Saúde

Unicamp produz fa¡rmaco essencial para transplantados e da lista de alto custo do SUS
Grupo da Faculdade de Engenharia Quí­mica (FEQ) segue trabalhando para baratear o processamento do tacrolimo, que evita ataque de anticorpos a enxertos
Por Luiz Sugimoto - 03/03/2020


Alessandra Suzin Bertan: testando novo filtro por membranas para obter um fa¡rmaco
o mais puro possí­velmais puro possí­vel.”

Pelo menos desde o final de 2016, a imprensa vem noticiando problemas na distribuição de um imunossupressor essencial para pacientes que receberam transplantes de rim, fa­gado, pa¢ncreas e coração: éo tacrolimo, que associado a outros fa¡rmacos evita que os anticorpos ataquem o denominado enxerto; se ele não for tomado regularmente, a pessoa pode perder o órgão transplantado e, em alguns casos, vir a a³bito. No Brasil, que possui o maior sistema paºblico de transplantes de órgãos do mundo, o tacrolimo ostambém recomendado para doenças autoimunes como artrite reumatoide, asma bra´nquica e desordens dermatola³gicas como o vitiligo osestãoinclua­do na lista de medicamentos de alto custo do SUS (Sistema ašnico de Saúde).

Um grupo de pesquisadores da Unicamp trabalha nos últimos anos para reverter este cena¡rio, produzindo o tacrolimo em laboratório, recorrendo a fontes alternativas que aumentem a produção do fa¡rmaco e barateiem o custo para o sistema de saúde. “A dependaªncia da medicação também traz sofrimento psicola³gico ao transplantado, que enfrenta fila no SUS na expectativa de conseguir ou não a medicação. A pessoa são mantanãm a sobrevida do enxerto controlado graças ao fornecimento conta­nuo do medicamento”, enfatiza o professor Marco Auranãlio Cremasco, que coordena as pesquisas na Faculdade de Engenharia Quí­mica (FEQ).

A Coordenadoria de Assistaªncia Farmacaªutica, órgão paulista com a missão de garantir e ampliar o acesso a medicamentos para a população, divulgou nota informando ter solicitado, para o primeiro trimestre de 2019, 592,2 mil comprimidos de tacrolimo de 5mg e 10,3 milhões de 1mg, mas recebeu do governo federal, respectivamente, 436,1 mil e 6,4 milhões de unidades. Pesquisa feita em Campinas, onde fica o Hospital de Cla­nicas (HC) da Unicamp, um dos principais centros de transplantes dopaís, levantou prea§os do tacrolimo no mercado variando de R$ 680 a R$ 1.234 para 100 ca¡psulas de 1 mg oso alto custo éatribua­do, entre outras questões, a uma produção ainda não consolidada no Brasil, a uma baixa produção de tacrolimo na fermentação e ao processo de purificação complexo.

Marco Auranãlio Cremasco já orientou duas pesquisas de doutorado e uma de mestrado envolvendo o tacrolimo, defendidas em 2018 e 2019, havendo outra dissertação de mestrado em andamento. “O tacrolimo éum metaba³lito secunda¡rio, produzido via fermentação de várias bactanãrias do gaªnero Streptomyces, em particular da S. tsucubaensis. Esse fa¡rmaco foi descoberto na década de 1980 por pesquisadores da Farmacaªutica Fujisawa, liderados pelo professor [Tohru] Kino, que verificaram sua atividade imunossupressora para rim e depois para fa­gado. Em 1994, a FDA [Food and Drug Administration] aderiu a  medicação. Antes, os transplantados utilizavam a ciclosporina na prevenção de rejeição de enxertos, mas se descobriu que o tacrolimo écerca de dez vezes mais eficaz, o que traz uma vantagem enorme, como a redução da dose.”

