Rede criada por pesquisadores da Universidade de Sa£o Paulo - USP permite que cientistas de todo o Brasil compartilhem insumos essenciais em meio a pandemia de coronavarus
Foto : Cecalia Bastos/USP Imagens
Pesquisadores da Universidade de Sa£o Paulo (USP) criaram uma plataforma digital para o compartilhamento de insumos essenciais, que estãose mostrando valiosa para abastecer laboratórios engajados no enfrentamento do novo coronavarus. Lana§ada no inicio de mara§o, a SociaLab funciona como uma rede social de laboratórios, que cientistas podem usar para compartilhar reagentes e células uns com os outros, de forma gratuita.
O objetivo éatacar um dos problemas mais cra´nicos e debilitantes da ciência brasileira: a dificuldade para a obtenção de reagentes ba¡sicos de pesquisa, por conta do alto prea§o, do excesso de burocracia e da demora que isso gera para o recebimentos desses insumos, que são praticamente todos importados.
a‰ um gargalo que reduz a competitividade da ciência brasileira como um todo e pode inviabilizar completamente um projeto de pesquisa — especialmente em universidades menores, onde o acesso a recursos, equipamentos e materiais éainda mais restrito. Nãosão raros os casos de projetos que precisam ser adiados ou descontinuados por falta de um ou outro “ingredienteâ€, sem o qual éimpossível realizar os experimentos necessa¡rios.
Uma enquete realizada com 220 usuários da plataforma indica que 28% dos pesquisadores já desistiram de realizar experimentos por falta de reagentes, linhagens celulares ou outro material biola³gico. Outros 28% relataram já ter esperado atéseis meses para obter os insumos necessa¡rios.
Enquete com usuários da plataforma SociaLab osImagem: Reprodução
No caso do coronavarus, a plataforma estãosendo usada para facilitar a localização de insumos essenciais para o escalonamento dos esforços cientaficos de combate a epidemia. Pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, que estãona linha de frente desse esfora§o, usaram o sistema nos últimos dias para encontrar reagentes que são indispensa¡veis para a realização dos testes moleculares de identificação do varus, mas que estãoem falta no mercado mundial, em função da demanda imposta pela pandemia.
“Estamos olhando com muito otimismo para essa iniciativaâ€, diz o pesquisador e diretor do ICB, Luis Carlos de Souza Ferreira. “Vejo como algo estratanãgico para a ciência brasileira.â€
Funciona assim: imagine que o experimento cientafico éuma receita de bolo, que os reagentes são os ingredientes necessa¡rios para executar essa receita, e que praticamente todos esses ingredientes são importados, carassimos (ainda mais agora, com a alta do da³lar) e costumam demorar semanas para serem entregues. Agora, imagine que vocêprecisa preparar um bolo que leva um fermento especial, importado da Suaa§a, mas que
estãoem falta no mercado (ou não cabe no seu ora§amento).
Vocaª, então, lana§a um apelo na SociaLab: “Preciso de X gramas de fermento especialâ€. O sistema vasculha os inventa¡rios dos laboratórios cadastrados na plataforma para identificar se alguém tem um pouco dessa farinha disponavel, e manda uma mensagem privada para essa pessoa, perguntando se ela aceita doar uma xacara para vocaª. Se a pessoa aceitar, o sistema coloca vocaªs dois em contato, e segue o jogo. Se a pessoa não aceitar, tudo bem, ninguanãm fica sabendo de nada.
Tudo automatizado, tudo gratuito. O aºnico gasto écom a postagem do material, que fica por conta de quem solicitou a doação. A plataforma já tem mais de 50 laboratórios cadastrados, em mais de 20 Estados, com mais de 8 mil reagentes e 1 mil linhagens de células disponíveis para compartilhamento.
Va¡rios dos insumos necessa¡rios para abastecer os laboratórios que estãotrabalhando com o coronavarus foram encontrados dentro do pra³prio ICB — que tem centenas de laboratórios, distribuados por quatro prédios da universidade. Como cada laboratório faz suas compras individualmente (de acordo com as necessidades de sua pesquisa), não hácomo saber “de cabea§a†o que cada um tem guardado na prateleira. Mas a SociaLab sabe — desde que os inventa¡rios sejam disponibilizados na plataforma.
“Tem muita coisa guardada por aa que ninguanãm sabe onde esta¡; éuma loucura issoâ€, diz o criador da iniciativa, Lucio de Freitas Junior, que também épesquisador do ICB, especialista na busca de novas drogas contra doenças negligenciadas. “Aa o pesquisador gasta dinheiro paºblico para comprar um produto que o vizinho dele tem sobrando na prateleira. Nãofaz o menor sentido.â€
Ganha-ganha
O compartilhamento évantajoso para todos os envolvidos, destaca Freitas Junior. Quem doa tem o benefacio de liberar espaço no laboratório e não gastar dinheiro com o descarte de materiais subutilizados, já que esses produtos são controlados e não podem ser simplesmente jogados na lata de lixo quando o prazo de validade expira. Eles precisam ser recolhidos e descartados de forma adequada (incinerados), seguindo protocolos de biossegurança, o que gera custos para as instituições.
“Podemos reduzir muito a quantidade e os gastos com destinação de lixo nas universidadesâ€, diz Freitas Junior.
Muitos experimentos requerem apenas uma quantia muito pequena de um determinado reagente; mas as embalagens vendidas pelas empresas sempre contanãm um volume maior do que isso. Por isso énormal sobrarem insumos nos laboratórios. Em média, segundo Freitas Junior, são 20% do volume comprado éutilizado, e 80% acaba sendo jogado fora.
Para o pesquisador, portanto, vale mais a pena doar o reagente para alguém que precisa do que ficar guardando algo que não vai ser usado, e ainda custara¡ caro para ser descartado depois. (Sem falar no benefacio coletivo do altruasmo, obviamente.)
As empresas fabricantes e importadoras dos insumos também se beneficiam, ressalta Freitas Junior, pois elas frequentemente possuem produtos em estoque, com prazo de validade pra³ximo a vencer, dos quais precisam se desfazer com rapidez — também para evitar gastos adicionais com impostos, descarte e incineração. Além disso, podem usar a plataforma como uma ferramenta de prospecção de demanda para determinados insumos.
Nesse caso, as empresas disponibilizam produtos para doação e a SociaLab realiza sorteios para decidir quem fica com o que. A plataforma já realizou dois sorteios de insumos doados por fabricantes, que beneficiaram 23 pesquisadores, com produtos no valor de R$ 19 mil. Um terceiro sorteio estãoem andamento, totalizando R$ 35 mil em produtos. Quatro empresas do setor são patrocinadoras da plataforma.