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Academia repudiamudanças na distribuição de bolsas da Capes
Entidades pedem revogaa§a£o de portaria que ameaça levar pa³s-graduaa§a£o do Brasil “ao colapso”, segundo a SBPC. Capes diz que intena§a£o écorrigir “distora§aµes”
Por Herton Escobar - 24/03/2020

Capes osFoto: Reprodução/N1 Bahia

Dezenas de entidades cienta­ficas e acadaªmicas estãoreivindicando a revogação de uma portaria da Coordenação de Aperfeia§oamento de Pessoal de Na­vel Superior (Capes), do Ministanãrio da Educação (MEC), que altera as regras para distribuição de bolsas de mestrado e doutorado entre os programas de pós-graduação de todo o Paa­s.

Publicada no dia 18 de mara§o, em meio a  eclosão da epidemia de covid-19 no Brasil, e sem qualquer consulta ou aviso prévio a  comunidade acadaªmica, a Portaria 34 faz alterações cruciais no novo regramento, lana§ado um maªs atrás pela própria Capes. Ela amplia significativamente os limites de variação no número de bolsas que cada programa podera¡ receber daqui para frente. 

O sistema estabelece novas regras e critanãrios para determinar quantas bolsas sera£o destinadas a cada um dos 4,5 mil programas de pós-graduação do Paa­s — entre eles, o andice de Desenvolvimento Humano (IDH) do munica­pio onde o curso éoferecido e o número manãdio de alunos titulados. Pela proposta original, descrita em três portarias anteriores (18, 20 e 21, de fevereiro deste ano), nenhum curso poderia sofrer uma perda superior a 10% ou receber um acranãscimo superior a 30% no número de bolsas recebidas anteriormente. Agora, as perdas podem chegar a 50% e os ganhos, a 70%, dependendo da nota de avaliação do curso — conforme descrito no Artigo 8º da nova portaria.

“a‰ um desastre o que eles estãofazendo. Se o objetivo édesmantelar o sistema, estãoconseguindo”, disse ao Jornal da USP o bioqua­mico Carlos Menck, professor titular do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de Sa£o Paulo (USP) e coordenador da área de Ciências Biola³gicas 1 na Capes. 

Todos os 49 coordenadores de área da agaªncia enviaram uma carta conjunta ao presidente da Capes, Benedito Aguiar Neto, no dia 20, reivindicando a revogação da Portaria 34 e pedindo mais transparaªncia no processo. “Entendemos que qualquer mudança abrupta na distribuição de bolsas (…) pode gerar instabilidade no SNPG (Sistema Nacional de Pa³s-Graduação) e ter impactos negativos para a qualidade da pós-graduação nacional em um momento a­mpar de transição do modelo de avaliação”, diz a nota.

A Capes não divulgou uma lista com os novos números de bolsas que sera£o destinadas a cada programa; mas écerto que muitos cursos perdera£o bolsas no processo — inclusive cursos de excelaªncia, avaliados com a nota máxima de qualidade da própria Capes. 

“A redação da referida portaria indica que podera¡ haver redução significativa de bolsas de mestrado e de doutorado em todos os programas de pós-graduação, independentemente de sua qualidade ou qualquer outro critanãrio objetivo. Assim, sua implementação podera¡ levar o sistema de pós-graduação nacional ao colapso”, diz uma carta de repaºdio, redigida pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e endossada por mais de 60 entidades cienta­ficas, também enviada ao presidente da Capes no dia 20.

“Conclamamos a Capes a proceder a  imediata revogação da Portaria 34 (…) e a restabelecer o caminho do dia¡logo de que tanto o Brasil necessita, particularmente nesse momento de crise gerada pela pandemia causada pelo covid-19, cujo enfrentamento demanda o fortalecimento da nossa capacidade de produção cienta­fica e tecnologiica”, escreveu o Forum Nacional de Pra³-reitores de Pesquisa e Pa³s-graduação (Foprop), principal entidade de interlocução da comunidade acadaªmica com a Capes.

Em resposta, Aguiar Neto divulgou uma nota no ini­cio da noite de segunda-feira, 24 de mara§o, dizendo que as reclamações da academia “são naturais, mas, com o devido respeito, revelam uma visão parcial do problema”. Segundo ele, o número total de bolsas ofertadas nesse novo sistema aumentou de 81,4 mil, em fevereiro deste ano, para 84,7 mil, em mara§o. “O aumento foi necessa¡rio para atender os cursos mais bem avaliados”, diz. 

“Nãohouve cortes. A rigor, a parcela de bolsas que deixa um curso de menor qualidade passa para cursos com melhores indicadores”, diz o presidente da Capes. “O modelo corrige um cena¡rio de intensa distorção.” Leia a a­ntegra da nota aqui.

Em comparação com anos anteriores, poranãm, a tendaªncia continua sendo de diminuição no número de bolsas, segundo pesquisadores. Paulo Ina¡cio Prado, professor do Instituto de Biociências (IB) e orientador no Programa de Pa³s-Graduação em Ecologia da USP, estima que a implementação do novo sistema levara¡ a uma redução de 9,3% no número total de bolsas de mestrado e doutorado ofertadas pela Capes, comparado a 2018.

