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O invisível bate a  porta
crise econa´mica deflagrada pelo novo coronava­rus evidencia tradia§a£o escravocrata do Brasil, denunciam pesquisadores da Universidade Federal Fluminense
Por Fernanda Cupolillo - 25/03/2020

folhapress

Fecharam escolas e universidades. Teatros, cinemas, casas de show. Praias, parques paºblicos e alguns dos acessos a  cidade. As pessoas se recolheram para dentro de casas e quase já não se pode mais ouvir barulhos nas cala§adas, antes movimentadas e apinhadas de gente. Ainda assim, de tempos em tempos, se escuta o rangido de alguma moto atravessando a avenida em alta velocidade. Sa£o eles: os entregadores de servia§os por delivery. Passam pelos condoma­nios deixando refeições sem que ninguanãm os veja, pois assim émais “seguro” osinvisa­veis, como o va­rus que todos passaram a temer.

Esse poderia ser o trecho de algum livro de ficção cienta­fica fantasiado por um escritor no passado remoto da humanidade; pelo contra¡rio, retrata de forma crua a mudança abrupta que se instaurou, em escala planeta¡ria, nos modos de organização da vida em sociedade, desde a emergaªncia da pandemia do COVID-19 no mundo.

No Brasil, em especial, que tem buscado se adaptar a essa nova realidade, mais recentemente em comparação com outras nações, tem chamado a atenção de pesquisadores uma questão, dentre tantas outras emergentes no momento, sobre as desigualdades estruturais que estãona base da nossa organização social e que sinalizam para como temos, atéagora, vivenciado essa situação de crise.

O entregador do delivery que chega a s nossas casas, se expondo a  contaminação e sem receber um adicional de insalubridade por isso, por exemplo, éuma pea§a-chave para a compreensão desse cena¡rio.

Convidados a abrir uma discussão com a comunidade universita¡ria e a sociedade civil sobre o assunto, os professores Roberto Kant de Lima, Pedro Heitor Barros Geraldo, Fabio Reis Mota, Frederico Policarpo e Fla¡via Medeiros, respectivamente coordenador e pesquisadores do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos da UFF osINCT-InEAC, assim como o professor do Departamento de Economia da Universidade, Ruy Afonso de Santacruz Lima, desenvolveram algumas reflexões em torno do tema.

"Nas sociedades normalizadas, a previsibilidade éuma caracterí­stica essencial do funcionamento do mercado e a imprevisibilidade atual abala profundamente seus fundamentos. Já no Brasil, onde o imprevisto éa regra, e o mercado não funciona como nas sociedades ocidentais mais avana§adas, seria a solidariedade (como descrito no recente discurso da chanceler alema£ Angela Merkel), que poderia alargar esse horizonte de previsão possí­vel. - Equipe do INCT-InEAC"


De acordo com o grupo de pesquisadores do INCT-InEAC, “a pandemia torna expla­cita nossa tradição escravocrata ao colocar em risco pessoas e setores mais vulnera¡veis da sociedade que hoje se encontram numa condição ainda mais preca¡ria e perigosa quanto ao seu direto ao trabalho, bem como sua segurança sanita¡ria, já que milhões de trabalhadores e trabalhadoras são obrigados de forma desumana a cumprirem suas jornadas de trabalho, inclusive sem as proteções sociais e sanita¡rias necessa¡rias nesse momento de crise”.

Essa precarização progressiva das condições de trabalho estãorelacionadas, como descreve o professor Ruy Santacruz, ao fena´meno de “uberização do trabalho”, que tem atraa­do muitas pessoas para empregos sem carteira assinada e que constitui uma tendaªncia em todo o mundo, em especial no Brasil. De acordo com o economista, embora condições preca¡rias de trabalho não  sejam exatamente uma novidade nopaís, o aumento do desemprego muito aceleradamente desde 2013 gerou as condições para a formação de uma grande massa de trabalhadores informais, a exemplo dos entregadores de delivery.

O processo de ‘uberização’ do trabalho no Brasil, explicam os professores do INCT-InEAC, “não vem associado ao desenvolvimento dos direitos de cidadania, do exerca­cio do trabalho livre e auta´nomo, mas, pelo contra¡rio, acentua a precariedade dos direitos trabalhistas e das relações entre patra£o e empregado, tornando essa forma ainda algo mais perversa que a da escravida£o. Isso porque no sistema escravocrata o Senhor devia, por direito e interesse, assegurar a vida e um relativo bem-estar para a sobrevivaªncia de sua propriedade, de seus escravos. Nessa escravida£o contempora¢nea, esses prestadores de serviço são colocados em uma situação de total desamparo, com a inexistaªncia de segurança trabalhista por parte de seus empregadores e da proteção do Estado quanto ao exerca­cio de seus direitos”, enfatizam.

Nãohaveria, então, “uma estrutura jura­dica para garantir um ma­nimo de direitos comuns a todos os diferentes cidada£os, mas um conjunto de privilanãgios atribua­dos a certos segmentos da sociedade, sejam eles detentores do capital ou trabalhadores. Essa naturalização da desigualdade jura­dica éexpressão de representações culturais de uma sociedade hierarquizada e, portanto, também referaªncia e suporte para sua reprodução. A pandemia coloca em evidência mais uma vez a naturalização das desigualdades estruturais de nossa sociedade em seus diferentes na­veis”.

