Tecnologia Científica

Pesquisa desvenda caracteri­sticas de bactanãrias presentes em queijos artesanais brasileiros
Estudo permite o aproveitamento de recursos da biodiversidade brasileira para manter caracteri­sticas regionais, assegurar a manutena§a£o do patrima´nio cultural, social e econa´mico associado a  produção
Por Carmo Gallo Netto - 05/01/2021


Foram analisadas 578 amostras de queijos artesanais brasileiros provenientes de várias regiaµes

Os queijos artesanais brasileiros se caracterizam principalmente por serem feitos em sua maioria com leite cru e processos de produção que refletem a história, a cultura e o estilo de vida de comunidades tradicionais de diferentes regiaµes dopaís. O emprego de leite não pasteurizado e que, portanto, não recebeu tratamento tanãrmico, garante a manutenção da microbiota enda³gena ou selvagem destes queijos, constitua­da principalmente por bactanãrias la¡ticas e leveduras, que consiste em um conjunto de microrganismos naturais ao pra³prio sistema, considerados benéficos a  saúde do consumidor. Eles são responsa¡veis pelas reações bioquímicas que ocorrem durante a maturação, conferindo aos produtos variedades de aromas, sabores, textura e cores que caracterizam os queijos artesanais.

Embora a produção desses queijos utilize de técnicas mais raºsticas, a legislação especa­fica considera queijo artesanal o elaborado por manãtodos tradicionais, com vinculação e valorização territorial, regional ou cultural, conforme protocolo estabelecido para cada tipo e variedade, e produzido com o emprego de boas prática s agropecua¡rias e de fabricação.

Entretanto, a produção desses queijos esbarra em alguns problemas. O emprego do leite cru tem colocado em questãoa segurança desses produtos artesanais, pois a exigaªncia da legislação de um período de maturação de no ma­nimo 60 dias, descaracteriza o processo e a qualidade sensorial dos queijos artesanais brasileiros, que historicamente possuem período de maturação de aproximadamente 20 dias.

Em decorraªncia da utilização do leite cru os queijos artesanais possuem grande diversidade de bactanãrias la¡ticas osaquelas normalmente utilizadas na produção de iogurtes e outros produtos alimenta­cios fermentados e derivados do leite. A diversidade das bactanãrias la¡ticas depende inclusive de vários fatores como tipo de rebanho, clima, ambiente, processo de fabricação em que ha¡, por exemplo, variação na quantidade de sal utilizado e na sequaªncia de etapas adotadas na produção.

Supondo inicialmente o rico potencial da microbiota enda³gena dos queijos artesanais para aplicação biotecnologiica, como produção de enzimas proteola­ticas, lipolíticas e glicola­ticas - que quebram respectivamente moléculas de protea­nas, de gorduras e de carboidratos (lactose), essenciais para o processo de maturação dos queijos e a resistência a s condições de processamento, a engenheira de alimentos Larissa Pereira Margalho desenvolveu tese de doutorado que teve como objetivo estudar as propriedades tecnologiicas e probia³ticas de suas bactanãrias la¡ticas selvagens.

O trabalho, orientado pelo professor Anderson de Souza Sant’Ana, do Departamento de Ciência de Alimentos e responsável pelo Laborata³rio de Microbiologia Quantitativa de Alimentos da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) da Unicamp, buscou adotar estratanãgias para o aproveitamento do potencial de cepas de bactanãrias la¡ticas isoladas dos queijos artesanais brasileiros selecionados. O estudo se estendeu associando os conhecimentos adquiridos a  engenharia evolutiva para obtenção de culturas mais robustas, mais resistentes e adaptadas, capazes de apresentar melhor performance durante a fermentação. A pesquisadora esclarece que se trata de uma estratanãgia que permitira¡ o aproveitamento de recursos da biodiversidade brasileira para manter caracteri­sticas regionais, assegurar a manutenção do patrima´nio cultural, social e econa´mico associado a  produção de queijos artesanais, além de gerar know-how e tecnologia para processamento desses produtos.