“Ha¡ uma variação muito grande de perdas e ganhos de bolsas entre áreas e entre regiaµes”, avalia Prado. “Nada disso foi discutido.” O programa de Ecologia da USP, segundo ele, perdeu 5 das 26 bolsas de doutorado que tinha previstas para este ano.

Em 2019, segundo reportagem do jornal Folha de S. Paulo, 7.590 bolsas de pós-graduação foram canceladas pela Capes, reduzindo o total de bolsas ofertadas pela agaªncia para 84,6 mil (praticamente o mesmo número citado por Braga Filho para comprovar “aumento” no número de benefa­cios). Atéentão, o patamar de bolsas oferecidas era superior a 90 mil.

“A situação écalamitosa”, diz o bia³logo JoséAlexandre Diniz Filho, professor da Universidade Federal de Goia¡s (UFG), que publicou um va­deo no YouTube criticando a portaria e explicando como ela impacta negativamente a pós-graduação no Paa­s.

Perplexidade

Outras entidades também se manifestaram por escrito, de forma contundente, solicitando o cancelamento da medida e criticando a Capes pela falta de transparaªncia na condução do processo. As portarias de fevereiro implementavam o novo sistema na forma como ele havia sido discutido com a comunidade acadaªmica ao longo de 2019; mas a mudança introduzida pela Portaria 34 pegou todo mundo de surpresa.

“Foi uma decisão tomada de forma isolada, sem nenhuma participação da academia”, diz o geneticista Ma¡rcio de Castro Silva Filho, professor do Departamento de Genanãtica da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP) e presidente do Foprop atéo ano passado — quando participou ativamente das discussaµes do novo modelo. 


O professor Marcio de Castro Silva osFoto: Marcos Santos / USP Imagens

Havia um consenso entre as partes de que o modelo de distribuição de bolsas precisava de ajustes, “para corrigir distorções e fazer uma distribuição mais justa” dos benefa­cios, diz Silva Filho. Asmudanças introduzidas pela Portaria 34, no entanto, segundo ele, favorecem demasiadamente os programas de nota mais alta (6 e 7), em detrimento dos programas de notas mais baixas, sem levar em conta que muitos desses são programas jovens, criados recentemente em regiaµes ou instituições menos consolidadas, que necessitam desse apoio da Capes para crescer e melhorar de qualidade.

“Alguns va£o ganhar muito, enquanto outros va£o perder muito”, critica Silva Filho. “As universidades que tem uma concentração maior de cursos com nota 3 e 4 va£o caminhar para uma situação de quase fechamento desses programas.”

Numa visão individualista, ele nem teria tantos motivos para ficar descontente — o programa de Genanãtica da Esalq-USP, por exemplo, passara¡ a receber mais bolsas no novo modelo. Mas épreciso pensar no desenvolvimento da ciência brasileira como um todo, em todas as regiaµes, e não apenas nos centros de excelaªncia já consolidados, diz Silva Filho.

“Tirar bolsas de um programa nota 3 jovem édar uma facada de morte nesse programa”, ressalta Menck, do ICB-USP. Muitos dos programas de excelaªncia que va£o receber mais bolsas, segundo ele, talvez nem precisem delas — porque já estãoconsolidados e tem acesso mais fa¡cil a bolsas de outras agaªncias, como a Fapesp. “Estão dizendo que éuma pola­tica de qualidade, mas não apresentam nenhum argumento de qualidade para justificar isso”, diz.

Frustração

A Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), declarou em carta que a Portaria 34 “desconsidera os critanãrios estabelecidos anteriormente e o esfora§o dos programas de pós-graduação no planejamento da distribuição do seu fomento, e frustra milhares de pa³s-graduandos”.

Foi o que aconteceu com o aluno Micael Santana de Souza, de 24 anos, que contava com uma bolsa de doutorado da Capes para desenvolver um projeto de combate a  dengue com mosquitos transgaªnicos no ICB-USP, dentro do Programa de Pa³s-Graduação em Biotecnologia da universidade.

Depois de dois anos fazendo iniciação cienta­fica no laboratório da professora Margareth Capurro, ele resolveu pleitear uma bolsa de doutorado da Capes, em dezembro. No fim de fevereiro, recebeu a nota­cia de que havia sido selecionado, e comemorou. Mas a alegria durou pouco.

Alguns dias depois, passou na secretaria do programa para pegar sua carteirinha de aluno USP e foi informado de que todas as bolsas haviam sido recolhidas para “reavaliação”, e que algumas delas estavam sendo canceladas — incluindo a dele. “Fui pego totalmente de surpresa”, conta Souza. “Parece que a gente não énada; que o que a gente faz não tem importa¢ncia.”

Ele agora são tem duas opções: abandonar o sonho do doutorado ou fazer a pesquisa “de graça”, enquanto trabalha fora da universidade para pagar as contas e sobreviver — o que éinvia¡vel. “O principal sentimento éde tristeza, porque sem ciência nada vai para frente”, lamenta o jovem cientista.

 

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