Campus

Paulo Freire, Darcy Ribeiro e Ana­sio Teixeira juntos pela Educação
Paulo Freire, Ana­sio Teixeira e Darcy Ribeiro tem muito em comum. Além de semelhanças na biografia, os três intelectuais compartilharam o mesmo projeto de vida: o compromisso com a Educaça£o
Por Carolina Pires - 14/01/2020


Pioneiros: Paulo Freire, Darcy Ribeiro e Ana­sio Teixeira

Nascidos nas primeiras décadas do século XX, eles marcaram de forma decisiva o campo da Educação no Brasil e no mundo, não apenas pela reflexa£o tea³rica, mas também pela atuação prática . Paulo Freire, com um manãtodo de alfabetização revoluciona¡rio, demonstrou ser possí­vel ensinar a ler e escrever com base na experiência de vida das pessoas. A educação pública de qualidade foi o que moveu Ana­sio Teixeira, que ajudou a criar escolas com propostas inovadoras em diferentes estados brasileiros. Disca­pulo de Ana­sio, Darcy Ribeiro fez da Educação a principal utopia, ressignificando o olhar de antropa³logo para o de educador obstinado, que assumiu cargos paºblicos e ainda encontrou tempo para implantar projetos e escrever livros.

PAULO FREIRE
Formado em Direito pela Universidade do Recife, sua cidade natal, Paulo Reglus Neves Freire nunca exerceu o ofa­cio e iniciou carreira profissional lecionando la­ngua portuguesa em uma escola de ensino manãdio. “O bera§o lhe permitiu ter contato com a realidade social nordestina da anãpoca, marcada por forte exclusão social e alto a­ndice de analfabetismo”, explica o professor Erlando da Silva Raªses, da Faculdade de Educação da Universidade de Brasa­lia (UnB). Raªses ressalta que o analfabetismo, para Freire, não era “uma erva-daninha a ser erradicada”, mas uma das expressaµes concretas de uma realidade social injusta.

Em 1963, iniciou as primeiras experiências na extensão universita¡ria. Nessa anãpoca, quase 40% da população brasileira era analfabeta e apenas um tera§o das criana§as frequentava escolas. A proposta de alfabetizar 300 trabalhadores rurais em 45 dias, em Angicos (RN), deu certo e consolidou um projeto piloto. A partir daa­, instaurou um manãtodo inovador de alfabetização de jovens e adultos, que passou a servir de para¢metro para experimentos no Brasil e no mundo.

“A grande novidade na metodologia freiriana foi alfabetizar a partir da realidade social dos aprendizes. Um canãlebre pensamento dele diz que ‘a leitura do mundo precede a leitura da palavra’. Isso traz uma demarcação forte de como seu manãtodo se vincula a  história de vida dos educandos”, sintetiza Erlando Raªses. Na Universidade de Brasa­lia, muitos cursos fazem uso da obra de Freire, sem se restringir a  Educação: Psicologia, Direito, Sociologia, Hista³ria, Letras, Artes, Geografia e atéComunicação.

A primeira etapa do manãtodo de alfabetização consiste no levantamento vocabular do aluno e da sociedade em que vive, das palavras e aspectos do cotidiano. A segunda etapa éa definição das palavras ou temas geradores, em que os educandos codificam e decodificam os temas, em busca de seu significado social para que, finalmente, na problematização, sejam capazes de elaborar uma visão cra­tica do mundo que, nas palavras do pra³prio Freire, visa a  conscientização, a qual ira¡ gerar a libertação para a transformação, por meio dos ca­rculos de cultura.

A preocupação em levar o universo da escrita e da leitura para os exclua­dos foi o que culminou na prisão e no exa­lio de Paulo Freire, com o golpe militar de 1964. Seu trabalho nopaís foi interrompido, mas durante o exa­lio a experiência freiriana difundiu-se por todo o mundo. A canãlebre obra Pedagogia do Oprimido foi publicada em 1968, no Chile. Em 2016, esse era o aºnico livro brasileiro a constar na lista dos cem ta­tulos mais pedidos pelas universidades de la­ngua inglesa. Ele morou na Bola­via, Chile, Estados Unidos e Sua­a§a. Em 1969, foi convidado a lecionar na Universidade de Harvard e, em 1970, tornou-se consultor e coordenador emanãrito do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), com sede em Genebra. Voltou de vez a  terra natal em 1980.

