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Na contrama£o do preconceito: UFF amplia o debate sobre a intolera¢ncia religiosa no Brasil
No Brasil, apesar da miscigenação do povo e de sua pluralidade cultural, nunca foi tarefa fa¡cil conjugar o verbo Ser no presente das religiaµes. Ha¡ sempre dominantes e dominados.
Por Jorge Pessano - 02/10/2019



Eu sou cristão; Tu anãs budista; Ele émua§ulmano; Na³s somos espa­ritas; Va³s sois cata³licos; Eles são umbandistas. No Brasil, apesar da miscigenação do povo e de sua pluralidade cultural, nunca foi tarefa fa¡cil conjugar o verbo Ser no presente das religiaµes. Ha¡ sempre dominantes e dominados. Interessada em aprofundar o estudo sobre a crescente intolera¢ncia a s religiaµes de matrizes africanas, que vem se transformando em mais um problema social brasileiro, a professora do Departamento e Programa de Antropologia da UFF, Ana Paula Mendes de Miranda, estãoa frente de três trabalhos que buscam estudar a fundo e ampliar o debate sobre um tema polaªmico: a intolera¢ncia religiosa.

As pesquisas tem em comum o interesse de compreender como os chamados casos de intolera¢ncia religiosa tem sido apresentados como problema paºblico. Inicialmente, a professora analisou os casos ocorridos na cidade do Rio de Janeiro. Tempos depois, o enfoque foi a transformação dos mesmos problemas em uma questãonacional, com alcance internacional, tendo em vista eventos ocorridos recentemente na capital carioca e que ampliaram a visibilidade desses conflitos. Ana Paula ressalta que a motivação desses eventos éde natureza anãtnico-racial-religiosa, e em alguns casos, também de gaªnero. “Os projetos buscam uma análise pioneira e multidisciplinar do problema no Brasil e sua interrelação com o Direito e as Ciências Sociais, na medida em que não olha apenas a situação das vitimas, mas todo um conjunto de ações pola­tico-jura­dicas de mobilização e reivindicação de reconhecimento de direitos civis”, explica a antropa³loga.

Para realizar o trabalho, a professora conta com o apoio de colaboradores, como os alunos de mestrado, Leonardo Vieira, e doutorado, Rosiane Rodrigues, envolvidos diretamente na pesquisa, além da supervisão de pa³s-doutorado de Roberta Correa. Segundo a pesquisadora, éimportante ressaltar que Leonardo e Rosiane são negros e lideres religiosos do candomblanã, ele babalorixa¡ e ela yalorixa¡. Anteriormente, outros estudantes já passaram pelo projeto, cerca de dez, entre graduação e pós-graduação.

Terrorismo religioso

Ana Paula salienta que a expressão intolera¢ncia religiosa éuma categoria nativa, ou seja, se refere a  forma pela qual as vitimas identificam o que sofreram. O termo se adequava principalmente a conflitos no a¢mbito domanãstico, a xingamentos e ofensas que a justia§a considera de “menor potencial ofensivo”. No entanto, o que ela tem visto atualmente - destruição de terreiros, assassinato de religiosos, expulsão, etc. - não tem sido assim designado pelas vitimas, que preferem chamar os casos de “racismo religioso”, “genoca­dio” ou “terrorismo”. Esses casos envolvem grupos organizados - mila­cias, traficantes, grupos de outras religiaµes - que deliberadamente atacam os afro-religiosos.

Ainda segundo a professora, a vida das vitimas estãoem risco e não se trata apenas de uma ofensa moral. Ha¡ risco também a todo o grupo religioso que fica impedido de seguir praticando sua religia£o. Recentemente, por exemplo, houve grande comoção quando do incaªndio da Catedral de Notre Dame, em Paris, principalmente pelo seu patrima´nio hista³rico e sua importa¢ncia para os cata³licos. No Brasil, a população vive quase que diariamente com eventos equivalentes, são que as vitimas não são reconhecidas como tal. Ana Paula enfatiza que “a liberdade de expressão não significa o direito de destruir a crena§a dos outros”.

