Ilegalidades e falta de acesso: pesquisadora analisa a geografia do sistema penal brasileiro
Com base nas ideias do geógrafo Milton Santos, conceito de 'circuito espacial penal' ajuda a entender paisagens penais e os desafios da justiça no Brasil
O Brasil como um todo vive uma desigualdade no acesso aos direitos e garantias do ir e vir e da inocência. Não sendo o bastante, os lugares de residência de maioria negra (pretos e pardos) – e que, ao mesmo tempo, são os dos pobres -, são alvos da ação do sistema policial e da justiça, mesmo sem garantir o acesso à defesa. Essa é a avaliação da geógrafa Carin Gomes, com base nos resultados de sua tese de doutorado defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
A pesquisadora elaborou o conceito de “circuito espacial penal”, que serve para operacionalizar a teoria científica do espaço geográfico e fundamenta o entendimento dos usos ilegais do sistema penal. Isso porque, embora existam normas que regem os espaços geográficos, a realidade do território e das práticas locais muitas vezes resulta em ilegalidades, tais como abusos de poder por parte de autoridades e condições desumanas nas prisões. O conceito é um instrumento de análise feito a partir de uma síntese das etapas indissociáveis do sistema policial, penitenciário e justiça criminal em sua diversidade de ações nos seus múltiplos objetos, agentes, temporalidades, instituições e lugares. Ela exemplifica esses elementos a partir da ação de um batalhão da polícia militar.
“Tem que pensar que essas ações, da abordagem ou mandado de prisão – que são ações reguladas pelo sistema penal -, têm uma escala no local e há institutos legais que as disciplinam [que] são de uma escala da Federação”.
Carin Gomes
A compreensão dessas etapas ajuda a identificar onde e como ocorrem práticas ilegais ou abusivas. Assim, a partir do circuito, a autora se atenta a algumas paisagens penais. Elas consistem em análises geográficas do circuito em diferentes estados brasileiros, como São Paulo, Mato Grosso do Sul, Rondônia e Acre, para ilustrar como ele se manifesta em contextos específicos. A avaliação foi feita a partir de imagens de satélite do Google Earth e projeções cartográficas do sistema penal, agrupadas por densidade do meio técnico-científico-informacional (MTCI) e analisadas também por imersão da autora na tentativa de acessar a defensoria pública.
Varas e comarcas
As comarcas são divisões territoriais do sistema judiciário brasileiro, correspondendo a um ou mais municípios, e são organizadas diversas varas, que são unidades judiciárias responsáveis por julgar diferentes tipos de processos. As varas criminais, por sua vez, são especializadas no julgamento de crimes comuns, como homicídios, roubos e furtos. Já as varas especializadas em execuções penais têm a função de acompanhar e fiscalizar o cumprimento das penas impostas, e gerenciam questões como progressão de regime e concessão de benefícios aos condenados.
Ao estudar as paisagens penais frente à expansão do meio técnico-científico-informacional, ela percebe que “as novas penitenciárias – inclusive as federais – avançam, às regiões de fronteira agrícola no território brasileiro”, no entanto, isso não significa infraestrutura penal para os sujeitos garantirem seus direitos. Tem-se, então, esses estabelecimentos espalhados pelo interior do Brasil e, ao mesmo tempo, crescem os números de divisões de comarcas e das varas criminais, enquanto as varas especializadas em execuções penais são raras e, em sua maioria, estão nas metrópoles.
Número de prisões provisórias superam prisões definitivas na maioria dos estados federativos – Imagem: Reprodução/Tese de Doutorado
Espaço como fonte para o direito
O contato de Carin com o Fórum do HipHop durante sua pesquisa de mestrado foi crucial para elaboração do trabalho atual por responder “a necessidade de quem está dentro da Universidade a pensar sobre as queixas” do movimento negro. Assim, a geógrafa começa “a pensar como discutir essas queixas da questão racial e contribuir a partir do método geográfico”.
