Saúde

Descrito possí­vel mecanismo que permite a  variante sul-africana do coronava­rus escapar do sistema imune
A descoberta, que ainda precisa ser confirmada por novos experimentos, pode abrir caminho para o desenvolvimento de vacinas eficazes tanto contra a variante que emergiu na áfrica do Sul,
Por André Julião | Agência FAPESP - 21/04/2021

Um grupo liderado por pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de Sa£o Paulo (FM-USP) acredita ter encontrado o mecanismo que possibilita a  variante sul-africana do SARS-CoV-2 ostambém conhecida como B.1.351 osescapar dos anticorpos gerados em infecções anteriores pela cepa ancestral do va­rus. A descoberta, que ainda precisa ser confirmada por novos experimentos, pode abrir caminho para o desenvolvimento de vacinas eficazes tanto contra a variante que emergiu na áfrica do Sul, já presente no Brasil, quanto a origina¡ria de Manaus (P.1.), bem como as suas predecessoras.

Na variante sul-africana B.1.351 (a  direita), anticorpo se liga menos
a  protea­na viral, formando um “vale” entre os dois, fena´meno ocorrido
provavelmente devido a  glicolisação, indicada na figura. Na P.1.
(a  esquerda), ligação entre anticorpo e va­rus émuito maior
(imagem: acervo dos pesquisadores)

O estudo, publicado na plataforma medRxiv, estãoem processo de revisão por pares.

Por meio de simulações computacionais, o grupo estudou a protea­na-chave do SARS-CoV-2, conhecida como spike. Ela éa responsável por se ligar ao receptor existente nas células humanas (a protea­na ACE-2) e viabilizar a infecção. Os resultados sugerem que uma das mutações existentes na ponta da spike da variante sul-africana oscaracterizada pela troca do aminoa¡cido lisina por asparagina ospode resultar na ocorraªncia de um fena´meno bioqua­mico conhecido como glicosilação, que muda a feição da protea­na viral e impede a ligação dos anticorpos. Já na variante P.1., a lisina ésubstitua­da por uma treonina, que não sofre glicosilação.

“No desenvolvimento de uma vacina, hoje, épreciso escolher o que serámais eficaz contra o va­rus, incluindo as variantes. No caso do SARS-CoV-2, das três mutações que ocorrem na P.1. e na B.1.351, duas são exatamente iguais. Portanto, épossí­vel que uma vacina que tenha como foco a variante sul-africana seja eficaz também contra a P.1. e contra o va­rus ancestral. Mas vacinas contra essas duas últimas provavelmente sera£o menos eficazes contra a variante sul-africana”, explica Keity Souza Santos, professora da FM-USP e autora correspondente do artigo.

O trabalho éresultado de um projeto apoiado pela FAPESP e coordenado por Jorge Elias Kalil Filho, professor da FM-USP e coordenador do Laborata³rio de Imunologia do Instituto do Coração (InCor), que também assina o artigo.

O grupo liderado por Kalil trabalha no desenvolvimento de uma vacina contra a COVID-19. O projeto éapoiado pela Fundação e pela Financiadora de Estudos e Projetos 

O alvo

“Trabalhos anteriores de outros grupos não conseguiram encontrar a regia£o especa­fica em que os anticorpos humanos se ligam a  RBD [doma­nio de ligação ao receptor, na sigla em inglês], como échamada a ponta da protea­na spike que encaixa nas células humanas. Atéentão eram feitas inferaªncias. Utilizamos uma técnica que permitiu localizar exatamente uma regia£o predominantemente reconhecida, que chamamos de imunodominante. a‰ a mesma em que ocorre uma das mutações das variantes de Manaus e da áfrica do Sul”, conta Santos.

Apa³s identificar a regia£o na primeira cepa do va­rus, o grupo composto por pesquisadores da USP, Universidade Estadual Paulista (Unesp), Universidade Federal de Sa£o Paulo (Unifesp) e Universidade de Salzburg, na austria, submeteu a sequaªncia de aminoa¡cidos ao soro sangua­neo de 71 pacientes recuperados de COVID-19 no Hospital das Cla­nicas da FM-USP no começo da pandemia no Brasil. Em 68% das amostras, os anticorpos presentes no soro foram capazes de se ligar ao pepta­deo chamado de P44, presente na RBD da protea­na spike.

Para entender como ocorre a ligação dos anticorpos nessa regia£o encontrada pelos pesquisadores, foram feitas simulações computacionais. As informações da RBD das duas variantes e do va­rus ancestral foram cruzadas com a do anticorpo monoclonal REGN10933, conhecido por se ligar a  regia£o imunodominante e, atualmente, em testes clínicos para tratamento da COVID-19. O computador faz o que se chama de predição de neutralização, ou seja, estima a capacidade dos anticorpos de neutralizar o va­rus.

Nas simulações, a predição de neutralização foi completa contra o va­rus ancestral e um pouco diminua­da para a variante P.1. Na variante sul-africana, contudo, houve uma queda dra¡stica na predição de neutralização, confirmando o que havia apontado um artigo publicado na Cell por cientistas norte-americanos pouco antes da submissão do artigo dos brasileiros.

Para o grupo liderado pela USP, a ligação não ocorre na B.1.351 porque uma das suas mutações éjustamente a troca do aminoa¡cido lisina por asparagina, que sofre o processo de glicosilação. Essa alteração seria, provavelmente, a responsável pela baixa estimativa de neutralização da variante sul-africana pelos anticorpos gerados a partir da infecção pela cepa original do SARS-CoV-2. O fena´meno da glicosilação já foi observado no va­rus influenza, da gripe, mas ainda não havia sido apontado no caso do SARS-CoV-2.

“Nas variantes P.1. e B.1.351, a mutação da RBD consiste em apenas três aminoa¡cidos diferentes em relação a  RBD do va­rus ancestral. A mudança, contudo, parece ser suficiente para tornar as variantes de Manaus e da áfrica do Sul mais transmissa­veis. Uma vacina que gere anticorpos que ataquem as duas mutações que ambas as variantes tem em comum, mais o aminoa¡cido glicosilado da B.1.351, provavelmente serámais eficaz”, diz Santos.

Para confirmar a hipa³tese, o grupo planeja agora experimentos in vitro utilizando amostras do pepta­deo P44 com a glicosilação na asparagina. O objetivo éconfirmar se os anticorpos realmente não se ligam a esse aminoa¡cido quando ele églicosilado. Além disso, os pesquisadores obtiveram soro de pacientes recuperados da P.1. e pretendem confirmar se os anticorpos desses pacientes se ligam mesmo ao pepta­deo P44.

O artigo Immunodominant B cell epitope in SARS-CoV-2 RBD comprises a B.1.351 and P.1 mutation hotspot: implications for viral spread and antibody escape pode ser lido em: www.medrxiv.org/content/10.1101/2021.03.11.21253399v1.

 

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