Saúde

Qual éo impacto da Covid-19 nas doenças tropicais negligenciadas?
A questãoélevantada por pesquisadores do Instituto de Biologia da Unicamp em artigo na Trends in Parasitology
Por Luiz Sugimoto - 02/07/2021


Reprodução

Estima-se que 1 bilha£o de pessoas no mundo estãoacometidas pelas chamadas doenças tropicais negligenciadas (DTN), como leishmaniose e doença de Chagas. Qual tem sido o impacto da Covid-19 nestas populações já vulnera¡veis, que tradicionalmente sofrem com condições preca¡rias de saúde, saneamento e econa´micas? Esta équestãocolocada por pesquisadores da Unicamp, em artigo na Trends in Parasitology (grupo Cell), uma das revistas mais conceituadas na área. Os autores levantam artigos publicados sobre a pandemia desde o ini­cio em mara§o de 2020 e discutem seus possa­veis efeitos a manãdio e longo prazos nos programas de controle e erradicação de DTN no planeta.

Os pesquisadores destacam as coinfecções da sa­ndrome respirata³ria aguda grave (Sars-Cov-2) com ectoparasitas, helmintos e protozoa¡rios descritas na literatura, e a necessidade urgente de compreender as condições dessas patologias associadas para a continuidade das medidas que vão sendo adotadas hádécadas no controle de parasitoses negligenciadas. "A pandemia vem arrastando essas populações para a pobreza ainda mais extrema. Segundo estimativa do Banco Mundial, esta crise econa´mica que dura de um para dois anos, vai gerar um ciclo que alimenta o surgimento e dificulta a erradicação destas doena§as. Va¡rias delas são difa­ceis de erradicar, mas outras estavam em processo de controle", diz o professor Danilo Ciccone Miguel, do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp.

Danilo Miguel édocente contratado para a área de parasitologia desde 2013 e pesquisador responsável pelo Laborata³rio de Estudos de Biologia da Infecção por Leishmania (Lebil) desde 2015. "No Lebil, trabalhamos com protozoa¡rios, principalmente na busca de fa¡rmacos para doenças causadas por eles, com aªnfase na Leishmania. Eu leciono a parasitologia cla¡ssica para vários cursos da Unicamp, coordenando atualmente a disciplina para graduandos da Faculdade de Ciências Manãdicas."

O artigo na Trends in Parasitology, ressalta o pesquisador, aponta diretrizes elencadas para controlar ou tentar erradicar muitas DTN até2030, mas que sofrera£o com o impacto da Covid-19. "O governo brita¢nico já avisou que cerca de 90% do seu investimento em políticas assistenciais para o controle dessas doenças sera£o cortados, o que vai impactar drasticamente em ex-cola´nias como a¬ndia e Kaªnia, onde elas são acompanhadas com tratamento em massa, principalmente de criana§as. Cerca de 250 milhões de criana§as recebem tratamento por ano. Paa­ses em geral trabalhando em parceria com organizações não governamentais, tera£o recursos mais limitados a partir de agora."

O drama da fome, que se agrava e altera o status nutricional destas populações, leva os autores do artigo a levantar uma bandeira de atenção para a comunidade médica e cienta­fica, sobretudo no Brasil, que não possui políticas perenes para controle das DTN. "Nossas políticas se alternam de governo para governo. Ta­nhamos, por exemplo, políticas de tratamento em massa para esquistossomose no Nordeste e vigila¢ncia intensa da mala¡ria na Amaza´nia. Nãohápolíticas sistema¡ticas para a própria leishmaniose, que nas últimas décadas se urbanizou fortemente, deixando de ser uma doença rural e chegando mais perto da gente. Os tratamentos de DTN são difa­ceis, caros, ta³xicos e nem sempre levam a  cura cla­nica."

