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A cultura como alvo
Diante dos últimos acontecimentos e declaraçaµes, professores da USP discutem a atual situaa§a£o da cultura no Brasil
Por Marcello Rollemberg - 07/12/2019


Arte sobre foto 123RF - Thais H. Santos

“Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?”, bradava o tribuno e orador Marco Taºlio Ca­cero ao senador Lucio Sergio Catilina. Atéquando ele abusaria da paciaªncia dos romanos com suas ideias retra³gradas e perigosas? E atéquando se abusara¡, no Brasil, da paciaªncia daqueles que prezam os bens culturais, que valorizam a cultura, que veem na música, no teatro, no cinema, nas artes pla¡sticas livres de grilhaµes verdadeiros formadores de uma identidade nacional, de uma cidadania? Porque, para muitos, essa tal paciaªncia estãosendo colocada a  prova diariamente. “Ha¡ uma guerra não declarada contra a inteligaªncia”, afirma o professor da Escola de Comunicações e Artes da USP Carlos Augusto Calil, ex-secreta¡rio de Cultura da cidade de Sa£o Paulo. E essa guerra tem várias faces. As mais visa­veis talvez sejam as recentes nomeações para a área cultural do governo federal osisso sem falar na transferaªncia da secretaria especial de Cultura para a pasta do Turismo. Piada pronta? Nãonecessariamente. Porque atéa galhofa deve ter limites. Coisa para a qual o novo presidente da Funarte, o maestro e youtuber osuma combinação pa³s-moderna, digamos osDante Mantovani não pareceu atentar. “O rock ativa a droga que ativa o sexo que ativa a indústria do aborto. A indústria do aborto por sua vez alimenta uma coisa muito mais pesada que éo satanismo”, afirmou ele, num silogismo que coloca no bolso aquele que diz que “madeira boia, pato boia. Logo, pato éfeito de madeira”. A declaração de Mantovani estãomais próxima de uma versão roqueira (e alucinada) da terra plana.

Mas de uma coisa não se pode acusar o maestro-youtuber: de infidelidade ao mestre. Ao afirmar em outra postagem em seu canal do Youtube que “os Beatles colocaram em prática as ideias da Escola de Frankfurt , querendo destruir a cultura ocidental”, ele nada mais faz do que servir de caixa de ressonância a s “ideias” do dublaª de astra³logo-“pensador contempora¢neo”-guru conservador Olavo de Carvalho, que desde seu autoexa­lio na Virga­nia fica dando pitacos nas coisas brasileiras. Foi Olavo quem disse que as músicas do Beatles haviam sido compostas por Theodor Adorno, o fila³sofo da comunicação e um dos criadores da Escola de Frankfurt. Olavista convicto, Mantovani repetiu a fala, sem parar para pensar no absurdo embutido nela. Mas a postura de Dante Mantovani éapenas uma das várias pontas do iceberg extremista a  deriva que teima em se movimentar em direção ao transatla¢ntico multifacetado da cultura nacional. E a colisão parece inevita¡vel osse éque já não aconteceu. Desde a transferaªncia da Secretaria Especial de Cultura para o Ministanãrio do Turismo atéas recentes nomeações para cargos-chave da área cultural, tudo leva a um franzir preocupado de sobrolho, para se dizer o ma­nimo. “Isso tudo evidencia, na verdade, algo muito mais grave. Tudo indica que háuma intenção de fundo, que não ésão de expatriação mas também de apagamento, processo iniciado durante a campanha eleitoral por forças aliadas ao atual governo, em particular ligadas a um falso moralismo que se mostram hoje claramente favoráveis a  censura”, afirma o professor da Escola de Comunicações e Artes Martin Grossmann, ex-diretor do Museu de Arte Contempora¢nea da USP, o MAC, e colunista da Ra¡dio USP.

Por mais estapafaºrdias e incoerentes que parea§am as declarações e ações de membros do atual governo com relação a  cultura no Brasil ose vamos falar são da parte cultural, sem outras considerações, como as recentes ilações a  pirotecnia de Leonardo Di Caprio –, elas são muito sanãrias. Parecem risa­veis, mas não são. A questãocultural émuito sanãria e precisa ser tratada desta forma. Declarações como a do novo presidente da Fundação Palmares, o jornalista Sanãrgio Nascimento de Camargo, afirmando que “o Dia da Consciaªncia Negra éuma vergonha e precisa ser combatido” ou que “a escravida£o no Brasil fez bem aos negros” são muito mais do que frases aleata³rias de alguém que parece desconectado com a presente e o passado ose que paµe em risco o futuro. Camargo, que em seu perfil no Facebook se identifica como “negro de direita, contra¡rio ao vitimismo e ao politicamente correto”, teve sua nomeação barrada por uma Ação Popular, mas o governo pode recorrer da decisão.