No Brasil, participou ativamente de iniciativas na Educação. Em 1963, coordenou o Plano Nacional de Alfabetização do governo Joa£o Goulart. Nos anos 1980, lecionou na Pontifa­cia Universidade Cata³lica de Sa£o Paulo (PUC-SP) e na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Entre 1988 e 1991, foi nomeado secreta¡rio de Educação do munica­pio de Sa£o Paulo pela então prefeita Luiza Erundina. Paulo Freire éo brasileiro com mais ta­tulos de Doutor Honoris Causa concedidos por universidades, entre elas Harvard, Cambridge e Oxford. Sa£o mais de 40. Em 2012, o educador e fila³sofo pernambucano passou a ser reconhecido como Patrono da Educação Brasileira.

ANaSIO TEIXEIRA

Considerado o principal idealizador das grandesmudanças que marcaram a Educação brasileira no século 20, Ana­sio Spa­nola Teixeira da¡ nome ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), que fundou. Em Brasa­lia, encarou a dupla missão de estabelecer o sistema de educação pública do Distrito Federal e, ao lado de Darcy Ribeiro, imaginar, desenhar e implantar a Universidade de Brasa­lia.

Filho de fazendeiros do sertão baiano, Ana­sio Teixeira formou-se em Direito em 1922, no Rio de Janeiro, e foi nomeado, com apenas 24 anos, inspetor geral de ensino em Salvador, equivalente a  função de secreta¡rio de Educação. Na década de 1920, cursou mestrado na Universidade de Colaºmbia, nos Estados Unidos, sob a orientação de John Dewey, que se tornou seu grande mestre.

A influaªncia de Dewey e de outros fila³sofos da Educação levou Ana­sio a integrar a iniciativa da Associação Brasileira de Educação, a Educação Nova. “Ele participou desse movimento de reconstrução educacional visando a  transformação da sociedade brasileira. A escola pública era vista como instrumento essencial para a construção e consolidação da sociedade democra¡tica, tema que o educador baiano tratou em duas de suas principais obras: Educação não éprivilanãgio (1967) e Educação éum direito (1968)”, aponta a professora Eva Waisros, da Faculdade de Educação da UnB.

Nessa anãpoca, a educação era profundamente elitista, para poucos. Em 1932, intelectuais brasileiros publicaram o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. O documento defendia a laicidade, gratuidade, obrigatoriedade e coeducação no ensino paºblico. “Desse idea¡rio, ele nunca se afastou. A defesa incansa¡vel da escola universal e da democracia ésua principal contribuição para a Educação no Brasil”, reconhece.

“Como secreta¡rio no Rio de Janeiro, ele fundou escolas exatamente nos moldes preconizados pelos renovadores da Educação: uma escola democra¡tica, física e materialmente bonita, de perspectiva integral e integradora”, sintetiza Waisros. Na Bahia e em Brasa­lia, criou o conceito de escolas-parque, que funcionavam como uma complementação a  educação intelectual promovida pelas escolas-classe, nas quais os alunos tinham acesso a oficinas voltadas para o trabalho ou aspectos de cidadania, atividades de educação física e arta­stica. Essa configuração seria modelar para a implantação da educação integral nopaís.

Para Murilo Camargo, do Centro de Estudos Avana§ados Multidisciplinares (Ceam) da UnB, Ana­sio Teixeira pensava o sistema educacional como um todo, observando “como as coisas se articulavam, a produção de conhecimento, a educação ba¡sica, oportunidades para criana§as e atémesmo a universidade”. Antes de fundar a Universidade de Brasa­lia, Ana­sio teve uma experiência com a Universidade do Distrito Federal (UDF), extinta em 1937 pelo Estado Novo, sendo suas atividades incorporadas a  Universidade do Brasil no Rio de Janeiro. “Foi um modelo inovador, porque antes as instituições de ensino superior eram
criadas em modelos muito antiquados”, observa Camargo.

Uma das inovações da UnB foi a extinção das ca¡tedras: professores e alunos passaram a ter maior autonomia e liberdade para circular pelos departamentos, identificando-se com os vários setores do conhecimento e ampliando a experiência acadaªmica. A proposta inspirou outras universidades criadas posteriormente, como a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Ele deu frutos a várias gerações de intelectuais e pode ser considerado o maior realizador no campo educacional do século XX no Brasil”, afirma Eva Waisros.

Embora não se vinculasse a nenhum partido pola­tico, Ana­sio Teixeira foi alvo de perseguição pola­tica e sofreu um atentado que lhe tirou a vida. Foi encontrado morto no poa§o do elevador do prédio do historiador Sanãrgio Buarque de Holanda, com quem iria se encontrar para postular uma candidatura a  Academia Brasileira de Letras.

