Instituições têm sido alvo, no Brasil e no exterior, de governos e de grupos de extrema direita

Manifestação em defesa da ciência, da educação e da autonomia universitária, em outubro de 2019, no Ciclo Básico da Unicamp
Instituições têm sido alvo, no Brasil e no exterior, de governos e de grupos de extrema direita
Espaços de produção e disseminação do conhecimento científico – e, muitas vezes, de depuração de processos civilizatórios –, as universidades têm se transformado em alvos preferenciais de governos autoritários e de extremistas de direita, no Brasil e no mundo.
Cortes orçamentários abruptos, ataques à autonomia ou campanhas de descredibilização vêm ocorrendo em diversos países com o objetivo de enfraquecer a pesquisa e restringir a liberdade de expressão, em um movimento que especialistas classificam como de “ódio ao conhecimento”.
Em um de seus primeiros atos como presidente reeleito, Donald Trump, por exemplo, suspendeu repasses à Universidade Columbia por uma suposta cumplicidade dessa instituição com protestos de estudantes contra a atuação de Israel na Faixa de Gaza. Trump também anunciou o congelamento de U$ 2,2 bilhões em subsídios à Universidade de Harvard, cortando o apoio a programas da instituição voltados à diversidade, equidade e inclusão.
No Brasil não se vê, neste momento, ações governamentais com esse tipo de direcionamento, mas um estudo divulgado no ano passado pelos professores Joviles Vitório Trevisol e Ricardo Garmus, da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), mostra que, durante o governo do presidente Jair Bolsonaro (2019-2022), a autonomia universitária viu-se duramente atacada.
O estudo evidenciou, entre outros aspectos, que essa nova direita brasileira agiu no sentido de desgastar a imagem das universidades e destruir as condições institucionais para a atuação profissional de docentes, servidores técnico-administrativos e estudantes.
Além disso, esse grupo mobilizou-se a fim de alterar os marcos regulatórios referentes à escolha e nomeação de dirigentes e esvaziar a autonomia financeira e patrimonial dessas instituições. “No âmago dos diferentes ataques, estava um projeto político claramente autoritário”, conclui o estudo.
Os ataques, no entanto, não se restringiram, no Brasil, à alteração de marcos legais. Essas ações transbordaram de modo a atingir outros níveis. Ameaças físicas a pessoas ou atos de depredação e vandalismo têm se tornado tão frequentes quanto violentos.
Na madrugada de 17 para 18 de abril, por exemplo, as portas da biblioteca e do laboratório do Departamento de Ciências da Informação da Universidade Federal do Ceará (UFC) foram arrombadas e os espaços, invadidos por vândalos. Estantes que abrigavam mais de 2 mil livros foram derrubadas, vidros, quebrados e cadeiras, reviradas.
Dez dias antes do ataque no Ceará, um ato convocado por extremistas de direita estimulava a prática de atos violentos contra estudantes da Universidade de Brasília (UnB). Chamado de “Make UnB free again” (façamos da UnB um lugar de novo livre) – uma alusão ao slogan “Make America Great Again” (façamos dos Estados Unidos um lugar de novo livre), do presidente estadunidense –, o grupo de supostos manifestantes chegou a se concentrar em frente à Biblioteca Central do Campus Darcy Ribeiro, na Asa Norte. O ato, divulgado em grupos de WhatsApp, defendia agredir estudantes, com palavras de ordem como “trocar porrada com os vermes” e “porrada nos comunistas”, segundo relato da Agência Brasil.
Dias antes, em 14 de março, o Centro Acadêmico de Artes Visuais (Cavis) da mesma universidade sofreu ataques realizados por estudantes bolsonaristas, que os chamaram de “ações de limpeza da UnB”.
A Unicamp sofreu dois ataques no mês de março – nos dias 24 e 27 –, em ações de cunho racista e preconceituoso. Os agressores deixaram mensagens como “Unicamp destruída” e “Estamos limpando a Unicamp”, além de símbolos neonazistas.
Durante o evento Virada Trans da Unicamp, o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) acabou invadido pelo vereador Vinicius Oliveira (Cidadania), em uma suposta ação de fiscalização. O representante da extrema direita vandalizou murais, rasgou cartazes e questionou ações afirmativas relativas às questões de gênero. Oliveira gravou tudo em vídeo e postou nas redes sociais. Em um outro momento, chegou a ameaçar de prisão estudantes que reagiram à ação.
“Esses não são um ataque ao IFCH. Ocorreram no IFCH, mas são um ataque a toda a universidade, ao pensamento, à ciência. E não é algo que está acontecendo apenas nas universidades brasileiras, mas tem a ver com o crescimento da extrema direita, da intolerância, em escala internacional”, afirmou a diretora do instituto, professora Andréia Galvão, em um manifesto divulgado pela Associação dos Docentes da Unicamp (Adunicamp).

