Saúde

Placenta de bebaª com microcefalia émenos resistente ao zika va­rus
Cientistas estudaram células da placenta equivalentes ao primeiro trimestre da gravidez de gaªmeos em que um nasceu com a doença e o outro não
Por Fabiana Mariz - 20/08/2020


Os cientistas ficaram intrigados com o fato de um dos gaªmeos ter nascido com hidrocefalia e o outro não. Eles analisaram o sangue de três pares de gaªmeos com aproximadamente 1 ano de vida osIlustração: Cleber Siquette/Jornal da USP

Experimentos realizados por cientistas da USP e do Instituto Butantan mostraram que a placenta formada durante a gestação de bebaªs nascidos com microcefalia são mais suscetíveis ao zika va­rus. Os resultados foram observados graças a um trabalho de reprogramação celular realizado com o sangue de três pares de gaªmeos com aproximadamente 1 ano de vida. Os cientistas ficaram intrigados com o fato de um dos gaªmeos ter nascido com a doença e o outro não.

A placenta éum órgão do feto formado durante a gestação, que tem como papel principal promover a comunicação entre a ma£e e filho. Mas ter acesso a ela édifa­cil. “Nãopodemos interromper uma gravidez e tirar uma amostra, principalmente porque não épossí­vel saber se o bebaª tera¡ microcefalia”, explica Sergio Verjovski Almeida, professor do Instituto de Quí­mica (IQ) da USP e último autor do artigo publicado no dia 3 de agosto na revista Plos Neglected Tropical Diseases.

A “reprogramação celular” foi feita no Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano e Canãlulas-Tronco da USP pelos pesquisadores Ernesto Goulart e Luiz Caires. Os cientistas fizeram as células do sangue dos gaªmeos “voltarem no tempo” e assumirem caracteri­sticas de células-tronco embriona¡rias. Nesse esta¡gio, elas adquirem a capacidade de se diferenciar em qualquer tecido do corpo e, por isso, recebem o nome de células-tronco pluripotentes induzidas (iPS osdo inglês Induced Pluripotent Stem Cells).

O passo seguinte foi estimular as iPS para transforma¡-las em trofoblastos. “Assim, simulamos uma placenta primitiva, que éequivalente ao órgão do primeiro trimestre da gestação”, descreve Verjovski. Trofoblastos são um conjunto de células que circundam os blastocistos e que contribuem para a formação da placenta, além de ajudarem no processo de implantação do embria£o ao aºtero. “Como os irmãos, em tese, foram submetidos a  mesma carga viral, pensamos que as placentas poderiam ser diferentes”, explica Verjovski.

Trofoblasto éa camada de células epiteliais que constitui a parede externa do
blastocisto. a‰ por meio dele que o embria£o se fixa a  parede do aºtero
 Ilustração: Cleber Siquette/Jornal da USP

Os trofoblastos dos três pares de gaªmeos fraternos (também conhecidos como bivitelinos ou diziga³ticos, gerados a partir da fertilização de dois a³vulos e dois espermatazoides), em que um nasceu com a microcefalia e o outro não, foram então analisados pelos cientistas.

A pesquisa mostrou que as células das placentas dos bebaªs não afetados produzem mais quimiocinas do que as que foram infectadas. Quimiocinas são um grupo de citocinas presentes no la­quor e no sangue, responsa¡veis por recrutar células do sistema imune. “Nosso estudo mostrou como se da¡ o mecanismo de atração das células de defesa de ambos os gaªmeos e como eles se protegeram”, explica Murilo Sena Amaral, pesquisador do Instituto Butantan e primeiro autor do artigo.

Respostas

A primeira pergunta a ser respondida era se os trofoblastos dos bebaªs afetados se infectam de maneiras diferentes quando comparados aos dos não afetados. “Na placa de cultura, adicionamos a cepa brasileira do zika (ZIKV-BR) e percebemos que as células dos gaªmeos afetados apresentavam uma carga viral maior”, esclarece Amaral.

A próxima fase serviu para desvendar por que isso acontecia e o estudo seguiu por dois caminhos. Primeiro, os trofoblastos recanãm-infectados permaneceram na placa de cultura por 96 horas. “Em seguida, coletamos essas células, fizemos a extração e a purificação do RNA e realizamos a análise transcripta´mica em larga escala”, diz Amaral. Esse tipo de abordagem permite analisar as moléculas de RNA, que determinam quais genes sera£o expressos.

De maneira interessante, os genes que estavam expressos eram aqueles relacionados a  implantação e a  migração dos trofoblastos. “Alguns dias após ocorrer a fecundação, esse zigoto precisa migrar e se implantar para iniciar a formação da placenta e o desenvolvimento do feto”, descreve o pesquisador. “A conclusão éque existem, sim, diferenças entre os trofoblastos dos gaªmeos afetados em relação aos dos não afetados.”

Quando o organismo se vaª desafiado por um pata³geno externo, ele ativa seus mecanismos de defesa; em um processo normal, as células secretam protea­nas, tanto para se defender quanto para avisar as outras células parceiras que algo estãoerrado. Por isso, os cientistas foram mais a fundo e decidiram olhar como se dava a secreção de quimiocinas dessas células. O resultado foi que os trofoblastos dos gaªmeos não afetados expeliram uma quantidade maior de RANTES/CCL5 e IP10 quando comparados com os dos gaªmeos que tiveram a microcefalia. “Essa maior produção de quimiocinas ajudou as células a se protegerem, barrando com mais eficiência a propagação do va­rus.”

Além disso, as células dos bebaªs afetados não secretaram quantidades suficientes de interferons (IFN), uma outra protea­na importante para a defesa do organismo contra patógenos intracelulares.

Tratamentos futuros

Trabalhos anteriores comprovaram que a cepa original do va­rus da zika, a de Uganda, era mais virulenta que a brasileira. “A nossa hipa³tese éque ele era tão agressivo que induzia a  perda gestacional”, ressalta Verjovski. Para o va­rus émelhor que ele não mate o seu hospedeiro, senão ele morre também. “O va­rus brasileiro sofreu mutações, dando a ele mais vantagens em relação a  cepa anterior: mantanãm a gravidez, se reproduz, causa os danos cerebrais e continua se multiplicando.”

Com a finalização da pesquisa, ficou comprovado que a placenta desempenha um papel central na proteção do feto, além de existirem certos fatores de suscetibilidade que contribuem para uma maior penetração do zika. ”Essa informação abre possibilidades para estudos de novos compostos ou estratanãgias farmacola³gicas para bloquear a penetração do zika pela placenta”, finaliza Amaral.

 

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