Congadas e Reinados existem há mais de 300 anos, mas só viraram patrimônio do Brasil agora
Registrar Congadas como patrimônio pode até ser um apoio, mas elas só continuam existindo graças às próprias comunidades, dizem especialistas da USP e do Iphan

Caboclos de Nossa Senhora do Rosário do Serro, comunidade reinadeira da cidade do Serro, em Minas Gerais – Foto: Reprodução/Biblioteca Cultura Viva
Reinados, Congadas, Moçambiques, Congos, Catopés, Vilões, Caboclos, Cavaleiros. Vários são os nomes dados aos grupos que fazem cortejos religiosos que misturam tradições africanas e católicas no Brasil. Neste ano, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) registrou os Saberes do Rosário: Reinados, Congados e Congadas como patrimônio cultural brasileiro. Mas os registros desses eventos no País existem desde o século 17. Especialistas da USP e do Iphan atribuem essa sobrevivência às próprias comunidades e à capacidade delas de misturar o tradicional com o novo.
Congadas são manifestações espirituais e festeiras que vieram de tradições africanas que chegaram ao Brasil e a outros países com o tráfico escravista. O que as une é a devoção a santos católicos negros, o culto a ancestrais e a coroação de reis e rainhas. Os festejos têm origem nas antigas Irmandades Negras, formadas principalmente por centro-africanos do Congo e de partes de Angola e Moçambique, que buscavam manter suas tradições mesmo com a imposição da religião católica pelos senhores de engenho.
Mais presentes no interior, os cortejos têm o objetivo de equilibrar os mundos espiritual e terreno das comunidades a partir da dança e da música, que representam histórias do passado. William Coelho é professor de Regência Coral na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e realizou um mestrado em 2016 sobre a Congada da cidade de Cunha, em São Paulo. “Quando essas manifestações populares, essas tradições, se encontram abertas ao que está sendo imposto ou proposto por fora, quando isso é absorvido e transformado à sua maneira, as chances do grupo sobreviver são maiores”, diz o docente.
Corina Moreira é cientista social do Iphan desde 2006 e uma das responsáveis pelo registro. Segundo ela, a definição das celebrações como Saberes do Rosário foi escolhida porque as Congadas definem um modo de viver que é passado de geração em geração. William diz que os festejos são mais do que saberes, pois suas formas de funcionar estão intimamente ligadas à religião. Já Amanda dos Santos, doutoranda na Faculdade de Educação (FE) da USP, concorda com a escolha. Ela pesquisa a comunidade do Reinado do Alto da Cruz, em Ouro Preto, Minas Gerais.
“[Nas Congadas], existe uma experiência de compreensão do mundo em que tudo é sagrado. Essa percepção de vida é como eles enxergam o cotidiano. As pessoas não fazem o reinado e são outra coisa. Você é reinadeiro o tempo inteiro”.
Amanda dos Santos, doutoranda na FE

