Saúde

Pesquisa reprova verma­fugos e revela novos candidatos a terapia contra covid-19
Duas substâncias mostraram alta eficácia de inibia§a£o do novo coronava­rus em experimentos in vitro
Por Herton Escobar - 14/07/2020


O objetivo da pesquisa étestar o potencial de uso de drogas já disponí­veis para a prevenção ou o tratamento de infecções pelo novo coronava­rus, dentro de uma estratanãgia conhecida como “reposicionamento de fa¡rmacos”. Foto: Ceca­lia Bastos/USP Imagens

Os primeiros resultados de uma triagem de drogas no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP trazem boas e ma¡s nota­cias da frente de batalha farmacaªutica contra a covid-19. De um total de 65 medicamentos analisados, dois demonstraram capacidade de inibição seletiva do va­rus SARS-CoV-2 in vitro. Por outro lado, dois verma­fugos que vão sendo amplamente apontados como possa­veis curas para a covid-19 (ivermectina e nitazoxanida) não tiveram desempenho satisfatório.

O objetivo da pesquisa étestar o potencial de uso de drogas já disponí­veis para a prevenção ou o tratamento de infecções pelo novo coronava­rus, dentro de uma estratanãgia conhecida como “reposicionamento de fa¡rmacos”.

Redirecionar o uso de uma droga já existente para o tratamento de uma outra doença bem mais simples do que desenvolver um medicamento novo do zero, mas não deixa de ser um caminho longo, complexo e repleto de incertezas. Os cientistas ainda precisam demonstrar que a droga éeficaz e segura para esse novo uso, mesmo que ela já seja aprovada para outras finalidades — porque as dosagens podem ser diferentes, o perfil cla­nico dos pacientes pode ser diferente, as interações medicamentosas podem ser diferentes, e assim por diante.

A técnica usada no ICB, chamada triagem fenota­pica, éum primeiro passo nessa caminhada. Os pesquisadores infectam células com o va­rus em laboratório e testam o efeito de diferentes drogas sobre elas, em diferentes dosagens, para ver o que acontece. Os resultados são avaliados por meio de imagens de microscopia e moléculas fluorescentes, que permitem visualizar o que acontece com o va­rus e com as células na placa de cultura. Funciona como uma primeira peneira de qualificação, tanto para identificar substâncias promissoras, que merecem ser investigadas mais a fundo, quanto para excluir aquelas que se mostram incompetentes ou inadequadas para uso.

A substância mais promissora identificada no estudo foi o brequinar, uma molanãcula que não estãono mercado, mas bem conhecida da indústria farmacaªutica e vem sendo testada para diversas aplicações já hálgum tempo, inclusive como antitumoral e antiviral. A segunda mais eficaz foi o acetato de abiraterona, um antitumoral usado no tratamento do câncer de pra³stata.

Já a ivermectina e a nitazoxanida mostraram ter atividade antiviral in vitro, poranãm não seletiva. Em outras palavras: elas eliminaram o va­rus das amostras, mas também mataram as células — um resultado que, segundo parametros modernos de descoberta de drogas, não as favorece como candidatas para ensaios clínicos em seres humanos, ou mesmo para testes pré-clínicos em modelos animais, segundo os pesquisadores.

“Nossos resultados sugerem que essas drogas são pouco especa­ficas e não atendem aos critanãrios necessa¡rios para testes  in vitro com modelos animais”, diz o bia³logo Lucio Freitas Junior, coordenador da Plataforma de Triagem Fenota­pica, laboratório do ICB onde a pesquisa érealizada, em colaboração com a indústria farmacaªutica. 

