Opinião

Negacionismo na pandemia: a virulência da ignora¢ncia
Nesse primeiro artigo, de uma sanãrie de três, Luciana Rathsam mostra como o negacionismo e a falta de investimento na ciência comprometem a superaça£o da crise e o desenvolvimento dopaís.
Por Luciana Rathsam - 20/04/2021


COVID-19 no Brasil | Negacionismo

Durante a pandemia do Covid-19, o negacionismo no Brasil tomou proporções alarmantes, manifestando-se na negação ou minimização da gravidade da doena§a, no boicote a s medidas preventivas, na subnotificação dos dados epidemiola³gicos, na omissão de trazr estratanãgias nacionais de saúde, no incentivo a tratamentos terapaªuticos sem validação cienta­fica e na tentativa de descredibilizar a vacina, entre outros exemplos. O negacionismo acentua incertezas, influencia na adesão da população aos protocolos de prevenção, compromete a resposta dopaís a  pandemia e ameaça a democracia.

“O negacionismo vai além de um boato ou fake news pontual. a‰ um sistema de crena§as que, sistematicamente, nega o conhecimento objetivo, a cra­tica pertinente, as evidaªncias empa­ricas, o argumento la³gico, as premissas de um debate paºblico racional, e tem uma rede organizada de desinformação. Essa atitude sistema¡tica e articulada de negação para ocultar interesses pola­tico-ideola³gicos muitas vezes escusos, que tem sua origem nos debates do Holocausto, éinanãdita no Brasil”, afirma Marcos Napolitano, professor de Hista³ria do Brasil Independente e docente-orientador no Programa de Hista³ria Social da Universidade de Sa£o Paulo (USP).

Os negacionismos (neonazismo, criacionismo, terraplanismo, entre outros) podem ser motivados por interesses diversos e os grupos de negacionistas são distintos entre si, mas tem caracteri­sticas em comum, como o oportunismo pola­tico e a incoeraªncia, destaca Yurij Castelfranchi, professor do departamento de sociologia e antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Em alguns casos ocorre uma dissociação cognitiva: as evidaªncias e fatos entram em choque com valores ou crena§as subjetivas, então o negacionista seleciona uma narrativa alternativa para explicar a realidade.  Nesse contexto, a coeraªncia torna-se irrelevante. Um exemplo disso éo modo como os discursos negacionistas em relação a  pandemia foram se a modificando: no começo, os negacionistas diziam que a Covid era uma farsa, uma “gripezinha”. Depois, admitiram a existaªncia da doena§a, mas negaram a sua gravidade e criaram teorias conspirata³rias, atribuindo aos chineses a criação do coronava­rus, como uma suposta arma biológica. O mesmo fena´meno foi verificado em relação a s formas de prevenção da doena§a. “Quem nega as evidaªncias, continuara¡ negando e ajustando a história ad hoc a cada momento”, destaca Castelfranchi. “A ignora¢ncia não écausa do negacionismo, mas sua consequaªncia, e fabricada propositalmente. a‰ uma construção articulada por pessoas que possuem alta­ssima informação e meios sofisticados de produzir comunicação e que constroem Espaços seletivos, no qual grupos enormes de pessoas são expostas a  desinformação”.

Falsas controvanãrsias e inverdades convenientes

Muitas questões sobre o Covid-19 tem sido alvo de daºvidas e debates entre especialistas, o que énatural no processo de construção do conhecimento cienta­fico. O negacionismo, por sua vez, nega evidaªncias e simula controvanãrsias onde na verdade háconsenso.  “a‰ preciso distinguir entre o pensamento crítico no campo das ciências e a formulação negacionista no plano da opinia£o pública”, adverte Napolitano.

O livro Merchants of doubt (Mercadores da daºvida), de Naomi Oreskes e Erik Conway, expaµe como a opinia£o pública pode ser manipulada a partir de falsas controvanãrsias e éuma referaªncia obrigata³ria sobre essa questão. A negação dos malefa­cios do tabagismo e o negacionismo ambiental são alguns exemplos trazidos pelo livro de como a estratanãgia negacionista pode servir a interesses econa´micos e pola­ticos. “O negacionismo não émero sina´nimo de desinformação nas sociedades. Na verdade, éresultado de disputas de grupos de interesse que procuram exatamente camuflar suas motivações e ganhos, inventando controvanãrsias cienta­ficas e falta de consensos na ciaªncia, mesmo nos casos em que eles inexistem, para atravancar a sua efetivação em políticas, ou para direciona¡-las em conformidade aos seus interesses”, esclarece a professora Dominichi Miranda de Sa¡, do Departamento de Pesquisa em Hista³ria das Ciências e da Saúde (DEPES) da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.  