Fermentação
Coube ao aluno Jean Vina­cius Moreira produzir tacrolimo em meio la­quido por bactanãria S. tsukubaensis, importada da Alemanha, a partir da fermentação de maltose e de glicose como fontes prima¡rias de carbono, bem como de peptona (substrato) de soja e de licor a­ngreme de milho como fontes de nitrogaªnio ose com sucesso. Nesta tese de doutorado, o autor traz um hista³rico do tacrolimo, desde que foi identificado em amostra de caldo fermentado por aquela bactanãria, isolada de solo da regia£o do monte Tsukuba, no Japa£o. “Em 1987, os cientistas da Fujisawa Pharmaceutical Company já haviam elucidado a estrutura química do tacrolimo (FK506), assim como seu potente efeito imunossupressor, as condições de fermentação, as técnicas de purificação do fa¡rmaco e as caracteri­sticas fa­sico-químicas e biológicas.”

Jean Moreira lembra que o grupo da Fujisawa foi pioneiro, mas vencida a patente, outras empresas entraram no mercado, que possui elevado potencial econa´mico. “Em 2016, a comercialização de medicamentos derivados do tacrolimo alcana§ou 1,8 bilha£o de da³lares, valor que representa 15,4% do mercado mundial de imunossupressores. No Brasil, onde 95% dos transplantes são feitos com recursos paºblicos, o tacrolimo, inicialmente, foi aprovado para comercialização com indicação especifica de resgate em transplantes de rins e de fa­gado. Entre 2010 e 2014, o InCor (Instituto do Coração da USP) estudou o uso do tacrolimo em transplantes carda­acos e, em 2015, o fa¡rmaco passou a incorporar os protocolos de imunossupressão também para o coração.”

Na opinia£o do pesquisador, sua tese contribuiu para viabilizar a ideia original do grupo da Unicamp, que era de primeiramente produzir o tacrolimo, o que ninguanãm tinha feito na academia no Brasil. “Alcana§amos uma produtividade máxima entre 112 e 116 miligramas por litro. Como os protocolos terapaªuticos, em geral, indicam ao transplantado de 1mg a 2mg por dia, 112mg da£o a impressão de ser bastante. Sa³ que essa quantidade estãono caldo fermentado, faltando ainda todo o processo de purificação atéfazer o fa¡rmaco chegar ao paciente osconsiderando as perdas, o resultado éum valor baixo. De qualquer forma, podemos dizer que cheguei a uma produtividade alta ao longo de toda a pesquisa, partindo de 10mg na primeira fermentação atéuma escala doze vezes maior.”

Jean Vina­cius Moreira conseguiu dados de 2015 sobre o custo dos transplantes no Brasil, que passa de R$ 1 bilha£o por ano, sendo que R$ 300 milhões deste total são destinados a  parte de manutenção dos pacientes. “Ignoro se a produção de tacrolimo atende a  demanda nopaís, mas tivemos recorraªncias de não fornecimento em 2016 e em 2017, e a segunda no ano passado não sei se pelos custos ou por baixa produtividade. A farmacaªutica brasileira Libbs produz tacrolimo na unidade de Embu das Artes [SP], enquanto a Johnson & Johnson élider mundial na produção, não são do fa¡rmaco contra rejeição como da pomada utilizada no tratamento de vitiligo e outras desordens dermatola³gicas.” A Libbs, que firmou parceria com a Fiocruz (Farmanguinhos) para transferaªncia da tecnologia nacional, estima em 25 mil os transplantados de rim e fígado que consomem o tacrolimo nopaís.

Purificação

Wilson Murilo Ferrari, em sua pesquisa de doutorado, cumpriu a etapa seguinte para produção do tacrolimo por S. tsukubaensis, com um processo inovador para a purificação do caldo fermentado. “O trabalho teve como objetivo desenvolver um processo robusto e inanãdito para a purificação do tacrolimo proveniente de qualquer meio fermentativo. O processamento consiste, em linhas gerais, na pré-purificação do caldo, com a sequaªncia de purificação por meio de técnicas cromatogra¡ficas e cristalização do produto final”, explicar o autor da tese. “A princa­pio, eu trabalharia apenas na purificação do tacrolimo, mas julgamos necessa¡rio incluir a parte de produção, adotando diferentes fontes de carbono, especialmente a³leos brasileiros, sendo que o de castanha-do-para¡ apresentou os melhores resultados.”