Freitas ressalta que muitas das dosagens que estãosendo divulgadas na internet para uso desses medicamentos contra a covid-19 não tem embasamento cla­nico e podem trazer consequaªncias imprevisa­veis para a saúde das pessoas. A bula da ivermectina, por exemplo, recomenda uma dose única para a eliminação de vermes e outros parasitas; mas hásites e va­deos na internet recomendando o uso conta­nuo do medicamento, em cara¡ter profila¡tico, como forma de evitar infecções pelo novo coronava­rus, apesar de não haver nenhuma evidência cla­nica ou cienta­fica que justifique esse uso. Va¡rios Estados e prefeituras estão, inclusive, distribuindo o medicamento a  população como parte do chamado “kit covid”, que costuma incluir também a hidroxicloroquina — outro medicamento sem ação comprovada contra a covid-19 e que pode ter efeitos colaterais graves, se consumido de forma indiscriminada.

A Agência Nacional de Vigila¢ncia Sanita¡ria (Anvisa) publicou uma “nota de esclarecimento” na sexta-feira, 10 de julho, pontuando que não hánenhum estudo que corrobore o uso da ivermectina contra a covid-19, e que o medicamento são deve ser usado conforme as indicações da bula. A Food and Drug Administration (FDA), dos Estados Unidos, fez o mesmo alerta já no ini­cio de maio, após a publicação de um pequeno estudo australiano, indicando que a ivermectina bloqueava a replicação do SARS-CoV-2 in vitro — que foi o estopim de todo o frenesi com relação ao remanãdio. Em junho, a Organização Pan-Americana de Saúde também emitiu nota alertando contra o uso da ivermectina e levantando daºvidas sobre os estudos publicados sobre ela no contexto da covid-19.

Segundo o mais recente boletim da Comissão Nacional de a‰tica em Pesquisa (Conep), atéo ini­cio de julho havia quatro ensaios clínicos aprovados com ivermectina no Brasil e três com a nitazoxanida. Esses estudos, realizados de forma controlada, podera£o elucidar se essas drogas realmente funcionam e são seguras para uso contra a covid-19.

No caso da nitazoxanida (mais conhecida no Brasil pelo seu nome comercial, Annita), a esperana§a com relação ao remanãdio tem como base um ensaio conduzido pelo Laborata³rio Nacional de Biociências (LNBio), em colaboração com a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), segundo o qual o verma­fugo reduziu em 94% a carga viral do SARS-CoV-2 em células in vitro. Com base nisso, o Ministanãrio da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) — ao qual o LNBio évinculado — lançou em abril um estudo cla­nico para testar o uso da nitazoxanida na prevenção e tratamento da covid-19. A meta érecrutar 500 pacientes com sintomas leves e outros 500, com sintomas graves. 

Publicação

Os resultados do ICB foram publicados na última sexta-feira, 10 de julho, no site da bioRxiv, uma plataforma aberta para a divulgação de trabalhos cienta­ficos que ainda não passaram pelo processo de revisão por pares (chamados preprints) — mas os autores ainda pretendem submetaª-los a uma revista cienta­fica. A opção inicial pelo preprint, segundo Freitas, deve-se a  urgência da pandemia e a  intenção de “colocar esse conhecimento a  disposição da comunidade cienta­fica o mais rápido possí­vel”.

O estudo tem 10 autores, incluindo colaboradores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), da Universidade Federal de Sa£o Paulo (Unifesp), e de outras duas unidades da USP: Instituto de Biociências (IB) e  Instituto de Fa­sica de Sa£o Carlos (IFSC).

"O fato de uma substância funcionar contra o va­rus num experimento in vitro (numa cultura de células) não significa que ela va¡ funcionar da mesma forma in vivo (no corpo humano), nem que ela seja segura para uso fora das dosagens e prescrições cla­nicas já aprovadas. Desde já, portanto, os pesquisadores alertam que não érecomendado nem hámotivo para que as pessoas utilizem qualquer um dos medicamentos mencionados no estudo com o intuito de se proteger da covid-19. Além de não oferecer proteção, os remanãdios podem causar danos a  saúde, quando usados sem necessidade e sem supervisão médica".