Com esse abismo de condições de vida separando a massa de trabalhadores informais das classes médias e das elites, são também muito distantes entre si as possibilidades de vivaªncia e superação desse período de crise por parte desses grupos sociais. De acordo com a equipe de pesquisadores, “as chamadas medidas restritivas de circulação e a necessidade de praticarmos um ‘isolamento social’ coloca o foco na suposição de que todos temos o exerca­cio de um direito ma­nimo a  moradia, o que não éverdadeiro. O problema habitacional no Brasil faz com que nos deparemos com infraestruturas urbanas altamente precarizadas, como por exemplo, as das denominadas favelas ou ‘comunidades’”.

Em contraste, “os segmentos superiores da sociedade, além de poder ficar no conforto de suas casas, podem deslocar-se para as casas de campo e veraneio, se "isolar" com suas fama­lias. Claro que com toda a estrutura de empregados e servia§os a  disposição, mostrando a total falta de solidariedade e de compaixa£o com a situação com os trabalhadores domanãsticos”, destacam.

Além disso, os pesquisadores mencionam as dificuldades impostas a s mulheres nessa nova conformação social, como a sobrecarga do trabalho domanãstico por parte das ma£es que tomam conta sozinhas dos filhos. Como efeito perverso desse confinamento, destaca-se o aumento do registro de casos de violência doméstica e de feminica­dios, “o que nos faz refletir sobre as condições sociais e emocionais que definem o ‘lar’ e a casa, ambientes vinculados aos papanãis sociais das mulheres e que se tornam o principal terreno para a emergaªncia dos conflitos”.

Existe também outro fator ressaltado pelos pesquisadores que torna essa situação de crise ainda mais drama¡tica para os trabalhadores informais: a falta de confianção nas autoridades públicas. Somada a  falta de proteção no trabalho, gera-se uma significativa limitação da difusão de políticas restritivas compreensa­veis para a sociedade. Isso provocaria o descumprimento dessas políticas, “seja por necessidade, seja pela arroga¢ncia daqueles que se acham acima da lei e das regras, comum aos segmentos superiores de nossa sociedade. Para complexificar mais ainda o problema, essas medidas se tornaram objeto de disputa pola­tica, em um governo federal que se alimenta de crises para fortalecer-se no poder e ocultar seus eventuais descaminhos”.

De acordo com o professor de economia Ruy Santacruz, caberia, frente a esse cena¡rio, a adoção em cara¡ter de urgência por parte do governo de medidas como “aumentar o número de fama­lias atendidas pelo Bolsa Fama­lia, dobrar o seu valor, criar um mecanismo de renda extra para trabalhadores auta´nomos, suspender o pagamento de a¡gua, luz, gás e aluguel para trabalhadores de baixa renda (medidas já adotadas pelo governo francaªs), suspender cobrana§a de impostos das empresas para evitar que lancem ma£o de demissaµes em massa, conceder cranãdito subsidiado para capital de giro das empresas, entre outras coisas”, ressalta.

Já os pesquisadores do INCT-InEAC apontam para a necessidade de estabelecer uma ponte com os pola­ticos profissionais, que seriam capazes de articular os atores sociais indispensa¡veis para coordenar as ações coletivas. “Esperemos que os senadores, deputados, vereadores, prefeitos e governadores possam estar a  altura deste desafio de articular as ações com o apoio de outras insta¢ncias estatais, como o judicia¡rio e os operadores do direito. Afinal, precisaremos dominar a lógica burocra¡tica operada pelos juristas para acelerar processos de aquisição de bens e legitimar medidas emergenciais. Ações da sociedade civil são também importantes, mas necessitam de apoio e coordenação por parte do Estado. O aparato estatal écapilarizado e poderia distribuir melhor os recursos dessas iniciativas”. 

Em tom de grande preocupação e também de esperana§a, a equipe concluiu dizendo que: “o futuro depende de nossas decisaµes, que produziremos coletivamente agora. Os indicadores comparativos existentes não são positivos. Ainda precisamos avaliar os impactos das medidas sanita¡rias restritivas e não sabemos se somos suficientemente solida¡rios para evitar uma traganãdia humanita¡ria. Devemos considerar que nosso mundo éfeito de crises. Vivemos em crises sistema¡ticas, pois essa foi a opção econa´mica, pola­tica e social que a sociedade ocidental escolheu. Prognósticos para o futuro costumam ser projeções de eventos passados mas, aparentemente, este éum evento ose um va­rus oscom caracteri­sticas desconhecidas. Nas sociedades normalizadas, a previsibilidade éuma caracterí­stica essencial do funcionamento do mercado e a imprevisibilidade atual abala profundamente seus fundamentos. Já no Brasil, onde o imprevisto éa regra, e o mercado não funciona como nas sociedades ocidentais mais avana§adas, seria a solidariedade (como descrito no recente discurso da chanceler alema£ Angela Merkel), que poderia alargar esse horizonte de previsão possí­vel. Então, quem sabe iremos acentuar ainda mais nosso fechamento para o outro, com o reforço de ideologias nacionalistas e territorialistas ospautadas pela ideia de que “farinha pouco, meu pira£o primeiro” osou, pelo contra¡rio, iremos produzir um sentido de universalidade da humanidade que confira a s prática s sociais um outro modo de fazer a sociedade, fundada na compreensão de que somos uma coletividade planeta¡ria. Mas isso, são o futuro nos dira¡â€, concluem.

 

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