Estudo de antropa³loga da USP Denise Pimenta traz conclusaµes que podem ajudar na criação de políticas públicas em cenários semelhantes
Foto: AFP Photo/Carl de Souza

Profissional do Manãdicos Sem Fronteiras (MSF) da¡ comida a criana§as com ebola em Kailahun
Quando foi para Serra Leoa pela primeira vez, em outubro de 2015, a antropa³loga Denise Pimenta encontrou opaís em estado de alerta. Embora a regia£o do oeste da áfrica já estivesse perto de superar a epidemia do ebola, oficialmente contida em 2016, a situação ainda era de precaução máxima, inclusive militarizada. “A ‘ma¡quina’ médico-militarâ€, diz ela, “era muito forte. Quem conferia a temperatura das pessoas para medir o risco de conta¡gio, por exemplo, era o exanãrcitoâ€.
Apesar deste clima, a pesquisadora não estava preocupada. Antes de ir, preparou-se por muito tempo reunindo documentos, pesquisando sobre o local e tomando uma sanãrie de vacinas. Como ela mesma coloca, seu maior medo era de não conseguir entrar nopaís.
Denise cruzou o Atla¢ntico buscando entender um dado pouco repercutido na anãpoca: durante a epidemia, as principais atingidas foram as mulheres. Segundo o último relatório da Organização Mundial da Saúde sobre o tema, em 2016 Serra Leoa tinha 9.941 casos confirmados da doena§a, sendo 5.118 em mulheres. Qual era a explicação por trás disso?
Os nove meses passados em campo entre 2015 e 2017 resultaram na tese de doutorado O cuidado perigoso: tramas de afeto e risco na Serra Leoa (a epidemia de Ebola contada pelas mulheres, vivas e mortas), defendida pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.Â
A principal conclusão do estudo foi que o papel de cuidar das pessoas atingidas pelo varus, quase sempre reservado a s mulheres, as colocava em situação de maior vulnerabilidade. A pesquisa ajuda a compreender a influaªncia das relações de gaªnero em meio a cenários de cata¡strofe, e traz informações que podem contribuir para a criação de políticas públicas mais efetivas para esses casos.
O cuidado perigoso
“Para entender por que mais mulheres morreram, fui atrás de saber como essas mulheres viviamâ€, explica Denise, que durante o tempo em Serra Leoa morou nas comunidades de Komende-Luyama, Devil Hole e John Thorpe, no interior dopaís.
Foi a partir de conversas e entrevistas informais que a pesquisadora acabou cunhando o termo “cuidado perigosoâ€. Ela conta que ficou surpresa com a resposta de uma estudante quando perguntada sobre qual o motivo de a epidemia ter sido mais impiedosa para as mulheres: “because of loveâ€, disse a menina. Por causa do amor.
“Mas não éum amor romantizadoâ€, salienta Denise. “a‰ um amor-fardo, que passa pelo parentesco, pelas tramas de amizade e afeto.â€
Nas três comunidades, Denise descobriu que a primeira vatima fatal do ebola havia sido uma mulher. Foi este então o pontapéinicial da pesquisa: investigando as relações familiares e afetivas das primeiras mortas, foi possível trazr o caminho que o varus percorreu em cada comunidade. “Com essa retrospectiva percebi que mais mulheres tinham morrido, e quem eram essas mulheres. Eram ma£es, irmãs, amigas, vizinhasâ€, diz. Todas tinham em comum a responsabilização pelo cuidado dos doentes.
As mulheres também eram responsa¡veis pela lavagem dos corpos quando outras mulheres morriam. Uma vez que a transmissão do ebola se da¡ pelo contato com fluidos corporais, isso criava um ciclo vicioso em que elas eram sempre as mais contaminadas.
Foto: Acervo pessoal/Denise Pimenta
Mulher que deu à luz durante a epidemia
Como a própria pesquisadora coloca, trocando-se a situação, a pesquisa mostra dina¢micas que ocorrem com mulheres pobres em diferentes lugares do mundo. Como exemplo, cita o livro da também antropa³loga Debora Diniz, Zika: Do Sertão nordestino a ameaça global, que mostra, dentre outras questões, como ma£es e gestantes brasileiras foram afetadas pelo surto do varus zika que ocorreu anos atrás.
“O cuidado perigoso do qual falo, mesmo tirando a epidemia, estãoinserido na nossa realidade o tempo todo. Quando uma mulher cuida de alguém com uma doença ou uma deficiência, nosromantizamos, tiramos a vulnerabilidade da coisa para chamar de amorâ€, diz Denise. “Tiramos toda a carga de violência, desigualdade de gaªnero, de sala¡rios, os riscos que as mulheres correm. E, enquanto fazemos isso, políticas públicas não estãosendo propostas.â€
Traumas da guerra e desigualdade social
Além da desigualdade de gaªnero, para produzir o estudo Denise se deparou com outras questões importantes que permeiam a vida em Serra Leoa. Uma delas era a guerra. “Eles me diziam: primeiro veio a guerra, depois o ebola. Havia uma temporalidade de eventos drama¡ticos que era preciso compreenderâ€, diz.
