§a, protegida pelo procedimento anterior, não desenvolveu a forma humana da doença infecciosa.

A vacina de Jenner osque foi a primeira desenvolvida com sucesso contra a vara­ola osencontrou resistências, provenientes, também, do desconhecimento, de alegações falsas e do medo. Na gravura sata­rica The Cow-Pock-or-the Wonderful Effects of the New Inoculation!, de 1802, de James Gillray, o médico, prestes a vacinar uma mulher, tem ao seu redor diversos pacientes que, de maneira ila³gica, sustentam nas peles erupções no formato de vaca.

Com o transcurso do tempo, éimportante destacar, sobreveio o aprimoramento do conhecimento cienta­fico. Em maio de 1980, a Organização Mundial da Saúde (OMS) celebrou a erradicação da vara­ola, uma conquista que se tornou possí­vel graças ao intenso programa de vacinação e a  cooperação global executados ao longo de anos.

Na fotografia contempora¢nea, apesar da vacina não aparecer diretamente na sanãrie Marcados, 1981/1983, da fota³grafa sua­a§a Claudia Andujar, ela se reflete indiretamente e de forma relevante. A artista, que mora no Brasil desde os anos 1950, viveu por algum tempo com os Yanomami, na regia£o de Catrimani, em Roraima, construindo com eles uma relação. Ocorre que, nos anos 1970, com a construção da rodovia federal Perimetral Norte e a presença de garimpeiros na regia£o, doenças infecciosas chegaram aos inda­genas (que, sem imunidade, sofreram uma severa mortandade de seu povo).

Nos idos de 1980, Andujar e dois médicos dirigiram-se a  terra Yanomami, na Amaza´nia, para a vacinação dos inda­genas. Em preto e branco, a sanãrie de fotografias Marcados repercute o período em que a saúde era uma área crucial a ser tratada. Com o olhar expressivo, fitando a ca¢mera fotogra¡fica, segurando a criana§a no colo ou esboa§ando um sorriso ta­mido, os inda­genas foram fotografados por Andujar. Os Yanomami usavam no pescoa§o, como se fossem colares, placas numeradas; essa numeração e as fotografias foram os modos encontrados para a identificação e cadastramento dos inda­genas, possibilitando, assim, o recebimento da vacinação. Danãcadas depois da realização das fotografias, estas alcana§aram o mundo da arte. E, nessa esfera, em uma leitura da obra, pode-se relaciona¡-la e diferencia¡-la, contudo de maneira positiva, de experiências precedentes da própria fota³grafa. De origem judaica, Andujar, ainda adolescente, aos 13 anos, perdeu parte da fama­lia, que foi levada para campos de concentração. Se confrontarmos com os tempos sombrios decorrentes das atrocidades nazistas, onde pessoas viravam números (ou sa­mbolos) que podiam servir de marcação para a morte, os números naquelas fotografias de Andujar, ao contra¡rio, representavam a marcação para a vida. A vacinação trazia aos corpos dos Yanomami a imunização que precisavam para viver: “marcados para viver”, como assinalado, em 2005, por ocasia£o de exposição da fota³grafa.

A primeira vacina contra a poliomielite surgiu em 1955. Antes da imunização, a doença atingiu especialmente criana§as em todo o mundo, tirando de muitas delas a capacidade de andar, de respirar sozinhas, de morar com a familia ou de viver. A artista Frida Kahlo foi uma das vitimas da doena§a. Nascida em 1907, quando a vacina era inexistente, a artista teve poliomielite aos seis anos; como consequaªncia da doena§a: o péesquerdo atrofiado e a perna direita muito fina, fato que lhe rendeu o apelido, quando criana§a, de “Frida da perna de pau”. As compridas saias mexicanas que a artista usava, e percebidas em várias de suas obras, eram um meio de esconder as sequelas da infecção e o sofrimento que suportava.

