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Com números não se brinca
Governo tenta redimensionar os números da covid-19 no Paa­s, mas instituia§aµes e jornais va£o divulgar dados reais
Por Marcello Rollemberg - 09/06/2020


Foto: Ricardo Stuckert osFotos públicas

Em meio a  pandemia do novo coronava­rus, que espalhou a covid-19 por todo o planeta e já matou cerca de 400 mil pessoas, algunspaíses encontraram soluções para combater o mal. E não estãose falando aqui da Nova Zela¢ndia, que conseguiu debelar a doena§a, ou de Portugal, visto como um dospaíses europeus que melhor souberam lidar com o va­rus. Na£o. Fala-se aqui de soluções, digamos, “criativas”. Na Coreia do Norte, o lider supremo Kim Jong-Un decidiu, por decreto, que a covid-19 passou ao largo das fronteiras dopaís asia¡tico e que nenhum norte-coreano ficou doente. Já o ditador do Turcomenistão de nome quase impronuncia¡vel, Gurbanguly Berdimuhammedow, proibiu que fossem usadas as palavras “pandemia”, “covid-19” e “coronava­rus”. Pronto, problema resolvido. O Brasil não chegou a tanto, mas parece que também estãoquerendo fazer parte dessa companhia inca´moda e relativizar o mal, sendo criativo a  sua maneira. O governo federal olha para os números da covid-19 no Paa­s, com cerca de 700 mil infectados e 36 mil mortos, e parece dizer: “hora de mudar isso aa­, ta¡ ok?”.

E, desde a semana passada, os números relativos ao coronava­rus passaram a ser divulgados tarde da noite os“para não dar matéria no Jornal Nacional” –, de forma confusa e sem totalizar os casos. “a‰ são fazer a soma”, afirmou o vice-presidente Hamilton Moura£o. Mas a questãovai muito além de se ter ou não uma calculadora nas ma£os. a‰ uma questãode transparaªncia na informação, item que parece estar em falta no Planalto Central osésão lembrar, por exemplo, a reação do governo federal, em 2019, diante dos números de desmatamento na Amaza´nia, divulgados pelo Inpe (ver box abaixo). Atéo número de mortos pela covid-19 passou a ser questionado e reestudado pelo Ministanãrio da Saúde osque tem um general como interino “oficial” –, o que levou o jornalista Octavio Guedes, da Globonews, a citar ironicamente um improva¡vel “ministanãrio da ressurreição”. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, a mudança na divulgação ocorreu depois que Jair Bolsonaro exigiu que números de mortes pela covid-19 fossem abaixo de mil por dia.

Foto: Marcio James / Semcom

O pra³prio site do ministanãrio chegou a ficar fora do ar. Com isso, a universidade americana Johns Hopkins osreferaªncia no ranking da doença no mundo oschegou a tirar o Brasil da contagem oficial do mal pelo planeta. No último domingo, por exemplo, o Ministanãrio da Saúde conseguiu divulgar dois boletins distintos no final da noite. No primeiro, dava conta que havia 1.382 mortes e 37.312 novos casos. No segundo, pouco depois, as mortes despencaram para 525 e os novos casos passaram a ser de 36.455. “Erros na tabulação”, foi a explicação oficial. Mas lidar com a covid-19 émuito mais complexo do que varrer o va­rus para debaixo do tapete ou manipular os números osas tais “malditas estata­sticas”, como disse certa vez o primeiro-ministro da rainha Vita³ria, Benjamin Disraeli.

Porque estamos falando de uma democracia, com instituições solidificadas e atuantes, uma imprensa livre, uma população mais questionadora do que muitos gostariam e cientistas atentos. Nãoa  toa, o colegiado dos professores titulares da Faculdade de Medicina da USP divulgou um manifesto nesta segunda-feira, dia 8, contra a alteração de acesso a dados da covid-19. O manifesto écurto e se posiciona flagrantemente contra¡rio “a smudanças do site do Ministanãrio da Saúde ao dificultar a disponibilização de todas as informações sobre a pandemia” e “a s declarações que colocam em daºvida as informações relativas aos a³bitos ocorridos no Paa­s, fato que ofende profundamente todos os profissionais da saúde que se dedicam diuturnamente ao atendimento de nossos pacientes e que desrespeita a dor das fama­lias das vitimas da covid-19”. E finaliza: “Ações como as citadas trazem enorme prejua­zo ao controle da pandemia no Paa­s.”

