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Plataforma conecta cientistas para doação de reagentes
Rede criada por pesquisadores da Universidade de Sa£o Paulo - USP permite que cientistas de todo o Brasil compartilhem insumos essenciais em meio a  pandemia de coronava­rus
Por Herton Escobar - 31/03/2020

Foto : Ceca­lia Bastos/USP Imagens

Pesquisadores da Universidade de Sa£o Paulo (USP) criaram uma plataforma digital para o compartilhamento de insumos essenciais, que estãose mostrando valiosa para abastecer laboratórios engajados no enfrentamento do novo coronava­rus. Lana§ada no ini­cio de mara§o, a SociaLab funciona como uma rede social de laboratórios, que cientistas podem usar para compartilhar reagentes e células uns com os outros, de forma gratuita.

O objetivo éatacar um dos problemas mais cra´nicos e debilitantes da ciência brasileira: a dificuldade para a obtenção de reagentes ba¡sicos de pesquisa, por conta do alto prea§o, do excesso de burocracia e da demora que isso gera para o recebimentos desses insumos, que são praticamente todos importados.

a‰ um gargalo que reduz a competitividade da ciência brasileira como um todo e pode inviabilizar completamente um projeto de pesquisa — especialmente em universidades menores, onde o acesso a recursos, equipamentos e materiais éainda mais restrito. Nãosão raros os casos de projetos que precisam ser adiados ou descontinuados por falta de um ou outro “ingrediente”, sem o qual éimpossí­vel realizar os experimentos necessa¡rios.

Uma enquete realizada com 220 usuários da plataforma indica que 28% dos pesquisadores já desistiram de realizar experimentos por falta de reagentes, linhagens celulares ou outro material biola³gico. Outros 28% relataram já ter esperado atéseis meses para obter os insumos necessa¡rios.


Enquete com usuários da plataforma SociaLab osImagem: Reprodução

No caso do coronava­rus, a plataforma estãosendo usada para facilitar a localização de insumos essenciais para o escalonamento dos esforços cienta­ficos de combate a  epidemia. Pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, que estãona linha de frente desse esfora§o, usaram o sistema nos últimos dias para encontrar reagentes que são indispensa¡veis para a realização dos testes moleculares de identificação do va­rus, mas que estãoem falta no mercado mundial, em função da demanda imposta pela pandemia.

“Estamos olhando com muito otimismo para essa iniciativa”, diz o pesquisador e diretor do ICB, Luis Carlos de Souza Ferreira. “Vejo como algo estratanãgico para a ciência brasileira.”

Funciona assim: imagine que o experimento cienta­fico éuma receita de bolo, que os reagentes são os ingredientes necessa¡rios para executar essa receita, e que praticamente todos esses ingredientes são importados, cara­ssimos (ainda mais agora, com a alta do da³lar) e costumam demorar semanas para serem entregues. Agora, imagine que vocêprecisa preparar um bolo que leva um fermento especial, importado da Sua­a§a, mas que
estãoem falta no mercado (ou não cabe no seu ora§amento).

Vocaª, então, lana§a um apelo na SociaLab: “Preciso de X gramas de fermento especial”. O sistema vasculha os inventa¡rios dos laboratórios cadastrados na plataforma para identificar se alguém tem um pouco dessa farinha dispona­vel, e manda uma mensagem privada para essa pessoa, perguntando se ela aceita doar uma xa­cara para vocaª. Se a pessoa aceitar, o sistema coloca vocaªs dois em contato, e segue o jogo. Se a pessoa não aceitar, tudo bem, ninguanãm fica sabendo de nada.

Tudo automatizado, tudo gratuito. O aºnico gasto écom a postagem do material, que fica por conta de quem solicitou a doação. A plataforma já tem mais de 50 laboratórios cadastrados, em mais de 20 Estados, com mais de 8 mil reagentes e 1 mil linhagens de células disponí­veis para compartilhamento.

Va¡rios dos insumos necessa¡rios para abastecer os laboratórios que estãotrabalhando com o coronava­rus foram encontrados dentro do pra³prio ICB — que tem centenas de laboratórios, distribua­dos por quatro prédios da universidade. Como cada laboratório faz suas compras individualmente (de acordo com as necessidades de sua pesquisa), não hácomo saber “de cabea§a” o que cada um tem guardado na prateleira. Mas a SociaLab sabe — desde que os inventa¡rios sejam disponibilizados na plataforma.

“Tem muita coisa guardada por aa­ que ninguanãm sabe onde esta¡; éuma loucura isso”, diz o criador da iniciativa, Lucio de Freitas Junior, que também épesquisador do ICB, especialista na busca de novas drogas contra doenças negligenciadas. “Aa­ o pesquisador gasta dinheiro paºblico para comprar um produto que o vizinho dele tem sobrando na prateleira. Nãofaz o menor sentido.”

Ganha-ganha

O compartilhamento évantajoso para todos os envolvidos, destaca Freitas Junior. Quem doa tem o benefa­cio de liberar espaço no laboratório e não gastar dinheiro com o descarte de materiais subutilizados, já que esses produtos são controlados e não podem ser simplesmente jogados na lata de lixo quando o prazo de validade expira. Eles precisam ser recolhidos e descartados de forma adequada (incinerados), seguindo protocolos de biossegurança, o que gera custos para as instituições.

“Podemos reduzir muito a quantidade e os gastos com destinação de lixo nas universidades”, diz Freitas Junior.

Muitos experimentos requerem apenas uma quantia muito pequena de um determinado reagente; mas as embalagens vendidas pelas empresas sempre contanãm um volume maior do que isso. Por isso énormal sobrarem insumos nos laboratórios. Em média, segundo Freitas Junior, são 20% do volume comprado éutilizado, e 80% acaba sendo jogado fora.

Para o pesquisador, portanto, vale mais a pena doar o reagente para alguém que precisa do que ficar guardando algo que não vai ser usado, e ainda custara¡ caro para ser descartado depois. (Sem falar no benefa­cio coletivo do altrua­smo, obviamente.)

As empresas fabricantes e importadoras dos insumos também se beneficiam, ressalta Freitas Junior, pois elas frequentemente possuem produtos em estoque, com prazo de validade pra³ximo a vencer, dos quais precisam se desfazer com rapidez — também para evitar gastos adicionais com impostos, descarte e incineração. Além disso, podem usar a plataforma como uma ferramenta de prospecção de demanda para determinados insumos.

Nesse caso, as empresas disponibilizam produtos para doação e a SociaLab realiza sorteios para decidir quem fica com o que. A plataforma já realizou dois sorteios de insumos doados por fabricantes, que beneficiaram 23 pesquisadores, com produtos no valor de R$ 19 mil. Um terceiro sorteio estãoem andamento, totalizando R$ 35 mil em produtos. Quatro empresas do setor são patrocinadoras da plataforma.

 

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