Historiadora do Museu Paulista apresenta pesquisas sobre as dinâmicas socioeconômicas e transformações na cidade. Publicação tem download gratuito

Rua do Ouvidor, esquina com a Rua São Paulo, fotografada por Militão de Azevedo em 1862/63 - Foto: Acervo Museu Paulista - Reprodução: Hélio Nobre/José Rosael
Uma obra em que o monumento, o museu e o livro são vetores da memória, espaços capazes de inventar tradições e construir passados a serem compartilhados socialmente. Com essa proposta, o livro Dimensões Materiais e Memoriais do Passado Colonial Paulista, de Maria Aparecida de Menezes Borrego, já está disponível para download gratuito no Portal de Livros Abertos da USP, neste link.
Os leitores terão a oportunidade de acompanhar a história da capital paulista com as dinâmicas socioeconômicas e transformações ocorridas na cidade e no oeste da capitania no decurso do século 18. Vão observar os detalhes das pesquisas da historiadora, professora e vice-diretora do Museu Paulista da USP. “Os capítulos apresentados correspondem às pesquisas realizadas durante minha trajetória acadêmica desde 2007, primeiramente como pós-doutoranda no Museu Paulista e, depois, como docente da instituição e supervisora técnico-científica do Museu Republicano Convenção de Itu”, explica Maria Aparecida Borrego. “Ao longo desse período, meus interesses dirigiram-se, a um só tempo, ao estudo das dinâmicas socioeconômicas ocorridas na cidade de São Paulo e no oeste da capitania no decurso do século 18 e aos processos de recriação desse passado colonial em diversos suportes nos séculos seguintes.”
Um trabalho desenvolvido no decorrer de 15 anos, que comprova a tese da pesquisadora de que os comerciantes desempenharam um papel ativo no desenvolvimento da capital paulista e na configuração territorial da América portuguesa no decorrer do Setecentos. “Uma atuação obscurecida, sobretudo na primeira metade do século 20, por meio de práticas historiográficas celebrativas que insistiam em associá-los aos bandeirantes”, observa Borrego.
Os estabelecimentos comerciais e as atividades econômicas provocaram mudanças na paisagem física e humana da cidade de São Paulo e suas cercanias”
“Atraídos pelas descobertas auríferas em Minas Gerais, em Cuiabá e em Goiás, milhares de reinóis atravessaram o Atlântico, fixaram residência e se envolveram em negócios em várias localidades da capitania de São Paulo”, destaca a historiadora. “Os comerciantes atuaram em redes de abastecimento e de concessão de crédito que articulavam o centro-sul da América portuguesa e a metrópole, intensificadas pelas políticas de incentivo às exportações agrícolas iniciadas no governo de Morgado de Mateus (1765-1775) e pela vinda da família real para o Rio de Janeiro em 1808. Os estabelecimentos comerciais e as atividades econômicas provocaram mudanças na paisagem física e humana da cidade de São Paulo e suas cercanias. Na década de 1760, o centro da capital era formado por cerca de dez ruas, articuladas por becos e travessas, pelos mais destacados templos e seus largos e pelos pátios do Colégio e da Sé.”
São Paulo setecentista
A pesquisadora afirma que “decorrido quase meio século, segundo dados da décima urbana de 1809, a estreita colina delimitada pelos rios Tamanduateí e Anhangabaú, com pouquíssimas ramificações na várzea, compunha-se de um total de 34 ruas, um beco e quatro largos, sendo os comerciantes os detentores dos maiores patrimônios imobiliários da cidade”. Observa: “No intervalo temporal compreendido entre 1765 e 1820, é possível, portanto, observar o crescimento espacial do centro da urbe e a contribuição significativa do grupo mercantil para produção de boa parte do tecido urbano de São Paulo, que teve sua população duplicada no período, passando de 28 mil para 62 mil habitantes. Longe da imagem de uma cidade isolada, pobre e decadente, as fontes têm evidenciado que a São Paulo setecentista estava conectada, por meio do comércio, a outras regiões coloniais desde as primeiras décadas da centúria, entre as quais as minas de Cuiabá e as de Mato Grosso, acessadas através das vias fluviais”. Borrego observa: “O livro amplia as transformações para a região de Mato Grosso, que fazia parte da capitania de São Paulo na primeira metade do século 18 pelo caminho das monções”.