Para Napolitano, o negacionismo estãoligado a amplos grupos sociais que não se sentem representados pelos arranjos pola­ticos e econa´micos dominantes no mundo globalizado e que julgam que as instituições sociais consolidadas - imprensa, universidades, sistemas pola­ticos, organismos de governana§a internacional - são controladas por interesses econa´micos dos poderosos. “Note que eles partem de uma percepção cra­tica que em si não édescabida, embora genanãrica demais - a influaªncia do poder econa´mico ou pola­tico no "sistema" - para negar as bases culturais e institucionais das democracias modernas. Sa£o grupos fundamentalmente conservadores, baseados em valores diversos - religiosos, identita¡rios, anãtnicos, nacionalistas - manejados por lideres pola­ticos oportunistas, mas que oferecem uma sensação de pertencimento e um conjunto de soluções simpla³rias para "melhorar" o mundo”, pondera o professor.

Ameaa§a e resistência

Negacionismo, teorias conspirata³rias e pseudociaªncia são estratanãgias tipicas de governos autorita¡rios.  “O negacionismo destra³i a confianção das pessoas nas instituições democra¡ticas e atinge diretamente o debate racional, a argumentação e a escuta, portanto representa uma ameaça a  democracia”, defende Castelfranchi. Na Alemanha nazista, o negacionismo levou a  rejeição de qualquer ciência produzida por judeus, como a teoria da relatividade de Einstein. No regime stalinista, as ideias evolucionistas foram descartadas por seu “cara¡ter burguaªs”.

Ainda que as instituições democra¡ticas estejam sob ataque sistema¡tico no Brasil, a visão dos brasileiros em relação a  ciência épredominantemente positiva, conforme aponta a pesquisa "Percepção Paºblica da Ciência e Tecnologia no Brasil”, realizada pelo Ministanãrio da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) e o Centro de Gestãoe Estudos Estratanãgicos (CGEE) em 2019. O pra³prio discurso negacionista reconhece o poder da ciência quando utiliza argumentos tanãcnico-cienta­ficos ou quando busca atribuir a algum cientista uma determinada ideia, observa Castelfranchi. “Mas claro, o movimento égrande e perigoso, e conta com armas poderosas, como o funcionamento da desinformação na internet”.

A tentativa de deslegitimar a ciência énociva para a sociedade, especialmente nesse momento de crise sanita¡ria. O Brasil possui vasta experiência no enfrentamento de epidemias e a reconhecida expertise em pesquisas e prática s relacionadas a  Saúde Paºblica. Conforme lembra Miranda de Sa¡, as epidemias estiveram na origem da criação de algumas importantes instituições, como o Instituto Butanta£ em Sa£o Paulo e do Instituto Sorotera¡pico no Rio, atual Fiocruz, criados para a produção de vacina e soro contra a peste buba´nica, que chegou ao Brasil na virada do século 19 para o século 20.  “As instituições se diversificaram muito depois de seus anos iniciais e tem realizado, há120 anos, contribuições seminais a  pesquisa, ao ensino e a  produção de imunobiola³gicos nopaís, e não apenas nas ocasiaµes de irrupção de emergaªncias. Atualmente, como acompanhamos todos, égraças a  conjunção de sua expertise hista³rica no enfrentamento de crises sanita¡rias com suas maºltiplas áreas de atuação, da pesquisa médica a  produção de medicamentos e vacinas, que temos, com ambas, a nossa única chance de imunização em grande escala contra a Covid-19 no Brasil”, observa a pesquisadora, e acrescenta: “Os cientistas não tem se furtado ao seu compromisso com opaís, como temos visto. E a pandemia aumentou muito o interesse social na ciência O grave éque sofra boicote, inclusive por autoridades públicas no Brasil.”

A crise que atravessamos deve servir como oportunidade para definir um programa de ação. Entre as medidas priorita¡rias desse programa, defende Miranda de Sa¡, estãoo investimento permanente na ciência e a valorização do sistema paºblico de saúde. As respostas pontuais a  emergaªncia sanita¡ria e o debate excludente entre economia e saúde são insuficientes, frisa a pesquisadora:  “Vamos ter, como diz o historiador israelense Yuval Harari, de rever fronteiras: entre disciplinas, porque a complexidade do enfrentamento de pandemias requer saberes e colaboração transdisciplinares; entrepaíses, em prol da solidariedade e da cooperação; e entre o mundo humano e o dos animais não humanos, com revisão do pra³prio antropocentrismo e da proeminaªncia que os humanos acham que exercem no mundo, que afinal não nos éexclusivo”.

*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com

Luciana Rathsam
Editora e roteirista, formada em Ciências Biola³gicas (IB/Unicamp), com especialização em GestãoAmbiental (Faculdade de Saúde Paºblica/USP) e aluna da turma 2019-2020 do curso de Especialização em Jornalismo Cienta­fico do Labjor (Unicamp).

 

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