Saúde

Coronava­rus e o coração
COVID-19 pode provocar problemas carda­acos de várias maneiras, segundo estudos de especialistas de Harvard
Por Ekaterina Pesheva - 15/04/2020

Jesse Orrico / Unsplash

A lesão pulmonar e a sa­ndrome do desconforto respirata³rio agudo ocuparam o centro do palco como as mais temidas complicações do COVID-19, a doença causada pelo novo coronava­rus, SARS-CoV-2. Mas os danos ao coração surgiram recentemente como mais um resultado sombrio no repertório do va­rus de possa­veis complicações.

O COVID-19 éuma doença do espectro, abrangendo desde uma infecção pouco sintoma¡tica atéuma doença cra­tica. De maneira tranquilizadora, para a grande maioria dos indivíduos infectados com o novo coronava­rus, a doença permanece na faixa de leve a moderada.

No entanto, vários infectados desenvolvem problemas relacionados ao coração do nada ou como uma complicação de doença carda­aca preexistente. Um relatório dos primeiros dias da epidemia descreveu a extensão da lesão carda­aca em 41 pacientes hospitalizados com COVID-19 em Wuhan, China: cinco, ou 12%, apresentavam sinais de dano cardiovascular. Esses pacientes apresentavam na­veis elevados de troponina carda­aca - uma protea­na liberada no sangue pelo maºsculo carda­aco lesionado - e anormalidades nos eletrocardiogramas e ultra-sonografias carda­acas. Desde então, outros relatos afirmaram que a lesão carda­aca pode fazer parte dos danos induzidos pelo coronava­rus. Além disso, alguns relatórios detalha cenários clínicos nos quais os sintomas iniciais dos pacientes eram de natureza cardiovascular e não respirata³ria. 

Como o novo coronava­rus provoca danos carda­acos?

As maneiras pelas quais o novo coronava­rus provoca lesões carda­acas não são tão novas nem surpreendentes, de acordo com os médicos-cientistas da Harvard Medical School Peter Libby e Paul Ridker . A parte que permanece incerta ése o SARS-CoV-2 éde alguma forma mais virulento para o coração do que outros va­rus. Libby e Ridker, que praticam cardiologistas na Brigham and Women's, afirmam que lesões carda­acas relacionadas ao COVID-19 podem ocorrer de várias maneiras.

Primeiro, as pessoas com doença carda­aca preexistente correm um risco maior de complicações cardiovasculares e respirata³rias graves por COVID-19. Da mesma forma, a pesquisa mostrou que a infecção pelo va­rus influenza representa uma ameaça mais grave para as pessoas com doenças carda­acas do que aquelas sem problemas carda­acos. A pesquisa também mostra que ataques carda­acos podem realmente ser causados ​​por infecções respirata³rias, como a gripe. 

Segundo, pessoas com doença carda­aca previamente não diagnosticada podem estar apresentando sintomas carda­acos silenciosos e não revelados pela infecção viral. Em pessoas com bloqueios dos vasos carda­acos existentes, infecção, febre e inflamação podem desestabilizar placas gordurosas previamente assintoma¡ticas dentro dos vasos carda­acos. A febre e a inflamação também tornam o sangue mais propenso a coagular, além de interferir na capacidade do corpo de dissolver coa¡gulos - um soco de dois em dois, semelhante a jogar gasolina em brasas ardentes.

"a‰ como um grande teste de estresse para o coração", disse Ridker, professor de medicina Eugene Braunwald no Brigham and Women's Hospital.

Terceiro, algumas pessoas podem sofrer danos no coração que imitam lesões de ataques carda­acos, mesmo que suas artanãrias não apresentem os bloqueios limitadores de fluxo gordurosos e calcificados, conhecidos por causar ataques carda­acos cla¡ssicos. Esse cena¡rio pode ocorrer quando o maºsculo carda­aco estãosem oxigaªnio, o que no caso do COVID-19 pode ser desencadeado por uma incompatibilidade entre o suprimento de oxigaªnio e a demanda de oxigaªnio. Febre e inflamação aceleram a freqa¼aªncia carda­aca e aumentam as demandas metaba³licas em muitos órgãos, incluindo o coração. Esse estresse éagravado se os pulmaµes estiverem infectados e incapazes de trocar oxigaªnio e dia³xido de carbono de maneira ideal. Essa troca gasosa prejudicada pode diminuir ainda mais o suprimento de oxigaªnio ao maºsculo carda­aco.

Finalmente, háum subconjunto de pessoas com COVID-19 - algumas delas anteriormente sauda¡veis ​​e sem problemas carda­acos subjacentes - que desenvolvem inflamação fulminante do maºsculo carda­aco como resultado do va­rus infectar diretamente o coração. Esse tipo de inflamação pode levar a distúrbios do ritmo carda­aco e danos aos maºsculos carda­acos, além de interferir na capacidade do coração de bombear o sangue de maneira ideal. 

A propensão de certos va­rus a atacar o maºsculo carda­aco e causar miocardite viral bem conhecida, disse Libby, acrescentando que o agressor viral mais nota¡vel foi o va­rus Coxsackie B. Um relato de caso recente da Ita¡lia ressalta a noção de que o novo coronava­rus também pode infectar o coração e afetar a função muscular do coração em adultos sauda¡veis, mesmo após a fase aguda da infecção ter sido resolvida e mesmo na ausaªncia de danos nos pulmaµes.

"Definitivamente, existem pessoas que desenvolvem miocardite fulminante aguda - na qual o va­rus infecta o pra³prio maºsculo carda­aco ou as células dentro do coração - e causa uma reação inflamata³ria horra­vel", disse Libby, professora de medicina do Mallinckrodt no Hospital Brigham and Women. "Isso pode ser fatal, e pode acontecer em pessoas que não tem nenhum fator de risco preexistente".