 DARCY RIBEIRO

Antropa³logo, socia³logo, educador, escritor e pola­tico brasileiro, a personalidade multifacetada de Darcy Ribeiro torna longa a lista de “fazimentos”, como ele pra³prio gostava de chamar suas realizações. Graduou-se em Ciências Sociais, em 1946, na Fundação Escola de Sociologia e Pola­tica de Sa£o Paulo (FESPSP). As primeiras experiências profissionais foram no Servia§o de Proteção aos andios (SPI). Em 1956, ele organizou e passou a dirigir o Museu do andio, sediado no Rio de Janeiro.

Embora a defesa da causa inda­gena esteja presente em toda sua trajeta³ria, em 1957 Darcy conhece Ana­sio Teixeira e passa a ter contato com o universo da Educação. Ele assume a coordenação do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, vinculado ao Inep. “No ina­cio, os dois trocavam farpas”, admite Murilo Camargo do Ceam, “mas depois deram ini­cio a uma das parcerias mais fruta­feras da Educação brasileira”.

“Juscelino Kubitschek pediu a Ana­sio para criar o sistema educacional do DF e implementar uma universidade em Brasa­lia”, destaca Camargo, lembrando que o projeto teve ini­cio em 1962, foi interrompido em 1964 por conta do golpe militar e passou por muitasmudanças de configuração, sobretudo com a reforma universita¡ria de 1968. “Aténos dias atuais, as ideias de Darcy e Ana­sio seriam muito radicais. Hoje, as boas universidades federais são muito parecidas entre si, mas a UnB foi muito arrojada, moderna e interessante e estabeleceu padraµes que servem de modelo a s outras.”

Com a ditadura militar, o educador — militante de esquerda, primeiro reitor da UnB, Ministro da Educação no governo de Ja¢nio Quadros e chefe da Casa Civil no governo Joa£o Goulart — foi exilado para o Uruguai. Em Montevidanãu, ajudou na reorganização da Universidade da República do Uruguai e de instituições públicas do continente, além da Universidade de Argel, Arganãlia.

Escrita durante o exa­lio e lana§ada em 1969, a obra Universidade Necessa¡ria, de Darcy Ribeiro, completou 50 anos recentemente. O livro trata da necessidade da universidade pública para a Amanãrica Latina. Baseado em muitas das ideias e no plano orientador da UnB, o debate permanece atual, a  medida que entende a modernização e o crescimento auta´nomo como caminhos para a superação dos problemas das instituições de ensino superior latino-americanas.

De volta ao Brasil, em 1976, passou a se dedicar a  educação pública. Vice-governador de Leonel Brizola, no governo do Rio de Janeiro, implantou os Centros Integrados de Ensino Paºblico (Cieps), projeto pedaga³gico inspirado nas concepções de Ana­sio Teixeira que garantia assistaªncia em tempo integral aos estudantes, com atividades recreativas e culturais para além do ensino formal.

O professor de Literatura Brasileira da UnB Alexandre Pilati considera o pensamento do educador inquieto, ousado, sanãrio e comprometido. Ha¡ duas caracteri­sticas na personalidade intelectual de Darcy que merecem destaque, segundo o pesquisador: o “apego a  realidade”, que determina a necessidade da reflexa£o e da ação; e a “capacidade de autoquestionamento das ideias, o que épra³prio de um intelectual lega­timo”.

Pilati reconhece em Darcy Ribeiro a informalidade provocativa e produtiva. Ao longo da vida, o antropa³logo escreveu obras sobre Etnologia, Antropologia, Educação e romances. Mesmo reconhecido como sa¡bio, gostava de conversar e dialogar, sendo grande contador de histórias: “A utopia o fazia produzir com base na realidade. Ao mesmo tempo, éa consciência da realidade que alimentava o desejo de utopia”.

O último trabalho — O Povo Brasileiro —, escrito dois anos antes de sua morte, éuma tentativa de dar sentido a  formação do Brasil, relacionando-se a uma “tradição do pensamento que vem desde Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre — com Casa-Grande & Senzala —, Sanãrgio Buarque de Holanda — com Raa­zes do Brasil. “Todas essas facetas eDimensões se articulam em torno de um traa§o fundamental, que vem do desejo de travar contato com o Brasil profundo, o Brasil real”, afirma.

Dos romances, pode-se destacar o livro Maa­ra, escrito durante o exa­lio, experimentação de linguagem e montagem, em que o autor consegue reunir tudo o que conhecia de cultura inda­gena e criar uma tribo ficta­cia. Em 1992, Darcy Ribeiro foi eleito para a cadeira nº 11 da Academia Brasileira de Letras, que ocupou atéa morte, em fevereiro de 1997.

 

.
.

Leia mais a seguir