Uma das drogas inclua­das na testagem foi a cloroquina, inicialmente apontada por alguns estudos (e alguns pola­ticos) como uma cura pronta para a covid-19. De fato, nos ensaios in vitro, ela se mostra altamente eficaz e seletiva contra o SARS-CoV-2, mas estudos clínicos demonstram que ela não éefetiva contra a doença no organismo humano, além de carregar o risco de efeitos colaterais graves para alguns pacientes.

Imagens mostram uma cultura de células Vero E6 infectada pelo va­rus SARS-CoV-2 (citoplasma verde) sem tratamento, e uma cultura de células também infectada, poranãm tratada com a droga brequinar (a  direita). O verde desaparece da imagem, mostrando que o va­rus foi eliminado da amostra, mas os núcleos das células (tingido de roxo) permanecem intactos, mostrando que a droga atuou de forma seletiva. Crédito: Laborata³rio de Triagem Fenota­pica / ICB-USP
 
Metodologia

Os experimentos feitos no ICB levam em conta não são o efeito da droga sobre o va­rus, mas também sobre as células que ele infecta e necessita para se replicar. O fa¡rmaco ideal éaquele que se mostra agressivo contra o va­rus, poranãm gentil com as células do organismo infectado (combinando efetividade e seletividade, na linguagem dos cientistas). Algo que parece a³bvio, mas não anã. Muitos estudos desse tipo medem apenas a capacidade da substância de reduzir a quantidade de va­rus na amostra, sem levar em conta que essa diminuição pode ocorrer por dois motivos: porque a droga estãoatacando o va­rus, ou porque ela estãomatando as células — o que não édesejável.

“Se o va­rus depende da canãlula, e vocêafeta a canãlula, éclaro que vai afetar o va­rus. Mas não adianta matar o va­rus se vocêmata o hospedeiro junto”, explica Freitas. “Seletividade éessencial.”

As células usadas no estudo são de uma linhagem padronizada de células de rim de macaco, conhecidas como Vero E6, que são o padra£o-ouro para esse tipo de pesquisa no mundo todo; e aspartículas virais são de uma linhagem de SARS-CoV-2 isolada dos primeiros pacientes brasileiros com covid-19 pelo pesquisador Edison Durigon, professor de virologia do ICB e coautor do trabalho. Sete das 65 substâncias testadas foram compradas da empresa farmacaªutica Sigma-Aldrich, e as outras 59 foram doadas pelo laboratório Eurofarma. Centenas de outras moléculas ainda devera£o ser testadas por essa mesma metodologia — validada padronizada por essa primeira triagem — no pra³ximos meses.

Segundo Freitas, o fato de as células usadas no estudo não serem humanas não representa um problema. O objetivo da triagem éverificar como cada droga funciona nesse ambiente simples, padronizado e altamente controlado do meio de cultura. A regra ba¡sica anã: se funciona na simplicidade do in vitro, pode ser que funcione na complexidade do in vivo; mas se não funciona numa cultura de células, dificilmente vai funcionar num organismo vivo. “a‰ uma metodologia excludente, que mostra principalmente aquilo que não épromissor”, afirma Freitas.

Os pesquisadores ainda fizeram uma análise computacional de redes gaªnicas e interações moleculares para tentar prever como as substâncias identificadas como promissoras podem estar atuando contra a covid-19. Essa análise éfeita com a ajuda de um software, chamado Ingenuity Pathway Analysis (IPA), que busca informações de toda a literatura cienta­fica para tentar estabelecer relações entre as moléculas da droga e moléculas do va­rus, ou do organismo hospedeiro. E, assim, apontar caminhos para os pra³ximos passos da pesquisa. “Com base nesses testes in vitro tentamos predizer como a droga pode vir a funcionar num ensaio cla­nico ou pré-cla­nico”, explica a pesquisadora Ludmila Ferreira, da UFMG, responsável por essa parte do estudo.

“Quando vocêtrabalha com reposicionamento de fa¡rmacos vocêtem que manter a cabea§a aberta, porque podem aparecer coisas totalmente inesperadas”, afirma Freitas. 

 

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