crise econa´mica deflagrada pelo novo coronavarus evidencia tradia§a£o escravocrata do Brasil, denunciam pesquisadores da Universidade Federal Fluminense
folhapress
Fecharam escolas e universidades. Teatros, cinemas, casas de show. Praias, parques paºblicos e alguns dos acessos a cidade. As pessoas se recolheram para dentro de casas e quase já não se pode mais ouvir barulhos nas cala§adas, antes movimentadas e apinhadas de gente. Ainda assim, de tempos em tempos, se escuta o rangido de alguma moto atravessando a avenida em alta velocidade. Sa£o eles: os entregadores de servia§os por delivery. Passam pelos condomanios deixando refeições sem que ninguanãm os veja, pois assim émais “seguro†osinvisaveis, como o varus que todos passaram a temer.
Esse poderia ser o trecho de algum livro de ficção cientafica fantasiado por um escritor no passado remoto da humanidade; pelo contra¡rio, retrata de forma crua a mudança abrupta que se instaurou, em escala planeta¡ria, nos modos de organização da vida em sociedade, desde a emergaªncia da pandemia do COVID-19 no mundo.
No Brasil, em especial, que tem buscado se adaptar a essa nova realidade, mais recentemente em comparação com outras nações, tem chamado a atenção de pesquisadores uma questão, dentre tantas outras emergentes no momento, sobre as desigualdades estruturais que estãona base da nossa organização social e que sinalizam para como temos, atéagora, vivenciado essa situação de crise.
O entregador do delivery que chega a s nossas casas, se expondo a contaminação e sem receber um adicional de insalubridade por isso, por exemplo, éuma pea§a-chave para a compreensão desse cena¡rio.
Convidados a abrir uma discussão com a comunidade universita¡ria e a sociedade civil sobre o assunto, os professores Roberto Kant de Lima, Pedro Heitor Barros Geraldo, Fabio Reis Mota, Frederico Policarpo e Fla¡via Medeiros, respectivamente coordenador e pesquisadores do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos da UFF osINCT-InEAC, assim como o professor do Departamento de Economia da Universidade, Ruy Afonso de Santacruz Lima, desenvolveram algumas reflexões em torno do tema.
"Nas sociedades normalizadas, a previsibilidade éuma característica essencial do funcionamento do mercado e a imprevisibilidade atual abala profundamente seus fundamentos. Já no Brasil, onde o imprevisto éa regra, e o mercado não funciona como nas sociedades ocidentais mais avana§adas, seria a solidariedade (como descrito no recente discurso da chanceler alema£ Angela Merkel), que poderia alargar esse horizonte de previsão possível. - Equipe do INCT-InEAC"
De acordo com o grupo de pesquisadores do INCT-InEAC, “a pandemia torna explacita nossa tradição escravocrata ao colocar em risco pessoas e setores mais vulnera¡veis da sociedade que hoje se encontram numa condição ainda mais preca¡ria e perigosa quanto ao seu direto ao trabalho, bem como sua segurança sanita¡ria, já que milhões de trabalhadores e trabalhadoras são obrigados de forma desumana a cumprirem suas jornadas de trabalho, inclusive sem as proteções sociais e sanita¡rias necessa¡rias nesse momento de criseâ€.
Essa precarização progressiva das condições de trabalho estãorelacionadas, como descreve o professor Ruy Santacruz, ao fena´meno de “uberização do trabalhoâ€, que tem atraado muitas pessoas para empregos sem carteira assinada e que constitui uma tendaªncia em todo o mundo, em especial no Brasil. De acordo com o economista, embora condições preca¡rias de trabalho não sejam exatamente uma novidade nopaís, o aumento do desemprego muito aceleradamente desde 2013 gerou as condições para a formação de uma grande massa de trabalhadores informais, a exemplo dos entregadores de delivery.
O processo de ‘uberização’ do trabalho no Brasil, explicam os professores do INCT-InEAC, “não vem associado ao desenvolvimento dos direitos de cidadania, do exercacio do trabalho livre e auta´nomo, mas, pelo contra¡rio, acentua a precariedade dos direitos trabalhistas e das relações entre patra£o e empregado, tornando essa forma ainda algo mais perversa que a da escravida£o. Isso porque no sistema escravocrata o Senhor devia, por direito e interesse, assegurar a vida e um relativo bem-estar para a sobrevivaªncia de sua propriedade, de seus escravos. Nessa escravida£o contempora¢nea, esses prestadores de serviço são colocados em uma situação de total desamparo, com a inexistaªncia de segurança trabalhista por parte de seus empregadores e da proteção do Estado quanto ao exercacio de seus direitosâ€, enfatizam.
Nãohaveria, então, “uma estrutura juradica para garantir um manimo de direitos comuns a todos os diferentes cidada£os, mas um conjunto de privilanãgios atribuados a certos segmentos da sociedade, sejam eles detentores do capital ou trabalhadores. Essa naturalização da desigualdade juradica éexpressão de representações culturais de uma sociedade hierarquizada e, portanto, também referaªncia e suporte para sua reprodução. A pandemia coloca em evidência mais uma vez a naturalização das desigualdades estruturais de nossa sociedade em seus diferentes naveisâ€.