Cadeira de sola, em madeira, couro e metal, do século 17; mesa bufete, em madeira e metal, do século 18; arca, em madeira e metal (0,53 m x 0,85 m x 0,47 m), do século 18 - Acervo do Museu Paulista - Foto: Helio Nobre/José Rosael
O livro é apresentado em 410 páginas cuidadosamente ilustradas. A autora Maria Aparecida de Menezes Borrego explica: “Para dar conta de desenvolver a ideia contida no livro, organizei a obra em quatro partes e nove capítulos”.
A primeira parte, “Comércio e domesticidade em São Paulo colonial”, está dividida em três capítulos: “Dinâmica mercantil e espaço doméstico”, “Artefatos e práticas sociais em torno das refeições” e o capítulo três, intitulado “Das caixas da casa colonial às arcas do Museu Paulista”.
"Para dar conta de desenvolver a ideia contida no livro, organizei a obra em quatro partes e nove capítulos”
A segunda parte, “Negócios e espacialidade no interior da capitania de São Paulo”, é composta pelos capítulos quatro “Atividades comerciais e configuração territorial” e cinco, com o tema “Os usos dos livros em demandas coloniais“.
A terceira parte, “Representações visuais sobre o passado paulista”, apresenta os capítulos seis, “Um monumento para as monções”, e o sete, com o tema “As viagens fluviais em exposição”. A quarta e última parte, “Narrativas monçoeiras e cultura escrita”, é formada pelo capítulo 8, “Afonso Taunay e a divulgação de relatos monçoeiros”, e o capítulo 9, “Uma relação de viagem em manuscritos e impressos”.

Planta da cidade de São Paulo (1807) - Acervo Museu Paulista da USP - Foto: Hélio Nobre/José Rosael
Tripla perspectiva
Para maior compreensão, Borrego faz uma síntese para os leitores. “Nas duas primeiras partes, analiso o contexto socioeconômico da cidade de São Paulo no século 18 e início do 19 e os ambientes domésticos urbanos conformados pela atuação dos comerciantes; em seguida, acompanho seus negócios até as minas de Cuiabá e Mato Grosso, por meio das monções”, pontua. “Nas duas últimas, procuro compreender como as atividades dos agentes mercantis nesse contexto foram obscurecidas, durante boa parte do século 20, em razão da valorização do bandeirante como antepassado comum dos paulistas em vários suportes de memória: monumentos, exposições e livros.”
A trajetória no Museu Paulista como pesquisadora, docente e curadora estimulou, segundo reconhece Borrego, a sua visão sobre o ofício do historiador e foi responsável pela adoção da cultura material, visual e escrita como plataformas de observação das ações humanas do passado e do presente. “Essa tripla perspectiva acabou por articular tanto o estudo sobre as práticas sociais vivenciadas pelas populações em diferentes conjunturas históricas, como a análise sobre a produção de memórias acerca do passado paulista distante do mundo mercantil e de seus agentes.”
A historiadora destaca: “Para pensar sobre a dimensão material da realidade social de São Paulo setecentista a partir do espaço doméstico, muito me vali das pesquisas de fôlego desenvolvidas por Paulo César Garcez Marins e Vânia Carneiro de Carvalho, voltadas às moradias paulistas e à cultura material no século 19 e início do século 20”. E ressalta: “O Museu Paulista, como lugar social, sede de investigações e pesquisas, foi responsável pela guinada de minhas próprias abordagens históricas sobre as realidades sociais, procurando, a partir de então, perceber as ações humanas intermediadas pelos espaços e artefatos”