Estudos de caso

Em junho de 2015, mostra a pesquisa, uma menina de 11 anos foi apedrejada no bairro da Penha, zona norte do Rio de Janeiro, quando saa­a de um culto de candomblécom sua ava³. A va­tima foi atingida na cabea§a, chegando a desmaiar. Foi levada novamente ao terreiro, onde recebeu os primeiros cuidados. A ava³ relatou o caso numa rede social. Vestidas com roupas de santo, ela e a neta publicaram fotos portando um cartaz feito a  ma£o, no qual se lia “Eu visto branco da paz. Sou do candomblée vc?”. A divulgação do caso, que foi registrado na 38ª DP, alcana§ou as primeiras pa¡ginas dos jornais e a menina, após ser submetida ao exame de corpo delito, deu entrevistas, foi recebida por pola­ticos e liderana§as religiosas, cata³licas e protestantes, e participou de manifestações contra a intolera¢ncia religiosa organizadas por afro-religiosos, reafirmando seu pertencimento religioso.

No maªs anterior outra controvanãrsia envolvendo uma criana§a e as religiaµes afro-brasileiras circulou nas redes sociais, embora com menor repercussão. O ator Henri Castelli publicou uma foto da filha vestida de “baiana”, com um fio de contas no pescoa§o, ao lado de sua ma£e de santo, do terreiro Grupo Unia£o Espa­rita Santa Ba¡rbara (GUESB), em Maceia³, Alagoas. A polaªmica começou quando a ma£e da criana§a fez comenta¡rios que atingiam a opção religiosa do ex-marido: “Minha filha foi presente de Deus... Ela não pertence a nenhum outro espa­rito que não seja o Espa­rito Santo de Deus!”.

A sugestãode que o candombléteria associação aos cultos demona­acos ficou nas entrelinhas, causando repercussão imediata nas redes sociais, levando a ma£e a fazer novo comenta¡rio, no qual diz: “#desabafo #chegadefarsa #chegadementira #aquinãoentramacumba. P.S.: para quem se sentiu desrespeitado pela religia£o essa não foi a intenção”. Como consequaªncia da polaªmica, a ma£e de santo registrou queixa na 2ª Delegacia de Pola­cia de Maceia³, tendo a ma£e da criana§a sido chamada a depor na 30ª DP de Sa£o Paulo, o que éum tanto inusitado como procedimento policial nopaís.

Ana Paula aponta o fato de que este não éum tema novo no cena¡rio nacional. Estaria a intolera¢ncia religiosa deixando de ser concebida apenas como um problema social, isto anã, um conflito em relação aos valores, a s crena§as, aos costumes, para se tornar um problema paºblico? De acordo com a pesquisadora, o tema também foi analisado pelo professor e socia³logo americano, Joseph Gusfield, que estudou profundamente os problemas sociais americanos, definindo essa questãocomo um tema controverso no espaço e na esfera paºblicos, demandando tratamento sanãrio pelos poderes paºblicos, instituições e movimentos sociais.

Para avaliar o seu grau de intolera¢ncia e se aprofundar um pouco mais sobre o assunto, leia a entrevista a seguir com a antropa³loga Ana Paula Mendes de Miranda:

Quais os locais, templos e religiaµes pesquisadas?

Nossa abordagem prioriza as religiaµes afro-brasileiras, em especial, o candomblanã. Portanto, nos referimos a terreiros, não a templos. A pesquisa tem ocorrido em quatro estados - Rio de Janeiro, Sergipe, Alagoas e Distrito Federal. Fora do Brasil, foram realizados trabalhos de campo em Portugal e na Argentina, especialmente, com a pesquisadora Roberta Correa. Além dos terreiros, fazemos pesquisa em delegacias, tribunais, bem como em audiaªncias e escolas públicas, lugares onde hágrande concentração de casos.

Vocaª mencionou acima dois estados do Nordeste, como isso ocorreu?