“As pessoas não vivem sem a sua cultura, mas não se da£o conta disso”
Carlos Augusto Calil, ex-secreta¡rio municipal de Cultura, critica a atual guerra não declarada contra a inteligaªncia e os princa­pios da democracia

“Estamos vivendo o desmonte total das instituições da Cultura”
Essa afirmação éda professora da USP Maria Arminda do Nascimento Arruda, que analisa asmudanças na Secretaria Especial da Cultura, hoje subpasta do Ministanãrio do Turismo

“Estamos vivendo o desmonte total das instituições da cultura”, afirma a socia³loga Maria Arminda do Nascimento Arruda, diretora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, coordenadora do Escrita³rio USP Mulheres e pra³-reitora de Cultura da USP entre os anos de 2010 e 2015. “Quando vocêtransforma a cultura em um instrumento que éde fundamentalismo ou de visaµes preconceituosas, vocêestãodestruindo a cultura”, garante ela, se referindo a  postura do atual governo em taxar, por exemplo, de “marxismo cultural” a utilização da Lei Rouanet e a s nomeações de Katiane de Fa¡tima Gouvaªa, integrante da Caºpula Conservadora das Amanãricas, para secreta¡ria de Audiovisual e do pastor e colunista social Edila¡sio Barra osque atende pelo apelido de Tutuca ospara assumir a Superintendaªncia de Desenvolvimento Econa´mico da Ancine, a Agência Nacional de Cinema.

"200 versa­culos da Ba­blia"


Como todos sabem osou deveriam saber –, o Brasil éum estado laico. Esta¡ la¡, na Constituição: Igreja e Estado estãoapartados formalmente. Mas isso não parece importar muito para alguns. O problema éque esses “alguns” são os que da£o as cartas atualmente no Paa­s. E nada escapa desse afa£ religioso, nem a Justia§a oslembram da possí­vel escolha de um ministro “terrivelmente evanganãlico” para o STF? –, nem a cultura. Em agosto, o presidente da República disse que sua intenção era nomear para dirigir a Ancine “alguém que soubesse pelo menos 200 versa­culos da Ba­blia e que tivesse os joelhos machucados de tanto ajoelhar para rezar”. Saber a Ba­blia de cor e rezar são ações louva¡veis, mas não necessariamente deveriam ter algo a ver com a direção de um órgão que trata da produção audiovisual do Paa­s, do fomento a  cultura. A própria Katiane Gouvaªa, a nova titular da Secretaria de Audiovisual osque tem funções correlatas a  Ancine, mas que não são interdependentes –, não tem qualquer ligação com o cinema ou a TV, mas éevanganãlica.

“As pessoas tem o direito a ter suas religiaµes, mas o estado democra¡tico representa todas as tendaªncias”, afirma a socia³loga Maria Arminda. Além do mais, acredita-se que a questãode fénão deveria ser pré-requisito para assumir um cargo paºblico.  

Coincidentemente (ou não), Katiane fez parte de um comitaª que, meses atrás, sugeriu a  Presidaªncia a extinção da Ancine. Em um site, ela publicou, antes de ser nomeada, “que o audiovisual e o cinema não sejam plataformas para difundir e promover os valores que denigrem a nossa imagem como indiva­duo, sociedade e indústria produtiva”.

Essa questãotem um fundo que precisa ser ainda mais discutido. “No atual contexto de animosidade crescente, partidos pola­ticos radicalizados consideram, mais que os outros, que o Estado lhes pertence e que a eles, e ao Paa­s, ira£o impor suas ideias, tão curtas que não chegam a  esquina”, declarou, em depoimento ao Jornal da USP, o professor aposentado da ECA JoséTeixeira Coelho, ex-diretor do MAC e ex-curador-coordenador do Museu de Arte de Sa£o Paulo (Masp). O problema, para ele, éa dependaªncia que se tem das ações provenientes do Estado. Segundo ele, isso éum erro. “A sociedade assiste, passiva, a esse baléde irreleva¢ncias. Do Estado espera-se tudo. Sa³ que quando se espera que a cultura venha do Estado ou fique forte graças ao Estado ou sobreviva por favor do Estado, dramas como os atuais são se repetem.  A sociedade tem de fortalecer-se frente ao Estado e encontrar o caminho para libertar-se dessa tutela”, acredita ele, que também foi colaborador da Ca¡tedra Unesco de Pola­tica Cultural da Universidad de Girona, na Espanha.

