Humanidades

A geografia da música
Professor Alessandro Dozena do Departamento e do Programa de Pa³s-Graduaa§a£o em Geografia da UFRN, se soma a um pequeno número de pesquisadores no mundo interessados no estudo da cultura e das manifestaa§aµes arta­sticas em sua dimensão espacial a
Por José de Paiva Rebouças - 03/10/2019

Imagem Pixabay

As músicas “Trenzinho do caipira”, de Heitor Villa-Lobos, e “Os alquimistas estãochegando”, de Jorge Ben Jor, mexem com as percepções do professor Alessandro Dozena. A primeira lhe faz lembrar de quando era criana§a e morava na casa dos pais, em Sa£o Carlos, ao lado da antiga Ferrovia Paulista S/A. A segunda era o que tocava no ra¡dio do ta¡xi que o conduziu do antigo aeroporto Augusto Severo atéo centro da cidade de Natal, quando aqui chegou em fevereiro de 2010 para recomea§ar a vida. 

Lembrana§as como essas nos transportam atravanãs da memória e dos sentidos, pois, muitas vezes, vão carregadas de cheiros e outras sensações que va£o muito além daquilo que se pode dizer. Por isso, sempre interessaram a s ciências, mas não são as que estudam a psicologia humana. a‰ também possí­vel ligar a relação dos sons ouvidos em nosso dia a dia com o espaço geogra¡fico por meio de uma teoria que pode ser chamada de geografia da música. 

Essa experiência cienta­fica usa os ritmos e os sons como linguagem espacial capaz de definir cartograficamente os territa³rios. A proposta “arrisca colocar em movimento o exerca­cio da desconstrução de uma ciência geogra¡fica mais afeita a s regras e padraµes normativos que aprisionam suas sonoridades”, como o pra³prio Dozena explica na introdução do livro Geografia e música (2016), organizado por ele. 

Professor associado do Departamento e do Programa de Pa³s-Graduação em Geografia da UFRN, Dozena se soma a um pequeno número de pesquisadores no mundo interessados no estudo da cultura e das manifestações arta­sticas em sua dimensão espacial a partir da música.

O primeiro deles teria sido o francaªs Georges Gironcourt que, em 1938, publicou o livro “La ganãographie musicale“. Aqui no Brasil, além de Dozena, se interessam por essa área os pesquisadores Lucas Manassi Panitz, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que estuda a música platina e sua relação com a cultura gaaºcha, e Marcos Alberto Torres, da Universidade Federal do Parana¡ (UFPR), cujo interesse évoltado a  compreensão das paisagens sonoras em suas maºltiplas possibilidades 

“Penso que geografia e música são transversais a  vida humana em suas maºltiplasDimensões : sons, sentidos, espacialidades, ritmos, fluxos, melodias, etc. , que se constituem em dia¡logos possa­veis de prática s que enredam nas experiências vividas Espaço-sonoramente”, explica Dozena ainda no livro Geografia e Maºsica. 

 Autor também de “A geografia do samba na cidade de Sa£o Paulo”, o pesquisador tem defendido sua teoria em vários lugares do Brasil. Recentemente, esteve em Sa£o Paulo e no Rio de Janeiro participando de eventos com esse propa³sito. No pra³ximo ano, retorna a  Europa para discutir seus argumentos e atuar como professor visitante na Universidade Paul-Valanãry, em Montpellier, na Frana§a, a convite do gea³grafo francaªs Dominique Crozat. 

Estrutura da teoria 

a‰ comum professores usarem música como recurso dida¡tico, mas Dozena explica que, na perspectiva dessa teoria, não basta apenas usar o gaªnero para identificar lugares. A geografia da música lida com a percepção e a memória, pois o espaço condiciona comportamentos, pensamentos e culturas. 

“A bossa nova não surgiu no Rio [de Janeiro] por acaso. Havia uma condição espacial que permitia aos compositores captarem aquela inspiração: o relevo carioca, o momento em que vivia o Rio em seu glamour. Hoje, como isso estãodiferente, vemos surgir produções como o funk carioca, por exemplo”, explica. 


No carnaval de Sa£o Paulo, no qual Dozena atuou como jurado, ele percebeu que antes dos desfiles das escolas principais entram os afoxanãs, que remontam a um movimento secular da cultura africana, assim como muitos elementos do samba e de danças tradicionais brasileiras. “A música transporta as pessoas e, a partir dela, épossí­vel estabelecerDimensões territoriais, hista³ricas e culturais”, completa o professor. 

Mas a teoria não se resume apenas a  música. De acordo com Dozena, quando se estãoem uma praça e se ouve o sino de uma igreja, altera-se a apreensão do espaço e a pessoa pode ficar mais emotiva ou mais atenta, já que aquele som lhe traz memórias. “Os sons são linguagens espaciais e alteram nossa noção de apropriação dos Espaços”, reforça. 

a‰ por isso que quando um professor de Geografia utiliza uma música em sala de aula e focaliza apenas na letra para se referir a determinado lugar, deixando de lado a percepção que aquele som traz aos alunos, ele reduz o potencial da teoria proposta. 

