Paulo Freire, Anasio Teixeira e Darcy Ribeiro tem muito em comum. Além de semelhanças na biografia, os três intelectuais compartilharam o mesmo projeto de vida: o compromisso com a Educaça£o
Pioneiros: Paulo Freire, Darcy Ribeiro e Anasio Teixeira
Nascidos nas primeiras décadas do século XX, eles marcaram de forma decisiva o campo da Educação no Brasil e no mundo, não apenas pela reflexa£o tea³rica, mas também pela atuação prática . Paulo Freire, com um manãtodo de alfabetização revoluciona¡rio, demonstrou ser possível ensinar a ler e escrever com base na experiência de vida das pessoas. A educação pública de qualidade foi o que moveu Anasio Teixeira, que ajudou a criar escolas com propostas inovadoras em diferentes estados brasileiros. Discapulo de Anasio, Darcy Ribeiro fez da Educação a principal utopia, ressignificando o olhar de antropa³logo para o de educador obstinado, que assumiu cargos paºblicos e ainda encontrou tempo para implantar projetos e escrever livros.
PAULO FREIRE
Formado em Direito pela Universidade do Recife, sua cidade natal, Paulo Reglus Neves Freire nunca exerceu o ofacio e iniciou carreira profissional lecionando langua portuguesa em uma escola de ensino manãdio. “O bera§o lhe permitiu ter contato com a realidade social nordestina da anãpoca, marcada por forte exclusão social e alto andice de analfabetismoâ€, explica o professor Erlando da Silva Raªses, da Faculdade de Educação da Universidade de Brasalia (UnB). Raªses ressalta que o analfabetismo, para Freire, não era “uma erva-daninha a ser erradicadaâ€, mas uma das expressaµes concretas de uma realidade social injusta.
Em 1963, iniciou as primeiras experiências na extensão universita¡ria. Nessa anãpoca, quase 40% da população brasileira era analfabeta e apenas um tera§o das criana§as frequentava escolas. A proposta de alfabetizar 300 trabalhadores rurais em 45 dias, em Angicos (RN), deu certo e consolidou um projeto piloto. A partir daa, instaurou um manãtodo inovador de alfabetização de jovens e adultos, que passou a servir de para¢metro para experimentos no Brasil e no mundo.
“A grande novidade na metodologia freiriana foi alfabetizar a partir da realidade social dos aprendizes. Um canãlebre pensamento dele diz que ‘a leitura do mundo precede a leitura da palavra’. Isso traz uma demarcação forte de como seu manãtodo se vincula a história de vida dos educandosâ€, sintetiza Erlando Raªses. Na Universidade de Brasalia, muitos cursos fazem uso da obra de Freire, sem se restringir a Educação: Psicologia, Direito, Sociologia, Hista³ria, Letras, Artes, Geografia e atéComunicação.
A primeira etapa do manãtodo de alfabetização consiste no levantamento vocabular do aluno e da sociedade em que vive, das palavras e aspectos do cotidiano. A segunda etapa éa definição das palavras ou temas geradores, em que os educandos codificam e decodificam os temas, em busca de seu significado social para que, finalmente, na problematização, sejam capazes de elaborar uma visão cratica do mundo que, nas palavras do pra³prio Freire, visa a conscientização, a qual ira¡ gerar a libertação para a transformação, por meio dos carculos de cultura.
A preocupação em levar o universo da escrita e da leitura para os excluados foi o que culminou na prisão e no exalio de Paulo Freire, com o golpe militar de 1964. Seu trabalho nopaís foi interrompido, mas durante o exalio a experiência freiriana difundiu-se por todo o mundo. A canãlebre obra Pedagogia do Oprimido foi publicada em 1968, no Chile. Em 2016, esse era o aºnico livro brasileiro a constar na lista dos cem tatulos mais pedidos pelas universidades de langua inglesa. Ele morou na Bolavia, Chile, Estados Unidos e Suaa§a. Em 1969, foi convidado a lecionar na Universidade de Harvard e, em 1970, tornou-se consultor e coordenador emanãrito do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), com sede em Genebra. Voltou de vez a terra natal em 1980.