A guerra civil de Serra Leoa aconteceu entre 1991 e 2002, resultante de conflitos existentes desde quando opaís se tornou independente do Reino Unido, em 1961. Foi um período trauma¡tico, com grande saldo de mortos e marcado por todo tipo de violência, como estupros e o uso de criana§as-soldado.
"A guerra não saaa das cozinhas e varandas onde se encontravam minhas interlocutoras. Ao contra¡rio, como um saber picante, atravessava todas as minhas conversas, não importando se tristes ou alegres. Compreendi que o saber da guerra era como pimenta para aquele povo, impossível de ser retirada do paladar na medida em que constituinte de quem eram" (O cuidado perigoso: tramas de afeto e risco na Serra Leoa)
Esse passado conflituoso ajuda a entender tanto a forma militarizada como o Estado lidou com a epidemia quanto o receio que a população tinha dos soldados. Era o exanãrcito que vistoriava as comunidades para levar embora os infectados. Quando isso acontecia, havia pa¢nico e muitas pessoas se escondiam.Â
O receio tinha motivos para além da truculaªncia. Os sintomas iniciais do ebola são parecidos com os da gripe e de outras doenças comuns na regia£o. Por isso, os civis tinham medo de serem levados incorretamente e, uma vez em contato com infectados na ambulância ou nos hospitais, aa sim contraarem o varus.
Tambanãm eram comuns os relatos de famalias que perderam contato com os parentes levados por suspeita de ebola ‒ em alguns casos os hospitais ficavam a dias de distância das comunidades, que por sua vez não possuaam telefone ou outros meios para se comunicar. Assim, muitos acabavam morrendo e sendo enterrados como indigentes.
Vocaª precisa ter filhos, pelo menos uns três… Eu tive poucos, cinco filhos, dois morreram na guerra. Imagina se eu tivesse tido são dois, quem ia cuidar de mim? Aqui na áfrica se morre muito, a gente precisa ter muito filhoâ€, ouviu Denise de uma das entrevistadas
Em paralelo, havia também uma diferença geogra¡fica e de classe no modo como a doença se propagava. Com pouca infraestrutura para lidar com o problema, as áreas rurais foram as mais afetadas. Enquanto isso, as famalias abastadas, no campo ou na cidade, tinham condições para se exilar dopaís quando o perigo se tornou mais ameaa§ador.
“a‰ comum dizer que epidemias e desastres naturais devastam tudo, levam a todos, mas não bem assim que aconteceâ€, coloca Denise. “Epidemias e desastres ambientais tem gaªnero, raça e classe.â€
A pesquisadora fala ainda sobre o modo como a epidemia foi tratada pela madia ocidental. Para ela, a imprensa ajudou a fortalecer uma narrativa que abordava os africanos como ignorantes, sempre privilegiando fontes oficiais e profissionais da saúde, muitos destes, homens brancos europeus ou estadunidenses. As mulheres sobreviventes, sobretudo as mais pobres e que moravam em regiaµes distantes dos centros comerciais, tinham pouco ou nenhum destaque nas reportagens.
Financiamento
Para realizar a pesquisa, Denise obteve financiamento da Coordenação de Aperfeia§oamento de Pessoal de Navel Superior (Capes). Conforme ela explica, a bolsa foi de extrema ajuda, poranãm insuficiente para cobrir todos os custos necessa¡rios desde a preparação atéa conclusão do estudo.
Ela precisou complementar a verba com ajuda da famalia, mas sabe que essa possibilidade épara poucos. E lamenta: “No Brasil, sobretudo na área das ciências humanas, pesquisas como essas acabam sendo bancadas por uma estrutura familiar e de amigos, infelizmenteâ€.
Além das preocupações financeiras, houve a preocupação com segurança. Para ela, também nesse aspecto existem várias dificuldades que os pesquisadores precisam enfrentar, como o excesso de trabalho para baixo número de profissionais.Â
“Nossos problemas são tão ba¡sicos que ninguanãm estãopreparado para pensar, por exemplo, que pessoas que fazem certos tipos de pesquisa [em áreas de risco] precisam passar pelo [Instituto de Infectologia] Emalio Ribas, ou para pedir documentos de quem estãorealizando essas pesquisas, ter controle de onde estãoâ€, diz Denise.Â
Ela complementa dizendo que não culpa os professores e funciona¡rios que participam desse processo. “Pelo contra¡rio, eles gostariam muito que fosse assim. Poranãm, as demandas burocra¡ticas para não perder verba são tão grandes que isso éimpossível.â€