Era assim que o historiador Boris Fausto, morto aos 92 anos no último dia 18, analisava como o Brasil lida com sua realidade e com suas perspectivas
Foto: Felipe Rau
Costuma-se dizer – com uma boa dose de razão – que o Brasil não é para amadores. Nem no fazer político nem para a compreensão mais ampla – e com uma lupa nas mãos – da intrincada trama social, econômica, cultural e política que compõe a genealogia nacional. Nesse sentido, Boris Fausto, morto aos 92 anos no último dia 18, era um dos últimos de uma geração de pensadores e estudiosos que são o paroxismo do profissional que se debruçou na tarefa de entender – e explicar – o Brasil e sua história, gente da estirpe de Caio Prado, Sérgio Buarque de Holanda, Fernando Henrique Cardoso. E conseguiu.
Professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH-USP), Boris Fausto foi homenageado tanto pela faculdade quanto pela Reitoria da Universidade – a USP decretou luto oficial por sua morte. “É, de fato, difícil abarcar todo o contributo de Boris Fausto para a produção historiográfica brasileira: das articulações e disputas que levaram à Revolução de 1930, dos processos migratórios, do cotidiano da gente pobre paulista ou do comportamento operário. Cada um desses trabalhos é ímpar e leitura obrigatória para todas e todos que pensam o Brasil do século 20. Toda a geração que veio a seguir a Boris Fausto é dele devedora”, afirma a nota oficial da FFLCH. Já a nota da Reitoria, assinada pelo reitor Carlos Gilberto Carlotti Junior e pela vice-reitora Maria Arminda do Nascimento Arruda, reitera ter sido ele um dos principais historiadores e cientistas políticos brasileiros. De fato, Boris Fausto foi dos mais argutos observadores e estudiosos do Brasil e sua sociedade, com análises fortes e sempre bem fundamentadas.
“As pessoas precisam de simplificações, mas as simplificações muitas vezes são perigosas, na medida em que não dão conta da realidade. Então, há um certo mal, demoníaco, e há um setor salvador, puro. Há um herói salvador, que irá encaminhar o País. Há um representante de Satanás, que vai levar o Brasil para o inferno”, afirmou ele a Roberto D’Ávila, na Globonews, em outubro de 2018, faltando pouco para o Brasil cruzar o umbral numa travessia que durou quatro anos. “O problema é que nem há Satanás, que, se existir, não estará preocupado com o Brasil, pois o Universo é muito grande, nem existem anjos salvadores. Não gosto de dar receitas, mas é uma coisa que a população precisa aprender, para não termos contínuas decepções, que têm sido um pouco a história deste país. Isso não é bom”, avaliou.
Muitas de suas análises, percepções e estudos ganharam forma de livros – duas dezenas, na verdade, fora os 11 da coleção História Geral da Civilização Brasileira, feita em parceria com Sérgio Buarque de Holanda na década de 1990 e depois reeditada nos anos 2000. Pelo menos dois de seus livros se tornaram clássicos: A Revolução de 1930: Historiografia e História, publicado em 1969, e História do Brasil (Edusp), publicado em 1994. Sobre o primeiro, ele tinha um comentário pronto, entre o resignado e o brincalhão: “‘Ah, Boris Fausto. Eu conheço o senhor, o senhor escreveu aquele livro A Revolução de 1930’. Eu escrevi em 1969. Parece que de lá para cá eu não fiz mais nada”, relembrou ele à revista Pesquisa Fapesp em 2011, sem deixar de sublinhar uma certa dose de “destino” nessa questão: Boris Fausto nasceu no mesmo ano da revolução que levou Getúlio Vargas ao poder – e esse seu primeiro livro foi justamente aquele que alavancou sua carreira de historiador, tornando seu nome indissociável do período estudado. A Revolução de 1930 provocou mudanças significativas nas análises sobre o tenentismo e o fim da República Velha, com Boris Fausto vendo nos jovens militares um espírito que “em grande linha, não era democrático”.