No Brasil, participou ativamente de iniciativas na Educação. Em 1963, coordenou o Plano Nacional de Alfabetização do governo Joa£o Goulart. Nos anos 1980, lecionou na Pontifacia Universidade Cata³lica de Sa£o Paulo (PUC-SP) e na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Entre 1988 e 1991, foi nomeado secreta¡rio de Educação do municapio de Sa£o Paulo pela então prefeita Luiza Erundina. Paulo Freire éo brasileiro com mais tatulos de Doutor Honoris Causa concedidos por universidades, entre elas Harvard, Cambridge e Oxford. Sa£o mais de 40. Em 2012, o educador e fila³sofo pernambucano passou a ser reconhecido como Patrono da Educação Brasileira.
ANaSIO TEIXEIRA
Considerado o principal idealizador das grandesmudanças que marcaram a Educação brasileira no século 20, Anasio Spanola Teixeira da¡ nome ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), que fundou. Em Brasalia, encarou a dupla missão de estabelecer o sistema de educação pública do Distrito Federal e, ao lado de Darcy Ribeiro, imaginar, desenhar e implantar a Universidade de Brasalia.
Filho de fazendeiros do sertão baiano, Anasio Teixeira formou-se em Direito em 1922, no Rio de Janeiro, e foi nomeado, com apenas 24 anos, inspetor geral de ensino em Salvador, equivalente a função de secreta¡rio de Educação. Na década de 1920, cursou mestrado na Universidade de Colaºmbia, nos Estados Unidos, sob a orientação de John Dewey, que se tornou seu grande mestre.
A influaªncia de Dewey e de outros fila³sofos da Educação levou Anasio a integrar a iniciativa da Associação Brasileira de Educação, a Educação Nova. “Ele participou desse movimento de reconstrução educacional visando a transformação da sociedade brasileira. A escola pública era vista como instrumento essencial para a construção e consolidação da sociedade democra¡tica, tema que o educador baiano tratou em duas de suas principais obras: Educação não éprivilanãgio (1967) e Educação éum direito (1968)â€, aponta a professora Eva Waisros, da Faculdade de Educação da UnB.
Nessa anãpoca, a educação era profundamente elitista, para poucos. Em 1932, intelectuais brasileiros publicaram o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. O documento defendia a laicidade, gratuidade, obrigatoriedade e coeducação no ensino paºblico. “Desse idea¡rio, ele nunca se afastou. A defesa incansa¡vel da escola universal e da democracia ésua principal contribuição para a Educação no Brasilâ€, reconhece.
“Como secreta¡rio no Rio de Janeiro, ele fundou escolas exatamente nos moldes preconizados pelos renovadores da Educação: uma escola democra¡tica, física e materialmente bonita, de perspectiva integral e integradoraâ€, sintetiza Waisros. Na Bahia e em Brasalia, criou o conceito de escolas-parque, que funcionavam como uma complementação a educação intelectual promovida pelas escolas-classe, nas quais os alunos tinham acesso a oficinas voltadas para o trabalho ou aspectos de cidadania, atividades de educação física e artastica. Essa configuração seria modelar para a implantação da educação integral nopaís.
Para Murilo Camargo, do Centro de Estudos Avana§ados Multidisciplinares (Ceam) da UnB, Anasio Teixeira pensava o sistema educacional como um todo, observando “como as coisas se articulavam, a produção de conhecimento, a educação ba¡sica, oportunidades para criana§as e atémesmo a universidadeâ€. Antes de fundar a Universidade de Brasalia, Anasio teve uma experiência com a Universidade do Distrito Federal (UDF), extinta em 1937 pelo Estado Novo, sendo suas atividades incorporadas a Universidade do Brasil no Rio de Janeiro. “Foi um modelo inovador, porque antes as instituições de ensino superior eram
criadas em modelos muito antiquadosâ€, observa Camargo.
Uma das inovações da UnB foi a extinção das ca¡tedras: professores e alunos passaram a ter maior autonomia e liberdade para circular pelos departamentos, identificando-se com os vários setores do conhecimento e ampliando a experiência acadaªmica. A proposta inspirou outras universidades criadas posteriormente, como a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Ele deu frutos a várias gerações de intelectuais e pode ser considerado o maior realizador no campo educacional do século XX no Brasilâ€, afirma Eva Waisros.
Embora não se vinculasse a nenhum partido polatico, Anasio Teixeira foi alvo de perseguição polatica e sofreu um atentado que lhe tirou a vida. Foi encontrado morto no poa§o do elevador do prédio do historiador Sanãrgio Buarque de Holanda, com quem iria se encontrar para postular uma candidatura a Academia Brasileira de Letras.
