Humanidades

Romarias transformam assassinados no campo em ma¡rtires e ‘encantados’
Pesquisa de doutorado mostra a sacralizaa§a£o de liderana§as camponesas e inda­genas vitimadas em conflitos de terra no Brasil
Por Luiz Sugimoto - 19/02/2020


Romeiros a caminho da Galeria dos Ma¡rtires da Amanãrica Latina,
em Ribeira£o Cascalheira (2016)

“Ele não foi enterrado, foi plantado”, afirmam reiteradamente os inda­genas em respeito ao cacique Xica£o (Francisco de Assis Araaºjo), dotando o lider assassinado em 1998 de materialidade nas a¡guas, matas e terras do povo Xukuru do Ororuba¡, em Pesqueira (PE). Isso também érecorrente nas narrativas sobre a missiona¡ria Dorothy Stang, assassinada em 2005 no munica­pio de Anapu (PA). “Os peregrinos afirmam que o corpo dela não foi enterrado, mas plantado, como semente, e que seu sangue derramado fecunda o solo, fertiliza a plantação e fortalece a luta pelos direitos a  terra e a  vida”, escreve o antropa³logo Edimilson Rodrigues de Souza em “Sacralização de liderana§as camponesas e inda­genas assassinadas em contextos de conflito de terra no Brasil”, tese de doutorado orientada pela professora Ema­lia Pietrafesa de Godoi, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH).

“Na verdade, esta pesquisa começou no meu mestrado, quando tive acesso, em 2010, aos arquivos de Raimundo Ferreira Lima, o Gringo. O filho dele, Alex Costa Lima, era ainda pequeno quando o pai foi assassinado em 1980 e, quando cresceu, criou o ha¡bito de colecionar reportagens sobre o crime, citações em livros e artigos e va­deos”, explica o autor da tese. “Todos os materiais aparecem como denaºncia da violência no campo, mas alguns indicam a transformação daquela liderana§a em uma figura simba³lica de luta. Tambanãm conversei com a viaºva, Maria Oneide, que me contou ter participado de romarias em que era convidada a falar da trajeta³ria do marido. Soube ainda que aconteciam romarias da terra e da a¡gua, em homenagem a liderana§as sindicais.”

Embora sem tempo ha¡bil para explorar o tema no mestrado osem que se ateve a  biografia de três lideres: Gringo no sul do Para¡, padre Joa£o Bosco no nordeste do Mato Grosso e Xica£o Xukuru em Pernambuco osEdimilson Rodrigues foi convidado ainda naquela anãpoca a acompanhar a Romaria dos Ma¡rtires da Caminhada.  “Em 2011, na romaria que acontece a cada cinco anos em Ribeira£o Cascalheira, estavam imagens e narrativas das três liderana§as que estudei e de várias outras. Os dia¡logos dos peregrinos eram permeados por denaºncias de violação dos direitos humanos e ali multiplicados como forma de superação dos contextos de violência e morte. Esta romaria serviu como propulsora do meu projeto de doutorado.”

Na tese, o antropa³logo analisa os efeitos da transformação ritual de liderana§as camponesas e inda­genas assassinadas em ma¡rtires da terra e encantados. Para compreender a dimensão simba³lica da luta pela terra, águae floresta na Amaza´nia e Nordeste brasileiros, ele realizou trabalhos de campo de cara¡ter etnogra¡fico em caminhadas organizadas e/ou apoiadas pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Conselho Indigenista Missiona¡rio (CIMI): a Romaria da Terra e da agua Padre Josino, nas cidades de Sa£o Sebastia£o do Tocantins e Buriti do Tocantins; a Romaria da Floresta, em Anapu (PA); a Romaria dos Ma¡rtires, em Ribeira£o Cascalheira (MT), sede da Galeria dos Ma¡rtires da Amanãrica Latina; e a Assembleia Xukuru do Ororuba¡, em Pernambuco.

Rodrigues conta que, ao refazer o caminho dos ma¡rtires e encantados entre os locais dos assassinatos e dos sepultamentos, observou a ação de sistemas simba³licos, como afirmações de que os lideres mortos “continuam vivos e presentes na caminhada”, foram “plantados como sementes” ou que seu “sangue fortalece a luta pela terra”. “O ato narrativo e a caminhada sugerem a modificação do estatuto da vida e da morte ao recolocar o lider martirizado e encantado no centro do enfrentamento cotidiano por direitos humanos, a  terra, a¡gua, floresta e vida. A partir de narrativas orais (cantos, falas) e visuais (fotografias, objetos pessoais, painanãis, camisetas) estes grupos trazem a  tona a dimensão criativa e reivindicativa destas romarias e assembleias”.