O Brasil não estãomais em 1974, quando o governo militar determinou que uma epidemia de meningite não fosse divulgada a  população oso que, obviamente, não impediu que as pessoas ficassem doentes, mas atrapalhou muito o combate ao mal. A medida de agora osconsiderada “burra e tacanha” pelo ex-ministro Luiz Henrique Mandetta e uma “pedalada sanita¡ria” por Marina Silva oscoloca o Brasil ainda mais a  margem da comunidade internacional. Mas hásoluções, independentemente do que o Planalto queira ou não. O Conselho Nacional dos Secreta¡rios de Saúde (Conass), que reaºne os gestores dos 26 Estados e do Distrito Federal, inaugurou no último dia 7 um portal “paralelo” para divulgar os dados da pandemia no Paa­s. Os dados sera£o atualizados diariamente, a s 17h. “Essas informações são propriedade do povo brasileiro, não dos Estados nem do ministanãrio, que tem o direito inaliena¡vel de ter conhecimento dessa informação”, afirmou a  Ra¡dio Gaaºcha o presidente do Conass, Alberto Beltrame. O Congresso também estuda ter seu pra³prio portal para informar sobre a pandemia.

Justamente para dar vaza£o a esse “direito inaliena¡vel”, vea­culos de comunicação como os portais G1 e UOL e os jornais O Globo, Extra, O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo decidiram formar uma parceria inanãdita e divulgar, em conjunto, números sobre mortes e contaminados pela covid-19. Os jornalistas va£o coletar os números diretamente junto a s secretarias estaduais de saúde e divulga¡-los diariamente a s 20h, já que o Ministanãrio da Saúde, que deveria ser a fonte natural, não tem ajudado em nada nesta tarefa. Pelo contra¡rio. A “manobra ilusionista” oscomo caracterizou o jornalista Helio Gurovitz ose negacionista do governo estãolonge de encontrar terreno fanãrtil no Brasil atual para prosperar. Ha¡ muitos olhos perscrutando o que estãosendo (mal) feito. E como toda ilusão, esta também acaba caindo por terra. E os truques mal ajambrados do ilusionista são facilmente descobertos. E va£o parar nas primeiras pa¡ginas dos jornais.

 

Esconder números não muda a realidade
Por Herton Escobar

A tentativa do governo federal de sufocar dados sobre a covid-19 no Brasil guarda muitas semelhanças com a crise envolvendo dados do desmatamento na Amaza´nia, em 2019. A situação era, essencialmente, a mesma: incomodado com a divulgação de dados oficiais que contradiziam seu discurso pola­tico e expunham falhas graves na gestãode uma emergaªncia nacional, o governo preferiu questionar os números a enfrentar o problema. Culpar o terma´metro em vez de resolver a febre, como se diz por aa­.

A ameaa§a, naquele caso, era o aumento desenfreado das queimadas e do desmatamento na Amaza´nia, revelado pelos dados de monitoramento por satanãlite do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) — um órgão do pra³prio governo, vinculado ao Ministanãrio da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), com 30 anos de experiência no assunto e altamente respeitado mundo afora como referaªncia internacional no monitoramento de florestas tropicais.

Questionado sobre o tema, Bolsonaro disse em um encontro com jornalistas, em 19 de julho, que os dados do Inpe eram “mentirosos” e que o diretor do instituto estaria agindo no interesse de organizações não governamentais (ONGs). Foi o estopim de uma crise internacional sobre o desmatamento na Amaza´nia, com consequaªncias políticas, diploma¡ticas e econa´micas duradouras para a imagem do Paa­s.

O diretor do Inpe, na ocasia£o, era o fa­sico Ricardo Galva£o, professor titular da Universidade de Sa£o Paulo (USP), ex-diretor da Sociedade Brasileira de Fa­sica (SBF) e do Centro Brasileiro de Pesquisas Fa­sicas (CBPF); figura altamente respeitada na comunidade cienta­fica nacional e internacional. Ele foi exonerado duas semanas depois, em 2 de agosto.

A demissão não mudou o fato de que os dados do Inpe estavam corretos, e a negação deles são serviu para manchar a reputação do governo, e não do Inpe. A transparaªncia e o rigor cienta­fico são marcas registradas do instituto, reconhecidos internacionalmente. Todos os dados de monitoramento por satanãlite do Inpe são paºblicos, assim como as metodologias de coleta e processamento que da£o origem a eles, o que permite que a sociedade e a imprensa tenham acesso direto a s informações.

 

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