Já para a artista pla¡stica e professora Giselle Beiguelman, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP e também colunista da Ra¡dio USP, a questãoideola³gica acaba permeando atualmente toda a discussão sobre políticas públicas culturais no Brasil. “Nãoépossí­vel que um governo de direita ou de esquerda decida apoiar apenas projetos que digam respeito a suas prerrogativas ideola³gicas. As políticas públicas tem um compromisso com o Paa­s e não com os partidos. a‰ preciso respeitar a pluralidade de visaµes”, afirma ela. Carlos Augusto Calil, da ECA, vai mais além : “Ha¡ um sentimento antielitista envenenando o ar que respiramos. Enfrentamos uma guerra não declarada contra a inteligaªncia, a tolera¢ncia, o patrima´nio simba³lico nacional. Contra os princa­pios da democracia”.

Turismo e Cultura; Alvim e Fernanda


Esse embate ao qual se refere o ex-secreta¡rio de Cultura da cidade de Sa£o Paulo teve um de seus pontos fulcrais na transferaªncia da Secretaria Especial de Cultura do Ministanãrio da Cidadania para o Ministanãrio do Turismo, no começo de novembro. Por mais que o turismo cultural seja uma prática costumeira mundo afora osRoma e Paris que o digam –, muitos viram essa transferaªncia como uma diminuição da Cultura, um rebaixamento. E não necessariamente sem raza£o. “Nãoentendo essa relação entre Cultura e Turismo. Ainda que haja uma relação possí­vel do ponto de vista de entender que o Turismo hoje éparte da Cultura, efetivamente a Cultura como espaço de reflexa£o e pola­tica não tem conexão com o Turismo”, acredita a professora Maria Arminda, da FFLCH. “Parece que as artes e as culturas para o atual governo se mostram um estorvo, e melhor seria se fossem eliminadas de cena”, avana§a o colunista da Ra¡dio USP e ex-vice-diretor do MAC Martin Grossmann.

Já o professor Carlos Augusto Calil faz uma reflexa£o mais ampla sobre a própria criação do Ministanãrio da Cultura, que mostra reflexos atéhoje. “O Ministanãrio da Cultura, desde a sua criação, foi politicamente irrelevante. Na verdade, foi um erro levar as instituições culturais federais para Brasa­lia. Funarte, Embrafilme, Servia§o Nacional de Teatro etc. estavam consolidados no Rio de Janeiro e não se curvavam ao governo militar. Antes, a ele resistiam de dentro da própria estrutura do Estado. A criação do Ministanãrio da Cultura atendeu a uma dimensão da pequena pola­tica e teve um papel disruptivo na evolução das instituições. Foi um erro centralizar a pola­tica cultural oficial em Brasa­lia”, acredita Calil. “Agregar a cultura e a arte a um ministanãrio social não era ma¡ ideia. Mas a questãonão éconceitual, épola­tica. Atualmente, as políticas públicas em benefa­cio da arte e da cultura estãosendo castigadas, por seu suposto elitismo e vianãs ideola³gico. A transferaªncia da Secretaria de Cultura para o Ministanãrio do Turismo soa como rebaixamento, despresta­gio, humilhação. Nãoporque sejam incompata­veis”, afirma.

Para além da mudança de enderea§o da Cultura em Brasa­lia, outro fator de tensão foi a nomeação do novo secreta¡rio especial da pasta: o diretor de teatro Roberto Alvim, o mesmo que hálguns meses atacou Fernanda Montenegro pelas redes sociais. “Então, acuso Fernanda (Montenegro) de mentirosa, além de expor meu desprezo por ela, oriundo de sua deliberada distorção abjeta dos fatos”, escreveu Alvim. “A foto da sãordida Fernanda Montenegro como bruxa sendo queimada em fogueira de livros, publicada hoje na capa de uma revista esquerdista, mostra muito bem a canalhice abissal dessas pessoas”, continuou ele, referindo-se a uma foto de divulgação da revista litera¡ria 451. Esses ataques foram feitos quando Alvim ainda era diretor do Centro de Artes Caªnicas da Funarte.


“As artes e a cultura, para o atual governo, são um estorvo”

O professor Martin Grossmann questiona. em sua coluna, o que nos representa culturalmente como brasileiros

Mas a mudança de cargo não arrefeceu sua verve. Em novembro, em Paris, ele afirmou, para espanto da plateia presente na reunia£o anual da Unesco, que “a arte brasileira transformou-se em um meio para escravizar a mentalidade do povo em nome de um violento projeto de poder esquerdista”. Nãosatisfeito, prosseguiu com seu corola¡rio, prometendo criar “uma nova geração de artistas” e que o atual governo retomaria “a beleza” nas obras de arte, seja la¡ o que for isso. “Mas o que éa definição de belo?”, questiona Maria Arminda. “A noção do belo éhista³rica, ésocial e se transforma”, completa. E Calil finaliza, ao falar sobre a desvalorização da cultura no Paa­s: “O Brasil perde substância, sentido de coesão social, releva¢ncia pola­tica, capacidade de atrair investimento material e simba³lico. Ha¡ uma generalizada atração pela cultura brasileira no exterior, a que nosnão temos sabido corresponder”.

 

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