Dados alarmantes

Edimilson Rodrigues apresenta estata­sticas do Cimi e da CPT, que considera cada vez mais alarmantes, sobre enfrentamentos e mortes na Amaza´nia e Nordeste envolvendo castanheiros, seringueiros, garimpeiros, posseiros e inda­genas. “No período de 1985 e 2017, a CPT registrou 1.438 casos de conflitos, com 1.904 assassinatos; desse total, apenas 113 casos foram julgados, com a condenação de 31 mandantes e 94 executores. Nesses 32 anos, o estado do Para¡ élider nopaís, com 466 casos e 702 vitimas, seguido por Maranha£o (168 vitimas em 157 casos) e Ronda´nia (147 assassinados em 102 casos). Va¡rios desses atores denunciaram apropriações ilegais, grilagem e apoiaram ou lideraram mobilizações pelo direito de permanaªncia e retomada de territa³rios tradicionalmente ocupados.”

O autor da pesquisa ressalta que as cerima´nias estãoarticuladas com setores mais progressistas da Igreja Cata³lica Romana, desde que missiona¡rios, padres, freiras e leigos foram atuar nestas zonas de conflito, nas décadas de 1970 e 80, para a formação de liderana§as e de Comunidades Eclesiais de Base, chamando a vizinhana§a rural para cursos ba­blicos e celebrações de missa, e também para oferecer formação pola­tica e de educação popular. “Esta formação, naquele momento, estava baseada primeiramente na proposta pa³s-Conca­lio Vaticano II de uma nova igreja, a ‘igreja do povo de Deus’, como narram esta transformação em seu interior.”

Esta transformação na igreja, segundo Rodrigues, teve forte eco na Amanãrica Latina, por ser um continente marcado por violência e pobreza, genoca­dios inda­genas e grande período de escravatura de populações negras. “Tem-se então na década de 70 a articulação de religiosos para o trabalho com a população do campo, seja camponesa ou inda­gena. Por outro lado, religiosos estrangeiros migraram para o Brasil (pude acompanhar franceses e norte-americanos em campo), motivados pela proposta de uma nova igreja. Convanãm lembrar que era um período de ditadura militar, de violência de Estado, com um processo de violação de direitos fundamentais e da dignidade de populações vitimadas pela fome.”

O antropa³logo acrescenta que neste contexto comea§a a aparecer a ideia de marta­rio e romaria dos ma¡rtires da terra, a partir do assassinato do padre Joa£o Bosco Penido Burnier, confundido com o bispo Dom Pedro Casalda¡liga, dentro de uma delegacia, em 1976. “O crime teve grande repercussão, seguida da mobilização da igreja e da população de Ribeira£o Cascalheira numa caminhada como ato de protesto. O movimento seguiu pelas décadas de 80 e 90, mesmo no período de redemocratização, já que áreas da Amaza´nia e de Pernambuco continuam sendo palco de muita violência de Estado e de uma pola­tica de espoliação de territa³rios de comunidades tradicionais.”  

Na visão de Rodrigues, a adesão a s caminhadas, inicialmente local, foi se ampliando com a participação de movimentos como das Comissaµes de Direitos Humanos, de Justia§a e Paz, CNBB e Teologia da Libertação, sendo que o assassinato de missiona¡rios ou religiosos estrangeiros, como de Dorothy Stang, trouxe contornos de denaºncia internacional. “A religiosa norte-americana trabalhou em Anapu desde quando o munica­pio era vila, mediando direitos e demandas por educação e saúde ba¡sicas, e na formação de professores. Seu assassinato resultou na Romaria da Floresta, com pessoas que conviveram e foram atendidas por ela.”

Relação afetuosa

O autor da tese vaª, portanto, uma relação afetuosa da população com as liderana§as mortas, em que as romarias oferecem a possibilidade de se reunir e partilhar o sofrimento e a saudade, além do aspecto pola­tico de denunciar o assassinato e outros contextos de violência. “Na minha perspectiva, éuma adesão em rede, de solidariedade entre camponeses e inda­genas de áreas distintas. a‰ o que tento demonstrar com mapas indicando onde a romaria acontece e de onde as pessoas vieram. Na Romaria da Floresta, que acompanhei em 2016 e 17, o número de caminhantes mais que dobrou de um ano para o outro; na Assembleia Xukuru do Ororuba¡, quase que triplicou.”