A criana§a pequena, com a cabea§a amparada por uma mulher, recebe a vacina em gotas contra a poliomielite, na aldeia de Sabbatum, Soma¡lia. Na sua direção, reverbera-se uma profusão de olhares, a maioria infantis. A fotografia, em preto e branco, édo fota³grafo Sebastia£o Salgado. Em 2001, Salgado se uniu ao empenho mundial para a eliminação global da poliomielite, ocasionada pelo contagioso poliova­rus selvagem, que pode levar a  paralisia irreversa­vel e a  morte. O fota³grafo percorreupaíses endaªmicos — a  anãpoca —, como andia, Paquistão, República Democra¡tica do Congo, Soma¡lia e Suda£o, onde presenciou o expressivo esfora§o para a exterminação da doena§a, que unia profissionais da saúde e voluntários — efeito da Iniciativa Global para a Erradicação da Pa³lio (GPEI), iniciada em 1988 — em imensa campanha de vacinação contra a doença infecciosa.

O Brasil, após campanhas de vacinação em massa, foi certificado como livre da pa³lio em 1994. Em 2003, Afeganistão, Egito, andia, Niganãria, Na­ger, Paquistão e Soma¡lia eram os aºnicospaíses onde a poliomielite permanecia endaªmica. A continuação da vacinação massiva e a vigila¢ncia são formas para libertar o planeta dessa terra­vel doença viral. Uma questãohumanita¡ria. Em agosto de 2020, somente Paquistão e Afeganistão ainda transmitiam o poliova­rus selvagem. No entanto, apesar da diminuição de casos da aludida doença (graças a  ampla cobertura vacinal e aos esforços mundiais para a erradicação da poliomielite), a vacinação éde extrema importa¢ncia para a proteção contra o va­rus. Para que pessoas não sejam impedidas de correr, de andar, de se movimentar e de viver.

Com a pandemia da covid-19, manifestações arta­sticas repercutem a importa¢ncia da vacinação. Em 2020, um muro em Na¡poles, Ita¡lia, foi escolhido como suporte para duas imagens de San Gennaro (também conhecido, no Brasil, como Sa£o Janua¡rio), protetor daquela cidade. As obras, criadas digitalmente, impressas em papel e coladas no muro, lado a lado, são do artista urbano italiano conhecido como Flase. Na primeira, San Gennaro aparece vestido, em tons de amarelo e alaranjado, com o manto e a mitra (paramento litaºrgico, de forma ca´nica, para a cabea§a), além de usar ma¡scara de proteção facial contra o novo coronava­rus. Com a ma£o direita, o santo faz um gesto que remete a um movimento oriundo da Antiguidade, ligado a  reta³rica cla¡ssica e que entrou no universo cristão. Como se quisesse dizer algo e, para tanto, pedisse atenção. Talvez para muitos a ma£o direita levemente levantada do santo possa, ainda, ser interpretada como uma baªnção dada a  cidade da qual éo protetor. Na segunda figura, San Gennaro, vestindo paramentos religiosos na cor laranja, detalhes dourados e crucifixo no pescoa§o, segura um tubo de ensaio preenchido com la­quido vermelho escuro. Uma etiqueta amarrada ao tubo indica a palavra “vacina”. Na anãpoca em que a obra foi criada, ainda não havia vacina contra a covid-19, mas esperava-se muito por ela. Nesse contexto, talvez o la­quido vermelho da vacina na ma£o de San Gennaro pudesse simbolizar fée confiana§a. Vale lembrar que a Ita¡lia, no ini­cio da pandemia, foi um dospaíses muito afetados. Além disso, a San Gennaro atribui-se vários milagres.