A deputada Ana Perugini: “pânico moral” como estratégia
A atividade espetaculosa do vereador, no entanto, fazia parte de uma estratégia, já que no dia 1º de abril o Conselho Universitário (Consu) votaria a criação de cotas para travestis, pessoas trans e pessoas não binárias. A proposta viu-se aprovada por unanimidade e, no final do mesmo mês de abril, a Câmara Municipal de Campinas abriu um processo de cassação contra o vereador, por uma outra ação considerada irregular.
Segundo a denúncia que gerou o processo para cassá-lo, o vereador invadiu o Hospital Municipal Mário Gatti, em Campinas, gravou vídeos e expôs nas redes sociais servidores e pacientes que estavam no pronto-socorro.
O parlamentar enfrenta agora acusações de desrespeitar as pessoas presentes e de sugerir que profissionais do hospital recebem salário sem trabalhar. Oliveira também responde por ter supostamente acessado as fichas de atendimento de pacientes de forma irregular, em um comportamento que, segundo a deputada estadual Angela Perugini (PT), pode estar relacionado a uma nova categoria de crimes.
De acordo com Perugini, esse tipo de ação da extrema direita – abordagens violentas e a exibição de vídeos sensacionalistas e mentirosos – pretende espalhar o que chamou de “pânico moral”.
“Em São José dos Campos [SP], uma candidata a vereadora – uma mulher trans – foi atacada de forma repetida por um adversário durante a campanha eleitoral. O adversário gravou um vídeo no qual pregava a prática de atrocidades contra a vida dela, incluindo atos de violência física. E o pior: o vídeo viralizou, atingindo seu objetivo, que era exclusivamente o de provocar pânico moral”, resumiu.
Essa nova forma de fazer política, continua a deputada, gerou também o que denomina de “homicídio da honra” – quando se divulgam inverdades sobre alguém nas redes sociais sem que o outro possa sequer se defender.
Perugini diz haver, ainda, o “feminicídio político” – quando a violência política é deliberadamente direcionada contra uma mulher. “A política tem como objetivo cuidar das pessoas, mas, hoje, ela tem mais criado medo por conta deste novo tempo em que estamos vivendo.”
Na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), há três iniciativas que tentam suspender os efeitos da implantação pela Unicamp das cotas trans.

O cientista político Luis Felipe Miguel: classe média ressentida
O ódio
Autor de livros sobre teoria política, democracia e política brasileira, o professor da UnB Luis Felipe Miguel vem se esforçando, nos últimos anos, para entender as raízes do “ódio ao conhecimento”.
O especialista reconhece se tratar de um fenômeno complexo, multifatorial, porém acredita ter chegado a algumas pistas. Miguel diz ser perceptível, nessa nova extrema direita global, o ódio a duas coisas que a universidade representa. A primeira, o ódio ao conhecimento.
“Existe um esforço para bloquear setores inteiros da pesquisa científica. A gente vive hoje uma batalha em relação, por exemplo, a questões que vão da vacinação ao aquecimento global. Existe um esforço – e interesses – se mobilizando para impedir a pesquisa nessas e em outras áreas”, afirmou.
A questão, segundo o pesquisador, gira em torno de a universidade ter sido construída, historicamente, como um espaço de autonomia e, justamente por isso, essa instituição parece ameaçadora. A universidade então passou a sofrer ataques constantes, ou da parte das forças do mercado ou da parte do poder político. Na opinião do docente, uma das formas de pressão desses setores consiste em contrapor a universidade pública e os planos de ascensão da classe média.
Miguel avalia que a ideia de desqualificação da universidade encontra eco na classe média brasileira por uma série de motivos – um deles, o crescente processo de democratização no acesso.
“A democratização é problemática, insuficiente ainda, mas o fato é que a universidade deixou de ser um espaço exclusivo para os filhos de determinados grupos sociais”, disse. E isso trouxe consequências.
“Ficou um ressentimento – ou mesmo despeito – dessa classe média que percebeu a ocupação daquele espaço que sentia exclusivo por filhos de outros estratos sociais.”
Miguel cita mais um agravante. “A classe média empobrecida não consegue mais deixar herança ou patrimônio para seus filhos. O legado possível é o diploma, que agora deixou também de ser algo exclusivo. Hoje, o filho da classe média precisa dividir vaga com os pobres, pretos, pardos, periféricos”, constata.
O segundo fator a explicar o repúdio à universidade, defende o professor, diz respeito ao mercado de trabalho. Esse mercado passa por importantes mudanças, entre as quais o fato de muitos jovens acreditarem poder ganhar a vida sem estudar, quase sem nenhum esforço. O professor lembra o crescimento exponencial, por exemplo, das criptomoedas ou do número de influencers. “É possível que isso nos traga problemas sérios em um futuro próximo, pois não teremos mais médicos, engenheiros ou professores em quantidade suficiente”, alerta.
O cientista político cita um terceiro elemento que explicaria a aversão da classe média à universidade. Segundo afirmou, tem crescido no país o avivamento de um certo sentimento religioso – em um processo progressivo de dessecularização.
“Esse discurso faz com que a universidade seja vista como um espaço de ameaça, porque é próprio da universidade estimular um tipo de pensamento crítico que vai questionar algumas verdades vistas como inquestionáveis. A escola, portanto, é vista como algo que está dissolvendo certezas que deveriam ser imutáveis”, explica.