Para o docente do IB, em relação a s parasitoses, um aspecto interessante éque algumas diminua­ram com a Covid-19 e outras aumentaram, havendo casos de pacientes que ainda precisam ser melhor compreendidos, já que um ano éo prazo limite para observação. "A Covid-19 impa´s lockdown e isolamento social e esperamos que isso reflita em doenças transmitidas pelo contato fa­sico. Um estudo na Argentina mostrou que a infestação por piolho, a pediculose, diminuiu em Buenos Aires [de 70% para 43%], porque as criana§as pararam de frequentar o ambiente escolar. Em contrapartida, houve uma explosão de casos de sarna na Turquia, porque as pessoas deixaram o trabalho nas cidades e se aglomeraram em casas de regiaµes perifanãricas, com mais membros na familia e menos condições de higiene; a sarna éum a¡caro de fa¡cil disseminação e os hospitais não puderam sequer trocar as roupas de cama dada a  alta demanda de leitos."

Macra³fago infectado com o protozoa¡rio causador da leishmaniose, doença
tropical negligenciada estudada pelo grupo do Lebil

Principais DTN

Miguel explica que o termo doenças tropicais negligenciadas (DTN) foi cunhado desde a década de 1970, na Fundação Rockfeller, e no começo dos 2000 acabou aceito e incorporado pela Manãdico Sem Fronteiras (MSF) e em seguida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), tornando-se o termo oficial para doenças que acometem as populações mais pobres e vulnera¡veis do planeta. "Geralmente cursam de maneira crônica, são debilitantes e muitas vezes fatais, ao passo que temos opções medicamentosas muito ruins, defasadas, além da ausaªncia de vacinas. Existem muitas DTN, que são divididas pelos tipos de patógenos causadores."

Na sua área de protozoa¡rios, o pesquisador lembra que a mala¡ria saiu da lista das doenças negligenciadas devido ao aumento do suporte financeiro, o que não significa que deixou de ter impacto mundial, pois ainda atinge grande parte de criana§as e gestantes no continente africano. "A mala¡ria étransmitida por um inseto do gaªnero Anopheles e em seu hista³rico já acometeu áreas não tão tropicais, como regiaµes pantanosas na Europa e em Washington D.C. Essespaíses conseguiram controlar a mala¡ria ao longo do tempo, com o desenvolvimento de antimala¡ricos e políticas de distribuição de fa¡rmacos em massa. A Fundação Bill e Belinda Gates, por exemplo, apoia campanhas de distribuição de redes de proteção contra mosquitos na áfrica, o que teve grande impacto e ainda tem."

As DTN incluem doenças causas por protozoa¡rios como as leishmanioses (tanto na forma cuta¢nea como visceral), doença de Chagas (causada pelo Trypanosoma cruzi) e a doença do sono (ou tripanossoma­ase africana), causada por subespanãcies de Trypanosoma brucei na áfrica. Ha¡ também infecções por amebas e helminta­ases transmitidas por solo contaminado (com ovos e/ou larvas de vermes). Já infecções por pulgas, piolhos e carrapatos são chamadas de infestações. Entre as viroses, a dengue e a febre amarela merecem destaque. Entre as principais infecções bacterianas estãoo tracoma, que atinge os olhos e éuma das principais causas de cegueira no mundo; existem ainda infecções causadas por fungos.

Coinfecção no Brasil

Danilo Miguel informa que o Brasil tem registros de coinfecção por Sars-Cov-2 para doença de Chagas, com pacientes com a cardiomiopatia chagásica crônica respondendo pior a  Covid, tanto que hoje estãono grupo especial para vacinação. "Nãosabemos ainda se no caso da leishmaniose visceral, com infecção sistemica, a resposta imunola³gica modulada pode alterar ou não o curso da infecção por Sars-Cov-2. O que propomos a cientistas e laboratórios éque estudem essas infecções atentando para o perfil de coinfecção. De que maneira uma infecção já estabelecida de Sars-Cov-2 vai se dar em uma regia£o endaªmica de DTN por parasito, e vice-versa? Nessas regiaµes endaªmicas com parasitos circulantes, o que acontece com a chegada da Sars-Cov-2? Sera¡ que cada DTN se manifesta de maneira diferente? Cada caso precisa ser estudado individualmente e, o mais importante, reportado."