Por sua vez, o conhecimento das propriedades que cada uma das cepas pode conferir ao queijo permite uma aplicação segura, mesmo porque determinados queijos artesanais causam preocupação porque as prática s de fabricação podem levar ao desenvolvimento de microrganismos responsa¡veis por toxinfecções alimentares. Com as bactanãrias isoladas podem ser feitas culturas que reproduzem as mesmas caracteri­sticas desejadas na fabricação de queijos, evitando a presença de patógenos. a‰ uma forma de produzir queijos mais seguros e customizados, ou seja, que possuem propriedades que agradam o consumidor quanto ao sabor, textura, odor e que, além disso, podem fazer bem a  saúde. a‰ o caso de queijos que contem, por exemplo, probia³ticos, que são microrganismos benéficos adicionados a alguns produtos consumidos hoje. A propa³sito, diz o docente: “Se uma bactanãria la¡tica possuir capacidade de modificar positivamente sabor, odor, textura e ainda produzir efeitos benéficos a  saúde dos consumidores ou se pudermos ter misturas destas bactanãrias que combinem estas propriedades, estaremos usando recursos da biodiversidade brasileira para melhorar e valorizar produtos nacionais tão importantes”. As pesquisas receberam apoio da Fapesp, CNPq e Capes.

Foco do estudo

Considerando o apelo cada vez maior dos consumidores por produtos mais sauda¡veis, naturais e seguros, o estudo focou-se no isolamento e na determinação das propriedades tecnologiicas e probia³ticas de 1002 bactanãrias la¡cticas presentes em 578 amostras de queijos artesanais brasileiros provenientes das regiaµes Norte - queijo do Maraja³; Nordeste - queijo coalho e manteiga; Sul - queijos colonial e serrano; Sudeste - queijos minas artesanal das microrregiaµes Araxa¡, Canastra, Campo das Vertentes, Serro e Cerrado; e Centroeste - queijo caipira. Com o intuito de selecionar desse conjunto as melhores cepas para aplicação em culturas la¡cteas a autora realizou um triagem de alta performance (teste de todas as 1002 cepas) na colaboração estabelecida com a empresa holandesa Nizo Food Reseach, onde fez parte de seu doutorado com financiamento da Fapesp. Esta seleção racional possibilitou agrupar estas bactanãrias em três grupos principais: aquelas com potenciais biopreservadores osque atuam inibindo patógenos e tem função conservante; as com caracteri­sticas probia³ticas oscom propriedades potencialmente benanãficas a  saúde dos consumidores; e as com potencial para atuarem como culturas adjuntas osque atuam na etapa de maturação, gerando sabores mais intensos devido a  alta capacidade de produzir enzimas proteola­ticas e lipolíticas. O intuito foi selecionar as melhores cepas (220) para aplicação como culturas la¡cteas. O estudo foi publicado no Journal of Dairy Science.

Os protocolos utilizados nestas determinações foram desenhados para avaliação de propriedades das bactanãrias como grau de acidificação, potencial para a produção de enzimas, ação antimicrobiana, condições de crescimento em meios adversos como nos que utilizam cloreto de sãodio na produção dos queijos, e resistência aos sais biliares e baixo pH durante o tra¢nsito gastrointestinal. A metodologia empregada possibilita a análise do grande número de cepas testadas no estudo, reduzindo custos no tempo de análise, ao mesmo tempo em que evita a perda de informações, pois todas as cepas são testadas, ao contra¡rio da abordagem tradicional, na qual se escolhe algumas poucas cepas para testes.

Achados e triagem

O estudo mostrou que bactanãrias de uma mesma espanãcie e cepas diferentes podem ter caracteri­sticas diversas que dependem do tipo de queijo de onde foi isolada, o que corrobora a influaªncia da regia£o de produção na composição microbiana particular e a caracterí­stica de cada tipo de queijo. Este achado éimportante principalmente para a definição da Denominação de Origem Protegida dos queijos artesanais brasileiros, contribuindo assim para a promoção, autenticidade e preservação da gastronomia cultural. Tambanãm foi possí­vel constatar a correspondaªncia entre algumas propriedades das bactanãrias la¡ticas, como a produção de antimicrobianos de origem protanãica ativos contra Listeria monocytogenes - uma bactanãria patogaªnica que pode contaminar os alimentos e que possui alta taxa de letalidade - nos queijos minas artesanal, e a produção de enzimas lipolíticas, em queijos do Maraja³.