Com base na tradição, acredita-se que o santo teve, após o seu marta­rio e morte no século IV d.C., o sangue colhido e armazenado no interior de duas ampolas. Em Na¡poles, a féem San Gennaro égrande. Em 1527, a cidade fez um voto com o santo, firmado por contrato notarial — porque no período entre 1526 e aquele ano, eventos como guerra, erupções do Vesaºvio e epidemia afligiam e tiravam a esperana§a da população. Pediram ao santo proteção. Em agradecimento, seria construa­da uma nova capela na catedral, onde seriam alocados o tesouro, bem como as rela­quias do santo. A capela foi inaugurada em 1646. Ademais, destaca-se o fena´meno da liquefação do sangue de San Gennaro, quando, em alguns momentos, a substância sãolida, que os fianãis acreditam se tratar do sangue do santo, transforma-se em la­quido, evento conhecido como “o milagre” de San Gennaro, e sinal de bom pressa¡gio. Dito isto, em uma possí­vel leitura da obra do artista urbano Flase, pode-se associar a substância avermelhada do tubo de ensaio (a vacina tão esperada) com o “milagre” da liquefação, simbolizando fée esperana§a.

No segundo semestre de 2020, a obra colocada em um suporte rente a uma parede de Roma, Ita¡lia, traz a imagem de Santo Esteva£o envolto em vestimenta que parece misturar tons de verde e azul. O santo carrega um incensa¡rio na ma£o direita, enquanto, com a esquerda, aperta uma seringa que emana uma substância alaranjada. Nas laterais da imagem, épossí­vel ler: “Sagrada Vacina”. Feita pelo artista urbano Mauro Pallotta, conhecido como Maupal, a obra também remete a s criações de artistas bizantinos, trazendo alguns elementos daquela arte, como frontalidade e bidimensionalidade, além do fundo que remete ao dourado (em uma simbologia de cores, na arte bizantina, o canãu dourado do fundo tinha ligação com a salvação).

Perto do Natal de 2020, em uma parede de Barcelona, Espanha, o artista urbano conhecido como Tvboy apresentou a imagem de um Papai Noel vestido de verde, gorro e luvas azuis. Com a lata de spray vermelha, a figura natalina substitui a palavra Navidad, de Feliz Navidad, por Sanidad (algo como trocar a palavra “Natal” por “Saúde”); enquanto, no ombro esquerdo, sustenta um saco amarelo com os dizeres: “Vacina para a covid-19”. Em sua conta no Instagram, o artista ressaltou: “Querido Papai Noel, vocêjá sabe…”.

No Brasil, ao longo do segundo semestre de 2020, o artista urbano Eduardo Kobra apresentou, nas suas redes sociais, obras que destacam a vacina para o combate da covid-19. Em uma delas, o recipiente que guarda a vacina estãoaberto e parte da substância la­quida, que preenche o seu interior, toma forma de uma ave a ala§ar voo, talvez uma pomba, como se buscasse encontrar a liberdade. Ao fundo estãoas formas geomanãtricas, caracteri­sticas dos trabalhos do artista, remetendo ao mapa do mundo. Na outra imagem, o inva³lucro aberto da vacina liberta várias borboletas. Cada uma delas alude a umpaís diferente. A representante do Brasil estãopousada bem perto do vidro da vacina. No fundo da obra, os elementos geomanãtricos lembram uma borboleta maior. A borboleta pode simbolizar muitas coisas, a depender do povo, da cultura, da religia£o, da regia£o. Sua metamorfose pode simbolizar a transformação. Desse modo, talvez a obra do artista diga muito sobre mudança, conhecimento cienta­fico, proteção, liberdade e esperana§a atrelados, no nosso tempo, a  importa¢ncia do espa­rito ca­vico e da vacinação massiva.

Arte e ciência não são antaga´nicas, mas complementares. Unidas elas podem induzir a  fée a  esperana§a. Podem testemunhar a história, denunciar injustia§as, elevar o sublime e trazer a  tona o que háde melhor no ser humano. A abordagem de vacinas, por meio da arte, contribui para expressar o passado, aproxima¡-lo do presente, bem como fortificar a releva¢ncia da imunização em massa para conter a disseminação de doenças e salvar vidas.

As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com

Carolina Rezende
Mestranda do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte (PGEHA) da USP, e Edson Leite, professor titular do Museu de Arte Contempora¢nea da USP e do PGEHA-USP

 

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