 DARCY RIBEIRO
Antropa³logo, socia³logo, educador, escritor e polatico brasileiro, a personalidade multifacetada de Darcy Ribeiro torna longa a lista de “fazimentosâ€, como ele pra³prio gostava de chamar suas realizações. Graduou-se em Ciências Sociais, em 1946, na Fundação Escola de Sociologia e Polatica de Sa£o Paulo (FESPSP). As primeiras experiências profissionais foram no Servia§o de Proteção aos andios (SPI). Em 1956, ele organizou e passou a dirigir o Museu do andio, sediado no Rio de Janeiro.
Embora a defesa da causa indagena esteja presente em toda sua trajeta³ria, em 1957 Darcy conhece Anasio Teixeira e passa a ter contato com o universo da Educação. Ele assume a coordenação do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, vinculado ao Inep. “No inacio, os dois trocavam farpasâ€, admite Murilo Camargo do Ceam, “mas depois deram inicio a uma das parcerias mais frutaferas da Educação brasileiraâ€.
“Juscelino Kubitschek pediu a Anasio para criar o sistema educacional do DF e implementar uma universidade em Brasaliaâ€, destaca Camargo, lembrando que o projeto teve inicio em 1962, foi interrompido em 1964 por conta do golpe militar e passou por muitasmudanças de configuração, sobretudo com a reforma universita¡ria de 1968. “Aténos dias atuais, as ideias de Darcy e Anasio seriam muito radicais. Hoje, as boas universidades federais são muito parecidas entre si, mas a UnB foi muito arrojada, moderna e interessante e estabeleceu padraµes que servem de modelo a s outras.â€
Com a ditadura militar, o educador — militante de esquerda, primeiro reitor da UnB, Ministro da Educação no governo de Ja¢nio Quadros e chefe da Casa Civil no governo Joa£o Goulart — foi exilado para o Uruguai. Em Montevidanãu, ajudou na reorganização da Universidade da República do Uruguai e de instituições públicas do continente, além da Universidade de Argel, Arganãlia.
Escrita durante o exalio e lana§ada em 1969, a obra Universidade Necessa¡ria, de Darcy Ribeiro, completou 50 anos recentemente. O livro trata da necessidade da universidade pública para a Amanãrica Latina. Baseado em muitas das ideias e no plano orientador da UnB, o debate permanece atual, a medida que entende a modernização e o crescimento auta´nomo como caminhos para a superação dos problemas das instituições de ensino superior latino-americanas.
De volta ao Brasil, em 1976, passou a se dedicar a educação pública. Vice-governador de Leonel Brizola, no governo do Rio de Janeiro, implantou os Centros Integrados de Ensino Paºblico (Cieps), projeto pedaga³gico inspirado nas concepções de Anasio Teixeira que garantia assistaªncia em tempo integral aos estudantes, com atividades recreativas e culturais para além do ensino formal.
O professor de Literatura Brasileira da UnB Alexandre Pilati considera o pensamento do educador inquieto, ousado, sanãrio e comprometido. Ha¡ duas caracteristicas na personalidade intelectual de Darcy que merecem destaque, segundo o pesquisador: o “apego a realidadeâ€, que determina a necessidade da reflexa£o e da ação; e a “capacidade de autoquestionamento das ideias, o que épra³prio de um intelectual legatimoâ€.
Pilati reconhece em Darcy Ribeiro a informalidade provocativa e produtiva. Ao longo da vida, o antropa³logo escreveu obras sobre Etnologia, Antropologia, Educação e romances. Mesmo reconhecido como sa¡bio, gostava de conversar e dialogar, sendo grande contador de histórias: “A utopia o fazia produzir com base na realidade. Ao mesmo tempo, éa consciência da realidade que alimentava o desejo de utopiaâ€.
O último trabalho — O Povo Brasileiro —, escrito dois anos antes de sua morte, éuma tentativa de dar sentido a formação do Brasil, relacionando-se a uma “tradição do pensamento que vem desde Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre — com Casa-Grande & Senzala —, Sanãrgio Buarque de Holanda — com Raazes do Brasil. “Todas essas facetas eDimensões se articulam em torno de um traa§o fundamental, que vem do desejo de travar contato com o Brasil profundo, o Brasil realâ€, afirma.
Dos romances, pode-se destacar o livro Maara, escrito durante o exalio, experimentação de linguagem e montagem, em que o autor consegue reunir tudo o que conhecia de cultura indagena e criar uma tribo fictacia. Em 1992, Darcy Ribeiro foi eleito para a cadeira nº 11 da Academia Brasileira de Letras, que ocupou atéa morte, em fevereiro de 1997.