Já o segundo clássico, História do Brasil, é o seu best seller. Já vendeu até hoje 130 mil exemplares e teve 14 edições – é o livro mais vendido da história da Editora da Universidade de São Paulo (Edusp). E o autor tinha um especial carinho por este trabalho. “Tenho afeição por ele e acho que foi um marco que pode ser aproveitado. Mas muita coisa ali foi superada, como eu já superei, se fosse escrever uma nova história”, contou certa vez, sempre com um olhar crítico.
Das Arcadas à História
Nada mal para um historiador que, de várias maneiras, poderia ser considerado temporão. Nascido em uma família de origem judia, Boris Fausto não foi um historiador de primeira hora – sua primeira opção, para quem a essa altura ainda não sabe, foi a Faculdade de Direito da USP. Formado nas Arcadas do Largo de São Francisco em 1953, trabalhou por mais de uma década como consultor jurídico da Universidade. Só então enveredou pela carreira que o tornaria um nome respeitado em todas as latitudes. Em 1966, já com 36 anos, graduou-se em História pela antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, onde se tornou doutor em 1969. “Muito incentivado pela minha mulher, Cynira, resolvi fazer o curso de História. Eu gostava muito de História e achava que o Direito era apenas uma via de sustento, uma via profissional”, revelou ele em depoimento ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas.
Mas só em 1988, já aposentado da vida jurídica, começou efetivamente sua carreira como professor universitário no Departamento de Ciência Política da FFLCH, de 1988 a 1997. O curioso é sua explicação para não ter optado pelas Ciências Sociais, e sim pela História, além do gosto pessoal, é claro. Segundo contou à revista Pesquisa Fapesp, ele deixou de lado o curso de Ciências Sociais, mais prestigiado, porque nele estavam muitos de seus amigos intelectuais e Boris Fausto sentia-se constrangido em se tornar aluno deles.
A escolha, obviamente, acabou se mostrando a mais acertada, até porque Boris Fausto pôde, sem as amarras de uma pretensão de carreira (como ele mesmo afirmava), trabalhar com maior liberdade de movimentos. E essa liberdade rendeu muitos frutos encadernados. Mesmo em seus livros sem viés enfaticamente acadêmico ou didático, como Crime e Cotidiano: A Criminalidade em São Paulo (1880-1924), O Crime do Restaurante Chinês – Carnaval, Futebol e Justiça na São Paulo dos anos 1930 e O Crime da Galeria de Cristal, ou seja, apesar de trafegarem pelo romance policial, a História está presente – no caso, a micro-história, na qual o autor reduz sua escala de observação e preocupa-se com as ações humanas e significados não valorizados no painel mais amplo da historiografia. E por que histórias de crimes? “Porque são as coisas que impressionam muito as pessoas. Têm um impacto muito grande. Passam de pai para filho. Mãe para filha. Mas há também crimes que desaparecem e você precisa desenterrar porque eles são muito interessantes”, disse em entrevista ao Programa do Bial.
Seu último livro, publicado em 2021, é Vida, Morte e Outros Detalhes, inspirado pela morte de seu irmão, o filósofo Ruy Fausto, logo no início da pandemia de covid-19. A obra traz um conjunto de memórias e reflexões sobre relações familiares, as rivalidades do afeto, o envelhecimento e a finitude. “Da minha parte, a pandemia fez reviver o passado, que se tornou uma presença cotidiana, e me aproximou, ainda mais, de meu irmão Ruy pela via do divertimento. Sua morte inesperada e essa aproximação me impulsionaram a escrever este livro, passo a passo, sem um esquema prévio”, escreveu ele no início do volume.
Sobre a morte, Boris Fausto costumava reproduzir uma citação de Elias Canetti, romancista e ensaísta britânico de origem búlgara: “Eu odeio a morte. Vou lutar até o fim contra ela, embora eu saiba que vou perder”. Perdeu? A História diz o contrário.