Com esse abismo de condições de vida separando a massa de trabalhadores informais das classes médias e das elites, são também muito distantes entre si as possibilidades de vivaªncia e superação desse período de crise por parte desses grupos sociais. De acordo com a equipe de pesquisadores, “as chamadas medidas restritivas de circulação e a necessidade de praticarmos um ‘isolamento social’ coloca o foco na suposição de que todos temos o exercacio de um direito manimo a moradia, o que não éverdadeiro. O problema habitacional no Brasil faz com que nos deparemos com infraestruturas urbanas altamente precarizadas, como por exemplo, as das denominadas favelas ou ‘comunidades’â€.
Em contraste, “os segmentos superiores da sociedade, além de poder ficar no conforto de suas casas, podem deslocar-se para as casas de campo e veraneio, se "isolar" com suas famalias. Claro que com toda a estrutura de empregados e servia§os a disposição, mostrando a total falta de solidariedade e de compaixa£o com a situação com os trabalhadores domanãsticosâ€, destacam.
Além disso, os pesquisadores mencionam as dificuldades impostas a s mulheres nessa nova conformação social, como a sobrecarga do trabalho domanãstico por parte das ma£es que tomam conta sozinhas dos filhos. Como efeito perverso desse confinamento, destaca-se o aumento do registro de casos de violência doméstica e de feminicadios, “o que nos faz refletir sobre as condições sociais e emocionais que definem o ‘lar’ e a casa, ambientes vinculados aos papanãis sociais das mulheres e que se tornam o principal terreno para a emergaªncia dos conflitosâ€.
Existe também outro fator ressaltado pelos pesquisadores que torna essa situação de crise ainda mais drama¡tica para os trabalhadores informais: a falta de confianção nas autoridades públicas. Somada a falta de proteção no trabalho, gera-se uma significativa limitação da difusão de políticas restritivas compreensaveis para a sociedade. Isso provocaria o descumprimento dessas políticas, “seja por necessidade, seja pela arroga¢ncia daqueles que se acham acima da lei e das regras, comum aos segmentos superiores de nossa sociedade. Para complexificar mais ainda o problema, essas medidas se tornaram objeto de disputa polatica, em um governo federal que se alimenta de crises para fortalecer-se no poder e ocultar seus eventuais descaminhosâ€.
De acordo com o professor de economia Ruy Santacruz, caberia, frente a esse cena¡rio, a adoção em cara¡ter de urgência por parte do governo de medidas como “aumentar o número de famalias atendidas pelo Bolsa Famalia, dobrar o seu valor, criar um mecanismo de renda extra para trabalhadores auta´nomos, suspender o pagamento de a¡gua, luz, gás e aluguel para trabalhadores de baixa renda (medidas já adotadas pelo governo francaªs), suspender cobrana§a de impostos das empresas para evitar que lancem ma£o de demissaµes em massa, conceder cranãdito subsidiado para capital de giro das empresas, entre outras coisasâ€, ressalta.
Já os pesquisadores do INCT-InEAC apontam para a necessidade de estabelecer uma ponte com os polaticos profissionais, que seriam capazes de articular os atores sociais indispensa¡veis para coordenar as ações coletivas. “Esperemos que os senadores, deputados, vereadores, prefeitos e governadores possam estar a altura deste desafio de articular as ações com o apoio de outras insta¢ncias estatais, como o judicia¡rio e os operadores do direito. Afinal, precisaremos dominar a lógica burocra¡tica operada pelos juristas para acelerar processos de aquisição de bens e legitimar medidas emergenciais. Ações da sociedade civil são também importantes, mas necessitam de apoio e coordenação por parte do Estado. O aparato estatal écapilarizado e poderia distribuir melhor os recursos dessas iniciativasâ€.Â
Em tom de grande preocupação e também de esperana§a, a equipe concluiu dizendo que: “o futuro depende de nossas decisaµes, que produziremos coletivamente agora. Os indicadores comparativos existentes não são positivos. Ainda precisamos avaliar os impactos das medidas sanita¡rias restritivas e não sabemos se somos suficientemente solida¡rios para evitar uma traganãdia humanita¡ria. Devemos considerar que nosso mundo éfeito de crises. Vivemos em crises sistema¡ticas, pois essa foi a opção econa´mica, polatica e social que a sociedade ocidental escolheu. Prognósticos para o futuro costumam ser projeções de eventos passados mas, aparentemente, este éum evento ose um varus oscom caracteristicas desconhecidas. Nas sociedades normalizadas, a previsibilidade éuma característica essencial do funcionamento do mercado e a imprevisibilidade atual abala profundamente seus fundamentos. Já no Brasil, onde o imprevisto éa regra, e o mercado não funciona como nas sociedades ocidentais mais avana§adas, seria a solidariedade (como descrito no recente discurso da chanceler alema£ Angela Merkel), que poderia alargar esse horizonte de previsão possível. Então, quem sabe iremos acentuar ainda mais nosso fechamento para o outro, com o reforço de ideologias nacionalistas e territorialistas ospautadas pela ideia de que “farinha pouco, meu pira£o primeiro†osou, pelo contra¡rio, iremos produzir um sentido de universalidade da humanidade que confira a s prática s sociais um outro modo de fazer a sociedade, fundada na compreensão de que somos uma coletividade planeta¡ria. Mas isso, são o futuro nos dira¡â€, concluem.