Meirelles, conselheiro da Fapesp: sair da bolha e construir maioria
Nova elite
Reitor da Unicamp até meados de abril deste ano e hoje membro do Conselho Superior da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), o professor Antonio José de Almeida Meirelles avalia que a universidade “gera um embrião de transformação” e que isso pode estar por trás dos movimentos anticiência.
“O que o Trump está fazendo com as universidades estadunidenses é destruir as instituições que formam pessoas de cabeça aberta. E mais: pessoas de cabeça aberta com alta competência técnica. E essas pessoas podem fazer uma diferença brutal no mundo aí fora”, avalia.
Meirelles relacionou as políticas de inclusão implantadas na Unicamp nos últimos anos e fez um balanço otimista sobre seus resultados. “Estamos deixando de ser elitistas para formar uma nova elite.”
O conselheiro da Fapesp, no entanto, fez um alerta, dizendo que as pessoas com a pretensão de mudar o mundo no qual vivem precisam ser inclusivas, “e isso implica discutir com os que pensam de forma diferente”.
Segundo o ex-reitor, precisamos trabalhar de modo a construir maiorias. “Nós não mudaremos o mundo se não formos capazes de sair de nossa bolha.”
Meirelles reconhece que as instituições públicas de ensino superior devem buscar formas de proteção contra as fake news e outras formas de manipulação de informações – como por meio da formação de uma rede para a divulgação de dados confiáveis. Mas afirma que só isso não basta.
“A nossa grande defesa não é apenas criar uma rede de proteção ou de combate às fake news. Aquilo de que precisamos é mostrar a importância do conhecimento para a sociedade. Durante a pandemia, por exemplo, as pessoas sentiram a importância das universidades e do serviço público. Por isso, é preciso mostrar de forma concreta o papel que as universidades desempenham na transformação da sociedade.”

O vereador Wagner Romão: repetição do modus operandi
Civilidade
Professor do Departamento de Ciência Política do IFCH, o vereador de Campinas Wagner Romão (PT) lembra que a extrema direita tem se apresentado com muita força no Brasil e no resto do mundo desde a década passada.
“Há uma mudança na forma de atuação deles, no modo como conseguem manipular a tecnologia, a internet, as redes sociais”, avalia o professor. “Mas o ataque às universidades é o modus operandi deles. Isso ocorre desde o início do fascismo, do nazismo. O que a gente tem visto agora nesses grupos é a repetição disso.”
O professor, no entanto, afirmou ser um erro fazer uma contraposição radical entre a extrema direita e a esquerda. “Esse é o jogo da extrema direita”, disse. “Há um campo democrático muito consistente que está no meio disso tudo – aqueles que têm uma visão democrática de sociedade. Precisamos, portanto, trazer esses elementos para esse campo [da defesa da democracia] e nos reafirmarmos como democratas.”
Romão avalia que a prática da violência como arma política sofre repúdio por parte de setores que não são necessariamente de esquerda. “Temos que ser hábeis para separar aqueles que são nossos adversários ideológicos daqueles que são absolutamente antipolítica. Trata-se de uma luta pela democracia, pela restauração dos padrões mínimos de civilidade”, acredita.
Manifestações
Preocupada com ataques do tipo, a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) divulgou uma nota de solidariedade às universidades públicas alvos de ameaças, ações de difamação, intimidações e atos violentos, citando com destaque os episódios recentes ocorridos na UnB e na Unicamp.
“A Andifes manifesta seu total apoio aos reitores e à comunidade universitária e às ações adotadas com responsabilidade, diálogo e compromisso em relação ao bem-estar coletivo. Rejeitamos qualquer forma de violência, intimidação ou ameaça que comprometa a integridade física ou emocional de estudantes, docentes, técnicos, terceirizados e visitantes”, diz a nota.
“Diante dos acontecimentos, é imperativo reafirmar nosso compromisso com a defesa da liberdade acadêmica, da pluralidade de ideias e do respeito às diferenças”, afirma trecho da moção elaborada pela Adunicamp e aprovada por unanimidade no Consu em repúdio aos ataques.
Nos Estados Unidos, a reação das instituições de ensino às medidas de Trump demorou alguns dias para ocorrer, mas ocorreu. Na penúltima semana de abril, mais de cem universidades estadunidenses e instituições de pesquisa assinaram um manifesto condenando o que chamaram de “interferência política” do presidente no sistema educacional.
A carta conjunta veio a público um dia depois de Harvard ter recorrido à Justiça, processando o presidente dos Estados Unidos. “Falamos em uma só voz contra a intervenção governamental sem precedentes e a interferência política que coloca em risco o ensino superior estadunidense”, afirma a carta.