Humanidades

O maªs que não vai terminar
Por meio da análise de postagens no Facebook, pesquisadores mapeiam disputas discursivas sobre as manifestaa§aµes de junho de 2013 no Brasil e na Turquia
Por Ewerton Martins Ribeiro - 14/11/2019

Marco Auranãlio Esparza | CC 3.0

Em junho de 2013, quase que simultaneamente ao que ocorria no Brasil, os turcos também saa­am a s ruas para protestar contra o governo. Enquanto no Brasil o que motivava as manifestações era o aumento das passagens do transporte urbano, na Turquia, os protestos eram contra a decisão do governo de demolir o Parque Taksim Gezi, em Istambul, para a construção de um shopping e um complexo residencial osnos doispaíses, tudo era reportado e também pautado, em tempo real, pelas redes sociais. Interessado na proximidade temporal e tema¡tica dos dois casos, um grupo de pesquisadores da UFMG e de universidades australianas, analisou-os conjuntamente para tentar esclarecer o papel das ma­dias sociais no contexto das lutas simba³licas inerentes a essas manifestações populares.

Liderados por Ricardo Fabrino Mendona§a, professor de Ciência Pola­tica da UFMG, os pesquisadores dedicaram-se a  análise dos protestos a  luz do conceito de “acontecimento”, associado a “a rupturas nos fluxos ordina¡rios da vida” que “deslocam as construções dominantes da realidade e abrem novas maneiras de vaª-la e interpreta¡-la”. Explicam os pesquisadores: “os acontecimentos moldam a maneira como o passado éentendido e o futuro éimaginado. Eles não são ocorraªncias esta¡ticas com princa­pios e finais claros: evoluem e sempre tem o potencial de ser atualizados em diferentes momentos e locais do futuro”. 

O resultado da pesquisa foi coligido no artigo Protestos como “Acontecimentos”: as lutas simba³licas nas manifestações de 2013 no Brasil e na Turquia, publicado hálgumas semanas na Revista de Sociologia e Pola­tica, da Universidade Federal do Parana¡ (UFPR).

No artigo, os pesquisadores analisaram as mensagens postadas no Facebook ao longo dos primeiros 30 dias de protestos em cadapaís. No Brasil, foram coletadas as publicações da pa¡gina Passe Livre Sa£o Paulo, vinculada ao Movimento Passe Livre (MPL), grupo que iniciou os protestos, e da pa¡gina O Gigante Acordou, que emergiu durante as manifestações.


No caso turco, foram coletadas as postagens das pa¡ginas Taksim Dayanismasi, associação que teve papel significativo na organização e mobilização das manifestações, e Recep Tayyip Erdogan, pra³-governo. Em todas essas postagens, os pesquisadores analisaram a forma como seus autores enquadravam as causas das manifestações e como esses enquadramentos foram mudando ao longo dos dias.

Movimento e dissolução

A análise reveloumudanças significativas na forma o modo como as causas dos protestos foram enquadradas nos doispaíses. Enquanto no Brasil a transformação ocorreu de forma a enfraquecer o foco inicial, em uma espanãcie de sequestro ideola³gico das manifestações, na Turquia essa transformação não implicou rompimento com a pauta inicial, mas sua ampliação: os protestos contra a demolição do Parque Taksim Gezi, marco zero das manifestações, passaram a atacar também a natureza autorita¡ria do regime. “Na Turquia, aqueles que iniciaram e organizaram os protestos foram também os que tentaram ampliar os quadros interpretativos que definiam as suas causas. Eles, deliberadamente, buscaram uma extensão da estrutura, capaz de expandir os limites da luta para abranger diferentes visaµes e envolver diversos grupos”, anotaram os pesquisadores.

No Brasil, ao mesmo tempo que os protestos tomavam as ruas, uma intensa disputa pela determinação dos significados e das razões daquelas manifestações ocorria no campo simba³lico. A questãodo transporte paºblico e de suas tarifas, levada a s ruas e a  internet pelo MPL, seguiu hegema´nica até13 de junho. Nessa data, contudo, em razãodo recrudescimento da repressão estatal, o ta³pico “violência policial” começou a ganhar força como explicação para os protestos, e em 17 de junho, na esteira dessa expansão discursiva, surgiu a pa¡gina O Gigante Acordou, ocorraªncia decisiva para a inflexa£o que ocorreria a seguir.

“Em 17 de junho, os posts da OGA começam a promover uma explicação muito diferente dos protestos, convidando as pessoas a lutar contra a corrupção e os atores pola­ticos, o sistema pola­tico existente”, escrevem os pesquisadores. “Suas postagens eram muito mais frequentemente baseadas em imagens e, na maioria dos casos, não eram desenvolvidas com argumentos mais amplos”, explicam. Nesse momento, surge o slogan “Nãoépor 20 centavos.”

Enquanto no Brasil a transformação ocorreu de forma a enfraquecer o foco inicial, em uma espanãcie de sequestro ideola³gico das manifestações, na Turquia essa transformação não implicou rompimento com a pauta inicial, mas sua ampliação.


Nãodemorou para que a OGA entrasse em confronto direto com o MPL, que parecia prever o potencial desse redirecionamento interpretativo dos protestos em esterilizar qualquer chance de funcionalidade pragma¡tica no que se refere a  conquista efetiva de ganhos sociais. Amedida que o MPL se distanciava desse discurso antipartida¡rio difuso, a OGA aproveitava o momento para ganhar protagonismo no a¢mbito da construção de sentidos para os protestos.

Observando-se retrospectivamente, o artigo faz perceber o atual momento brasileiro como uma espanãcie de “resultado por pontos” de todos os rounds simba³licos disputados no decorrer daquele maªs. Como escrevem os pesquisadores, enquanto na Turquia a ampliação das razões dos protestos fora essencial para “desafiar o autoritarismo e promover ideais democra¡ticos”, no Brasil, essa extensão dos quadros “enfraqueceu o foco inicial dos manifestantes” e, no limite, “pa´s em risco a democracia”.

 

.
.

Leia mais a seguir