Nesse sentido, o docente do IB chama a atenção para a população formada por imigrantes, refugiados e turistas, ainda que as restrições ao tra¡fego aanãreo e ao turismo possam ter impactado o transporte de parasitas. "Nãoéuma equação simples, depende da população atingida, sendo que refugiados e imigrantes continuam saindo em busca de melhores condições de vida. Antes da pandemia, Japa£o, Austra¡lia e Alemanha se preocupavam muito com o tra¢nsito de imigrantes latino-americanos, porque levam junto o Trypanosoma cruzi, que atinge quase 7 milhões de pessoas do continente e, sem saber que estãocom a doença de Chagas, podem fazer doações de sangue ou mesmo de órgãos, "doando" junto o parasita a indivíduos de outrospaíses."

Outro ponto colocado no artigo diz respeito a imunossupressores que estãosendo usados contra Covid-19 para controlar a inflamação, mas que dependendo do tipo de medicamento, como um corticoide, podem estimular a reprodução de alguns parasitas. "Isso já bem conhecido no caso de um verme chamado Strongyloides: quando a pessoa étratada com corticosteroides, esses parasitas comea§am a se modificar muito mais rapidamente e causam uma infecção disseminada, o que ébastante sanãrio; falamos de uma doença altamente negligenciada e espalhada no mundo inteiro."

Confinamento e vacinação

Faz parte da equação complexa, acrescenta o pesquisador da Unicamp, saber se o confinamento provocado pela Covid-19 trouxe benefa­cios ou não para a contenção das doenças tropicais negligenciadas. "Se háum aspecto positivo para a nossa área diante de tanta traganãdia, podemos mencionar a vacinação. Algumas tecnologias que vão sendo desenvolvidas contra Covid-19 não são novas, já estãoaa­, usadas principalmente em animais e em testes humanos, com plataformas recorrendo a tecnologia de DNA e RNA recombinantes. Logo poderemos ter modelos de vacinas para protozoa¡rios, por exemplo, usando essas tecnologias. a‰ como se tivessem aberto a porteira. Acredito que nos pra³ximos cinco ou dez anos surgira£o muitas novidades em termos de vacinas contra esses parasitos."

Contra a Covid-19, poranãm, a mensagem no final do artigo na Trends in Parasitology éde que Brasil foi muito ineficaz no controle da doena§a, a exemplo da andia epaíses africanos, caribenhos e do Oriente Manãdio. "A cobertura vacinal precisa ser reforçada, principalmente porque estas populações são as que mais sofrem com as doenças tropicais negligenciadas. A situação me parece bem caa³tica. O nosso alerta, nesta revisão, éexatamente para que os programas de controle não parem, ou vamos voltar a  estaca zero. Esta¡vamos indo bem, com doenças que seriam erradicadas ou com poucos focos isolados no mundo até2050. Ha¡ um risco iminente de elas voltarem."

Danilo Ciccone Miguel assina o artigo "O impacto da Covid-19 nas doenças parasita¡rias neglicenciadas: o que esperar", com quatro alunas pa³s-graduandas do IB: Mariana B.C. Brioschi, Leta­cia B. Rosa, Karen Minori e Nathalia Grazzia, todas bolsistas da Capes. "As alunas vivem sob enorme ameaça de perder suas bolsas, diante do desmonte da ciaªncia, que vai impactar na formação de novos cientistas. Temos um reflexo escandaloso de como a dificuldade que enfrentamos na gestãoda Covid-19 pode impactar em nossas vidas, aonívelindividual e coletivo. Temos parentes e amigos morrendo e uma economia colapsada. Mas como digo aos alunos, não podemos pensar apenas no parasito: a pessoa que tem elefanta­ase e não consegue se levantar por causa do inchaa§o na perna, também não vai conseguir trabalhar, sustentar a familia e gerar riqueza."

 

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