A tese pode ser considerada como “miltoniana”, devido a boa parte de sua base teórica ser a obra de Milton Santos, um dos mais importantes geógrafos brasileiros. Santos deixou um método de análise das realidades sempre em dinamismo e tem como um dos fundamentos a dialética de que em que cada lugar é possível que aprenda-se o mundo. A autora explica que conduziu uma pesquisa sobre o acesso à justiça via Defensoria Pública, realizando entrevistas, ligações e visitas a diferentes instituições, como também fóruns e tribunais.
“Eu estava sempre recompondo essas percepções e testando o estado da arte, ou seja, testava o que já havia sido produzido sobre o tema na literatura empiricamente, e também testava os dados primários que sistematizei pioneiramente no Brasil”, explica Carin.
Deve-se essa metodologia à orientação de Ricardo Mendes Antas Junior, professor livre-docente do Departamento de Geografia da USP, que em sua tese de doutorado defendeu que o espaço é fonte do direito. Antas Junior, por sua vez, foi orientado por Maria Adélia Aparecida de Souza e pelo próprio Milton Santos.
O “espaço ser fonte do direito” refere-se à ideia de que o espaço geográfico e as condições sociais, culturais e econômicas de um determinado território são fontes não formais para criação e a aplicação – ou não aplicação – das normas jurídicas. “O espaço geográfico (território) condiciona a gente o tempo todo”, afirma Antas Junior. Isso implica em que o direito não é apenas uma construção abstrata ou uma imposição do Estado, mas que ele é moldado e condicionado pelas realidades materiais e sociais em que se insere.
Política Estadual
Dessa maneira, para analisar e compreender o espaço como norma efetiva do sistema penal, ou seja, território como fonte material e não formal do direito, é necessário considerar, no atual período histórico, a globalização, portanto a expansão do MTCI, o meio técnico-científico-informacional . “O meio, a atual natureza urbana do Brasil e do mundo, ou seja, as diferentes densidades técnicas, de informação e uso da informação, de normas e de comunicação, garante a prática do sistema penal, ora como punitivismo, ora como garantias”, explica Carin, e alerta:
“O uso do sistema penal como temos hoje pune e continua a seguir como modelo cívico escravocrata.”
“O investimento em técnicas para a militarização da polícia, como a compra dos fuzis israelenses, para algumas diligências policiais, em alguns estados, chega com intenções de guerra, empodera as fardas da polícia militar para um dado uso. Já a falta de investimento na polícia civil, impossibilita o acesso à produção de inquéritos com provas robustas e legais”, detalha a pesquisadora.
Ainda há o problema com os deslocamentos de mais de 600 km de distância do seu local de origem para penitenciárias no interior. Neste contexto, justificar que a pessoa e a família têm acesso aos meios informacionais para comunicação legal e necessária “é desconsiderar os ‘desconectados da rede’, termo de Mait Bertollo e desconsiderar as condições físicas dos estabelecimentos”, aponta.
“Como acessar o juiz? Como acessar o Ministério Público, como acessar a Defensoria Pública que estão na região de concentração de densidade do sistema penal?”, questiona a geógrafa.
“Quando temos apenas varas criminais e estabelecimentos penais, com outros elementos também do direito e do território, há um aumento do punitivismo, o que resulta em um maior número de prisões, prisões provisórias e prisões questionáveis, em detrimento do acesso da população ou do réu à totalidade do sistema de Justiça, incluindo a execução penal”, detalha. A tese possibilita, desse modo, “pensar uma política de Estado para encarar a totalidade das agências, instituições e agentes na prática penal”. Não se trata de “simplesmente negar o sistema penal, mas realizar os fundamentos constitucionais nos lugares e nas diversidades federativas”. Vale a pergunta da autora, “quais são os usos efetivos desse circuito que permitirá aos cidadãos em qualquer lugar acessar seus direitos e garantias de liberdade, inocência e justo processo penal?”.
A tese em Geografia Humana defendida na FFLCH.
Mais informações: e-mail carincarrer@gmail.com, com Carin Carrer Gomes