A partir da triagem inicial foram selecionadas, dos vários grupos, 220 bactanãrias que exibiram os melhores resultados em cada um dos parametros analisados e efetuados então testes específicos para cada uma delas com relação a  formação de aroma, textura, potencial probia³tico in vitro, produção de bacteriocinas e avaliação da segurança em relação ao seu emprego. Com efeito, as bacteriocinas são protea­nas produzidas por bactanãrias capazes de inibir ou retardar o crescimento de microrganismos patogênicos que causam toxinfecções alimentares. A pesquisadora conta, por exemplo, que uma cepa de Lactobacillus plantarum, isolada a partir do queijo minas artesanal, foi escolhida em razãodo seu maior espectro de inibição frente a patógenos e ao seu potencial probia³tico. Foi o que se verificou nos testes em cultura empregados para avaliar a inibição de Listeria monocytogenes e Staphylococcus aureus, estes últimos produtores de enterotoxinas, substâncias que causam toxi-infecção alimentar. Nestes casos, os testes foram realizados em microqueijos produzidos atravanãs de um protocolo especa­fico que imita as condições de processamento de queijos minas artesanal. O potencial probia³tico foi avaliado atravanãs de análises de resistência a s condições encontradas no trato gastrointestinal.

Larissa lembra que a técnica de fabricação de microqueijo, utilizada pela primeira vez no Brasil, evita desperda­cios e contribui imensamente para a redução de custos nas pesquisas, tornando possí­vel analisar cerca de 192 microqueijos por vez com custos quinhentas vezes menor do que se fossem empregados os produtos comerciais. Os protocolos relativos a esta técnica já existiam e foram bem definidos no instituto Nizo Food Research, na Holanda, para a produção dos queijos Gouda e Cheddar, mas pela primeira vez foram aplicados em queijos brasileiros de média umidade.

O trabalho empregou pela primeira vez a técnica de engenharia evolutiva ou adaptativa envolvendo bactanãrias la¡ticas isoladas de queijos artesanais

Engenharia evolutiva

Por fim, o trabalho empregou pela primeira vez a técnica de engenharia evolutiva ou adaptativa envolvendo bactanãrias la¡ticas isoladas de queijos artesanais. A engenharia evolutiva éum manãtodo que pode ser utilizado para a obtenção de bactanãrias mais robustas para um determinado fim. Ela possibilita uma seleção natural, que não envolve modificações genanãticas, que permite seleção de microrganismo mais resistente a uma condição especa­fica. Com o emprego desta técnica e, portanto, sem fazer modificações genanãticas, a pesquisadora conseguiu um aumento de seis vezes na taxa de acidificação do leite nas cepas evolua­das em comparação com as parentais -não evolua­das - e um aumento de 90% da viabilidade desta cepa ao estresse provocado pelo a¡cido presente em meio de cultura simulando o suco gástrico. A técnica possibilita adaptar bactanãrias a  condição desejada, de forma natural, tornando-as mais eficazes.

Larissa conclui dizendo que “o isolamento das bactanãrias presentes nos queijos artesanais com o objetivo de desenvolver culturas la¡ticas com caracteri­sticas especa­ficas pode ajudar o produtor na obtenção de produtos mais seguros e customizados, que podem atender segmentos de consumidores que buscam por produtos com propriedades particulares”. Mas para tanto, insiste ela, deve existir apoio e colaboração entre universidades, institutos de pesquisas, instituições municipais e estaduais responsa¡veis pela legislação dos queijos artesanais e os produtores no que concerne ao desenvolvimento de projetos que visem a aplicação das culturas, ações educativas, de orientação e suporte para a ampliação do comanãrcio destes queijos historicamente e socialmente importantes para opaís.

 

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