Ferrari explica que a produção de tacrolimo écomplexa justamente por conta do processo de purificação, e por se tratar de uma molanãcula com produtividade naturalmente baixa. “Do ponto de vista tanãcnico, em muitos processos temos problemas para isola¡-la: o tacrolimo éuma molanãcula grande, possuindo mais de 40 carbonos em sua estrutura, além de ser produzido juntamente com outras moléculas ana¡logas, a s vezes com uma única ligação diferente, o que torna difa­cil estabelecer um processo que consiga fazer a diferenciação de ligações pequenas. Por isso, buscamos um sistema refinado de purificação.”

De acordo com o pesquisador, chegou-se a uma pureza bem elevada, superior a de 99%. “Isso émuito importante, primeiro, porque a janela terapaªutica para aplicação do medicamento émuito pequena, ou seja, a pouca quantidade fornecida ao paciente exige uma elevada pureza. Mas éum imunossupressor bem potente dentro do organismo. Devido a  baixa quantidade, a prioridade éa qualidade e a otimização do processo também para diminuir o custo de produção do fa¡rmaco. Ainda podemos melhorar a produtividade com algumas adaptações, mas o fundamental já foi feito: desenvolver todo o processo, da produção do tacrolimo atésua purificação. Conseguir um órgão éa maior dificuldade para um transplante, por isso, perdaª-lo causa um sofrimento enorme”.

Patente no INPI

O professor Cremasco informa que a tese de Ferrari sobre o processamento do tacrolimo resultou em depa³sito de patente no INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial), e que a bactanãria Streptomyces tsukubaensis estãoarmazenada no CPQBA (Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Quí­micas, Biola³gicas e Agra­colas) da Unicamp para prosseguimento das pesquisas. “Com o depa³sito de patente abrimos a possibilidade de ampliar a escala de produção do tacrolimo. Já conhecemos o caminho das pedras e a busca de transferaªncia da tecnologia para a indústria cabe a  Inova osAgência de Inovação da Unicamp, que possui expertise para isso. Atualmente, procuramos antecipar o scale-up [aumento de escala] de várias etapas no processamento do fa¡rmaco”, ressalta o docente da FEQ.

Já a dissertação de mestrado de Sanãforah Carolina Marques Silva, lembra Cremasco, trouxe bons resultados na adição de elementos nacionais ao processo de fermentação oscomo o a³leo de castanha-do-para¡ e de coco ospara produção de tacrolimo. Agora estãoem curso o mestrado de Alessandra Suzin Bertan, que objetiva separar a biomassa produzida na fermentação do caldo empregando microfiltração por membranas. “Na fermentação, o tacrolimo estãoem meio, além de biomassa bacteriana, a vários outros componentes, como vitaminas e açúcares”, diz Alessandra Bertan, que desenvolveu uma estratanãgia de filtração especa­fica para tanto. “Estamos testando a eficiência do filtro na retenção de micelas para obter, em etapas futuras, o tacrolimo o mais puro possí­vel.”

Marco Auranãlio Cremasco observa que nas pesquisas anteriores a  de Alessandra, a filtração da biomassa era a va¡cuo, em bancada, o que dificulta o aumento de escala. “No futuro, esse filtro que desenvolvemos permitira¡ o aumento de escala, sem contar que se trata de tecnologia nacional, o que também impacta o prea§o final do fa¡rmaco. Além disso, existe uma contribuição tecnologiica efetiva: as várias etapas do processamento de engenharia tem sempre algo de inovador em relação ao já conhecido, como a eliminação e substituição de etapas do processo. E o resultado final éa contribuição social, que entendo ser, também, um dos objetivos da Unicamp. Em outras palavras, podemos fazer ciência e desenvolver tecnologia inovadora com forte comprometimento social”, finaliza o professor.

 

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