Libby e Ridker, no entanto, dizem que esse cena¡rio inesperado em indivíduos sauda¡veis ​​éprovavelmente raro em relação ao número total de pessoas com COVID-19 que apresentam problemas carda­acos. 

O inimigo interno

Para Ridker e Libby, o envolvimento carda­aco no COVID-19 éoutro exemplo impressionante dos efeitos generalizados da inflamação em maºltiplos órgãos e sistemas. A inflamação éuma resposta de defesa cra­tica durante a infecção, mas tem um lado sombrio. As infecções podem desencadear uma cascata de sinais imunológicos que afetam vários órgãos. 

Libby e Ridker levantam a hipa³tese de que qualquer infecção no corpo - uma fervura purulenta, uma articulação lesionada, um va­rus - pode se tornar uma fonte de inflamação que ativa a liberação de protea­nas inflamata³rias conhecidas como citocinas e invoca exanãrcitos de gla³bulos brancos e outras moléculas mensageiras. que, em um esfora§o para combater a infecção, interrompem os processos normais. Quando essas moléculas inflamata³rias atingem o solo acolhedor de um depa³sito de gordura na parede dos vasos sangua­neos - um que já estãorepleto de gla³bulos brancos inflamata³rios residentes - as citocinas podem aumentar a resposta inflamata³ria local e desencadear um ataque carda­aco.

"Nosso trabalho mostrou que as citocinas podem colidir com essas células na placa e empurra¡-la atravanãs de uma rodada de ativação adicional", disse Libby.

"[A inflamação do coração] pode ser fatal, e pode acontecer em pessoas que não tem nenhum fator de risco preexistente."

- Peter Libby

Os produtos químicos inflamata³rios liberados durante a infecção também podem induzir o fígado a acelerar a produção de protea­nas importantes que defendem o organismo contra infecções. Essas protea­nas, no entanto, tornam o sangue mais propenso a  coagulação, além de reduzir a secreção de substâncias naturais que dissolvem coa¡gulos. Os pequenos coa¡gulos que podem se formar podem entupir os pequenos vasos sangua­neos no coração e em outros órgãos, como os rins, privando-os de oxigaªnio e nutrientes e preparando o cena¡rio para a falha multissistemica que pode ocorrer na infecção aguda.

Assim, a lesão mediada pelo sistema imunológico no coração e em outros órgãos pode ser um dano colateral por causa da esmagadora resposta imunola³gica sistemica do corpo - uma condição conhecida como tempestade de citocinas , que émarcada pela liberação generalizada de citocinas que pode causar morte celular, lesão tecidual e dano de a³rga£o.

COVID-19 e medicamentos para pressão arterial

O SARS-CoV-2 invade as células humanas, travando sua protea­na de pico no receptor ACE2 encontrado nasuperfÍcie das células nas vias aanãreas, pulmaµes, coração, rins e vasos sangua­neos. A protea­na ACE2 éum participante importante no sistema renina-angiotensina-aldosterona, que regula a dilatação dos vasos sangua­neos e a pressão arterial. Duas classes de medicamentos amplamente utilizados para tratar pressão alta e doenças carda­acas - inibidores da ECA e bloqueadores dos receptores da angiotensina - interagem com o receptor da ECA2. Uma possí­vel preocupação relacionada ao COVID-19 decorre da noçãoque esses medicamentos para pressão arterial possam aumentar o número de receptores ACE2 expressos nas células, possivelmente criando mais portas moleculares para a entrada do va­rus. Alguns especialistas se perguntam se o uso desses medicamentos pode tornar as pessoas que os tomam mais suscetíveis a  infecção. Por outro lado, outros postularam que a abunda¢ncia de receptores ACE2 pode melhorar a função cardiovascular, exercendo um efeito protetor durante a infecção.

A resposta estãolonge de ser clara, mas uma revisão recente sugere que esses medicamentos podem desempenhar um papel duplo no COVID-19 - por um lado, aumentando a suscetibilidade a  infecção e, por outro, protegendo o coração e melhorando os danos pulmonares da doena§a.

Libby e Ridker alertaram que os pacientes que tomam esses medicamentos para salvar vidas devem permanecer com eles ou pelo menos ter uma discussão cuidadosa com seus cardiologistas. Isso ocorre porque esses medicamentos tem benefa­cios claros e bem estabelecidos na hipertensão e em certas formas de doenças carda­acas, enquanto sua propensão a tornar os seres humanos mais suscetíveis a  SARS-CoV-2 permanece especulativa por enquanto.

Mas o que permanece especulativo hoje cristalizara¡ nas próximas semanas e meses, disseram Ridker e Libby, porque a ciência estãoavaçando rapidamente, com novos trabalhos sendo publicados diariamente e um crescente número de pacientes para extrair observações.

"Em 12 a 18 meses, teremos muitas informações, mas, no momento, nosso trabalho anã, número um, impedir que as pessoas obtenham o COVID-19 por aderaªncia estrita a s medidas de contenção já conhecidas", disse Libby. "Então, precisamos levar as pessoas que sofrem da doença nessa fase aguda".

A necessidade de rigorosos estudos randomizados realizados de maneira rápida e eficaz éaguda, disseram eles. Atéque as evidaªncias desses estudos comecem a se unir, os médicos tera£o que navegar no territa³rio desconhecido de atendimento carda­aco no momento da pandemia com cautela, mas também com determinação.

“Nãotemos o conforto de nossos bancos de dados habituais, por isso temos que confiar em nossas habilidades cla­nicas e julgamento. Mas temos que fazer isso com toda humildade, porque muitas vezes os dados não confirmam nossos preconceitos la³gicos ”, disse Libby. "No entanto, devemos agir."

 

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