Edimilson Rodrigues esclarece que cada cerima´nia tem sua especificidade, mas de modo geral envolvem oficinas de educação popular, formação pola­tica e falas de liderana§as sobre demandas de luta. “Além da homenagem a liderana§as assassinadas, as cerima´nias reaºnem liderana§as ameaa§adas de morte, para que a ameaça vire denaºncia naquele lugar. Os rituais também trazem momentos de ludicidade, com músicas, danças e encenações teatrais. Contudo, o aspecto mais importante de todas as cerima´nias éo ato de caminhar, entre a sepultura atéo lugar onde o lider foi assassinado.”

No caso do padre Joa£o Bosco, os peregrinos caminham do centro de Ribeira£o Cascalheira atéa delegacia onde ele foi baleado na nuca por um policial (o prédio acabou derrubado e transformado no Memorial do Marta­rio); a caminhada por Xica£o Xukuru se da¡ da sepultura na Aldeia Pedra D’agua atéa casa de sua irmã, local do assassinato; por Dorothy Stang, o percurso éde 55 quila´metros, do Centro de Formação Pastoral Sa£o Rafael atéa área de assentamento PDS Esperana§a, em Anapu, onde foi morta osuma particularidade éque háum taºmulo também nesse local. “Nos croquis da tese, os locais do assassinato e do sepultamento ose o percurso osaparecem como fortes marcadores, como um anticaminho da morte ou hipercaminho da vida. As narrativas tratam de vida, de sangue que fortalece, de semente que brota, e que se multiplicam nos caminhantes, virando uma nova luta.”

Contexto atual

Sobre o atual contexto dos conflitos por terras no Brasil, o autor da pesquisa atenta para dois marcadores importantes no período de redemocratização, que são de proteção e ao mesmo tempo de desproteção das liderana§as camponesas e inda­genas pelo Estado. “Nos anos 90 e 2000 temos uma lista de liderana§as protegidas por meio de órgãos como as Secretarias Especiais de Direitos Humanos e da Mulher, do Ministanãrio da Justia§a. Com o impeachment de Dilma Rousseff e a ascensão de Temer como presidente, as liderana§as passam a fazer parte de uma lista de ‘marcados para morrer’ que circula entre fazendeiros e oligarquias das áreas de conflito; os órgãos de proteção comea§am a se afastar e se tem um processo de criminalização dos movimentos e de suas liderana§as.”

O antropa³logo alerta para as nota­cias revelando um aumento do número de camponeses e inda­genas assassinados, ameaa§ados e expropriados dos territa³rios tradicionais nos últimos dois governos. Dados de 2015 divulgados pela CPT e o Comitaª Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (CBDDH) apontam 50 mortes, 114 pessoas ameaa§adas e 50 tentativas de homica­dio em áreas de conflitos de terra, sendo que 90% destes casos ocorreram em Ronda´nia, Para¡ e Maranha£o; em 2016, os conflitos continuaram concentrados na Amaza´nia e Nordeste, somando 58 dos 69 assassinatos registrados.

Entre mara§o e maio de 2017, enquanto o pesquisador acompanhava os preparativos da Romaria Padre Josimo e da Assembleia Xukuru, grandes conflitos eclodiram em áreas próximas: no dia 20 de abril, em Colniza (MT), 10 homens foram assassinados por um grupo de pistoleiros e diversas pessoas feridas e outras desaparecidas; em 30 de abril, em Viana (MA), um grupo armado atacou uma aldeia do povo Gamela e feriu aproximadamente 13 pessoas; Ka¡tia Martins, presidente de uma associação de agricultores familiares na divisa de Castanhal e Sa£o Domingos do Capim (sudeste do Para¡), foi assassinada com cinco tiros numa embosca em 04 de maio; em 24 do mesmo maªs, nove homens e uma mulher foram mortos num acampamento em Pau D’Arco, também no sudeste paraense.

Edimilson Rodrigues atribui tanta violência também a  omissão do Estado, que deixou de demarcar terras inda­genas e de conceder ta­tulos de assentamento para camponeses acampados ao longo de estradas. “Assim como nas décadas de 60, 70 e 80, a violência de Estado se repete agora, apoiando, inclusive com aparato policial, intimidações e assassinatos produzidos por oligarquias locais, fazendeiros, empresas de extração de madeira e minanãrio, que invadem terras tradicionais, enquanto o governo sucateia os órgãos que protegiam essas populações. As queimadas aparecem nesse contexto, como ‘incidentes’ devidos ao clima, a chamas trazidas pelo vento.”

 

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