A pesquisa no Nordeste resultou de uma parceria com o professor Ilzver Matos, do mestrado em Direitos Humanos, da Universidade Tiradentes, em Aracaju, Sergipe (Unit-SE), intitulado “Doutrinas, prática s e saberes locais: controvanãrsias entre os movimentos de reconhecimento de direitos e a perspectiva tutelar das políticas públicas de Justia§a e Segurança Paºblica no campo dos Direitos Humanos”. A pesquisa recebeu financiamento da CAPES e da FAPITEC-SE (o equivalente a  FAPERJ). Além de palestras, o projeto financia a pesquisa de campo, bem como a mobilidade de estudantes e professores. No momento, tem um orientando meu do Programa de Pa³s-Graduação em Antropologia (PPGA-UFF) fazendo pesquisa de campo num terreiro de candomblélocal.

Quais foram as suas fontes?

Nossos interlocutores são prioritariamente as pessoas religiosas, sejam elas vitimas ou não. Mas também entrevistamos os profissionais que atuam nesses casos, como policiais, professores, jua­zes e promotores.

O que a levou a pesquisar sobre a tema¡tica?

Eu havia conclua­do uma pesquisa sobre homicidios no Rio de Janeiro e não queria mais trabalhar com casos de violência física. Fui convidada por um amigo, ex-comandante da pola­cia militar, a conhecer um grupo que estava se organizando para denunciar casos relacionados a esse tipo de violência, a Comissão de Combate a  Intolera¢ncia Religiosa (CCIR). Todos os anos eles fazem uma caminhada de mobilização em Copacabana, chamando a atenção da população para essa problema¡tica. Fui e não saa­ mais. Mantenho contato com o grupo e sigo pesquisando o tema.

Quais sera£o os desdobramentos do trabalho?

O projeto tem produzido ações de difusão do conhecimento por meio de debates e publicações, assessoria aos movimentos em termos de como proceder em casos de violação de direitos. E produzimos também um va­deo, chamado “Conflitos da Fanã”, dispona­vel nas redes sociais. Além disso, produzimos ainda o primeiro relatório dos casos para a CCIR, em 2010, cuja metodologia seguiu sendo utilizada pelo grupo. A expansão da pesquisa para o Nordeste - Maceia³ e Aracaju -  étambém um desdobramento, porque fui dar palestras nessas capitais a convite dos religiosos e vi que era preciso entender o que estava acontecendo por la¡. Fala-se muito da Bahia, mas não havia nada sobre esses outros estados. Em relação ao futuro, tudo vai depender da existaªncia de financiamentos. Se existirem, seguiremos pesquisando e transferindo conhecimento para a população.

Qual a importa¢ncia do trabalho para a UFF e para a sociedade?

A realização de pesquisas empa­ricas nesse tema tem como consequaªncia o aprimoramento dos referenciais teóricos sobre reconhecimento de direitos no Brasil. Além disso, por fazer parte de um programa de pós-graduação que tem nota 5 e de um dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs) instalados no Brasil, penso que a UFF ganha ao ter mais pesquisas inovadoras que da£o retorno a  sociedade, que ganha na medida em que se pode explicitar como as desigualdades, jura­dica e social, impedem a garantia de direitos. Ao fazermos isso e auxiliar os grupos que são os principais afetados, podemos ajudar na construção de uma sociedade mais justa e equa¢nime.

Então, podemos sonhar que estaremos voando brevemente em canãu de brigadeiro?

Nãotenho ilusaµes de que essas transformações sejam rápidas e para o bem. Ao contra¡rio, ao longo desses últimos 10 anos, tenho visto o cena¡rio se agravar, porque infelizmente os órgãos paºblicos seguem omissos. Afinal, as vitimas são majoritariamente pobres e pretas. Mesmo assim, nosnão desanimamos! A universidade não éespaço para desa¢nimo! Pretendemos estender o debate e fazer um curso de extensão para escolas públicas no intuito de fazer com que alunos e professores saibam lidar melhor com a tema¡tica da discriminação religiosa. Respeito e aceitação são necessa¡rios!

 

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