Nesse caso especa­fico, orienta o professor, as músicas em Geografia podem ser usadas para identificar de onde vem o ritmo, não como teoria musical, mas como registro espacial. “O som éum potencializador de memória e sentimento, considerando que paisagem não éapenas o que o olhar abarca, mas o que a mente concebe”, acrescenta. 

Nuana§as da teoria 

Olhando de fora éfa¡cil perceber a linha taªnue que separa a perspectiva defendida por Dozena de outros campos de pesquisa. Isso porque a concepção da teoria que relaciona Geografia e Maºsica traz muitos elementos da Sociologia, da Antropologia, da Teoria Musical e atéda Educação Arta­stica. Mas éexatamente essa complexidade que, na visão do pesquisador, torna essa ideia forte, uma vez que fortalece a necessidade da inter e da multidisciplinaridade na formação humana. 

Atrelada ao subcampo da Geografia Humanista-Cultural, Alessandro Dozena assegura que a proposta atende aos princa­pios geogra¡ficos cla¡ssicos em toda a essaªncia, como o da Localização. Ela busca identificar onde estãoo fena´meno, seja ele uma festa, uma tribo inda­gena, uma comunidade quilombola, um fato cultural religioso ou qualquer outra manifestação cultural. “Quando se observa onde e por que o fato cultural estãoem determinado lugar, se constra³i um racioca­nio espacial, o que não éuma preocupação especa­fica do antropa³logo, socia³logo ou historiador”, diz Dozena. 

Ao identificar atéonde vai o fena´meno, a teoria atende aos princa­pios cla¡ssicos da Extensão e da Conexa£o. “Onde estãoe atéaonde vai? Isso também provoca um racioca­nio geogra¡fico, no qual se percebem conexões, redes entre uma igreja e outra, um grupo de rua e outro, uma escola de samba e outra”, interpreta o professor, fazendo referaªncia a s chamadas redes geogra¡ficas. 

Os últimos princa­pios geogra¡ficos em evidência para sustentar a proposta de Dozena são o da Particularidade e da Totalidade. “Tudo éparticular, isso interessa ao antropa³logo, ao socia³logo, mas eles focam muito mais na questãocultural. Um abora­gene entalhando uma madeira, por exemplo, desperta no gea³grafo o interesse de saber de que localização veio aquela madeira, para definir o elemento econa´mico; quem cedeu a madeira, para definir os elementos pola­ticos; e qual tipo de madeira estãosendo usada, para definir o elemento natural. Isso tudo nos leva a outro princa­pio ba¡sico que éo da Totalidade, ligado a  dimensão mais ampla do universo, enquanto realidade de todas as existaªncias”, contextualiza o pesquisador.  

Um exemplo desses princa­pios éo carnaval. Fena´meno sociola³gico, ou fato social, a festa, vista em um panorama espacial ou geogra¡fico, permite a geração de mapas indicando os tipos de carnavais existentes, se são heterogaªneos e quais conexões provocam. A utilização do tambor percussivo gera um va­nculo com a cultura africana, ao mesmo tempo que esse instrumento conecta todas as escolas de samba do Brasil e as comunidades dos tambores, que também estãoempaíses latinos como Cuba e Cola´mbia, para citar alguns. 

Quando escrevia o livro “A geografia do samba”, Alessandro Dozena identificou na fala dos entrevistados uma relação dos movimentos do samba da cidade de Sa£o Paulo com o rio Tietaª e com o samba. “Ao buscar por respostas, percebi que, a  medida que a cidade foi sendo urbanizada, as periferias foram sendo afastadas do leito do rio, de maneira que a história do samba anã, em parte, também a história do rio, que ficou no centro e rodeado pela periferias”, conta. 

O maºsico gea³grafo 

Alessandro Dozena tocava em uma banda de baile quando resolveu prestar vestibular. Pensou em Maºsica, mas acabou escolhendo Geografia. Tornou-se gea³grafo pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/Rio Claro), mas também estudou música na Universidade Livre de Maºsica (ULM/Sa£o Paulo). 

Atualmente éprofessor associado do Departamento e do Programa de Pa³s-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGE-UFRN), no qual dirige o grupo de pesquisa Festas, Identidades e Territorialidades (FIT-CNPq). Ele também éprofessor do Mestrado Profissional em Geografia (GEOPROF-UFRN). 

Mestre e Doutor em Geografia Humana pela Universidade de Sa£o Paulo (USP-Sa£o Paulo), com doutorado-sandua­che na Universidad de Barcelona (UB), realizou pa³s-doutorado na UniversitéPaul-Valanãry Montpellier (UPV), como bolsista da CAPES. Em 2010, veio para Natal após aprovação em concurso paºblico para a UFRN.

Publicou os livros: Geografia e Maºsica: Dia¡logos (2016); Espaço-Tempo: Enredos entre Geografia e Hista³ria (2015); A Geografia do Samba na Cidade de Sa£o Paulo (2012); e Sa£o Carlos e seu Desenvolvimento: Contradições Urbanas de um Polo Tecnola³gico (2008). 

a‰ ainda tutor do Programa de Educação Tutorial osPET Geografia (UFRN), integrante do Grupo Vocal Octo Voci da Escola de Maºsica da UFRN (EMUFRN), e membro do Comitaª Ganãographies Culturelles vinculado ao Comitaª Nacional Francaªs de Geografia (CNFG).

 

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