Congada no município de Santana de Parnaíba, em São Paulo, em 1925 – Foto: Afonso d’Escragnolle Taunay/Wikipédia
Quase 19 anos de pesquisas e burocracias
O pedido de registro das Congadas no Iphan veio da Prefeitura de Uberlândia, em 2008, e foi resultado de uma articulação com associações civis de congadeiros. Corina diz que o processo foi um dos mais demorados, se não o mais, que ela já viu no instituto. A cientista social atribui esse tempo às burocracias, ao fato de que o registro de patrimônio imaterial começou apenas em 2000 e ao trabalho de realizar pesquisas em muitos territórios.
Antes de passar pela Superintendência de Minas, a Câmara Técnica de Patrimônio Imaterial recomendou que as análises para o processo, iniciadas em 2006, se estendessem para além do estado. “Apesar das pesquisas terem ficado estritas a Goiás, Minas Gerais e São Paulo, foram identificados outros estados que também tem a prática, como Rio Grande do Sul, Bahia, e no Norte também. É uma prática que tem abrangência nacional, mas não tinha jeito de fazer a pesquisa com essa abrangência. Os três estados ficam como representativos dessa diversidade”, diz a socióloga.
Em 2023, Corina viajou para São Paulo para realizar as finalizações burocráticas do processo e o dossiê. As pesquisas também resultaram em um documentário. Ela enfatiza que o registro “não significa que o que não é reconhecido pelo Iphan não seja patrimônio, é só que se inaugura uma política pública específica para o tratamento dele e, principalmente, no sentido de divulgar, fomentar essa prática e de garantir que ela continue existindo”.
Mitos que permanecem
Por mais que suas pesquisas tenham sido realizadas em lugares diferentes, William e Amanda encontraram características parecidas entre os reinadeiros. Eles explicam que cada comunidade faz parte de uma guarda, que são como especialidades dentro das tradições e representam grupos sociais do período colonial. Existem, segundo William, oito guardas: Congos, Moçambiques, Marujos, Catopés, Caboclos, Cavaleiros, Vilões e Candombe, guarda misteriosa e que rege todas as outras.
As festas e as guardas são definidas a partir dos mitos, ligados aos santos de devoção das comunidades. Esses mitos não buscam contar uma história cientificamente comprovada, mas explicam de onde veio a comunidade, seus valores e como ela enxerga o mundo. Uma das santas mais citadas é a Nossa Senhora do Rosário, presente em Ouro Preto, de acordo com Amanda.
Segundo a pesquisadora, o mito de Nossa Senhora do Rosário remontaria ao período colonial. Nessa história, uma imagem de Nossa Senhora do Rosário aparece no mar, longe da costa. Os senhores brancos tentam tirá-la do mar à força, mas não conseguem. Então, um grupo de negros escravizados se junta e pede aos senhores para tocar música. A muito custo, os senhores permitem. A imagem anda um pouco. Aparece um grupo de indígenas, os caboclos, e começa a tocar. A imagem anda mais um pouco.

Congada na Igreja Santa Efigênia Barbacena, Minas Gerais, em 2024. A imagem no topo é de Nossa Senhora do Rosário – Foto: Yan Ferreira S/Wikimedia
Aparecem os candombeiros e começam a tocar. Ela anda mais um pouco. Até que vem para a areia. Os senhores pegam a imagem e a levam para a igreja deles. No outro dia, ela não está mais lá: havia voltado ao mar. A saga das danças começa de novo, até a imagem voltar à areia. Os africanos, então, pedem para que Nossa Senhora fique na capelinha que fizeram para ela. Com muito custo, os senhores deixam. A santa fica guardada em cima de um tambor de Candombe.
A Congada de São Benedito de Cunha, da guarda Moçambique, é diferente. Primeiro, porque é devota ao Santo Benedito. Segundo, por conta do mito que a rege. William conta que “em geral, São Benedito está associado a um personagem italiano, de acordo com a tradição católica, que roubava comida dos senhores para alimentar os escravizados”. Mas, em Cunha, se diz que o santo organizou uma Congada para salvar Jesus de pessoas que haviam roubado ele de seus pais.
Corina e os pesquisadores da USP falam da natureza cíclica dos Reinados, Congados e Congadas. As festas chamam turistas e fotógrafos às cidades, mas o impacto delas nas comunidades onde acontecem dura mais do que apenas os dias de cortejo. E suas origens negras e de valorização de classes sociais mais baixas seguem nas histórias dos festeiros há mais de 300 anos.
“Por isso é que nós bate o Candome, brincano, igual desafio. Porque o branco desafia o nego e parece que ele ganha. Mas ganha é cá os nego véio.”
Mestre Geraldo Arthur Camilo, da Irmandade de Nossa Senhora dos Arturos, em Minas Gerais. Trecho retirado do livro Ouro Preto da palavra : narrativas de preceito do congado em Minas Gerais, de Edmilson Pereira e Núbia Gomes