Humanidades

Como são os sons da cidade na quarentena?
Pesquisa da USP mapeia as transformaa§aµes na paisagem sonora durante o isolamento social por conta da pandemia de covid-19
Por Claudia Costa - 29/04/2020

Doma­nio paºblico
“O som éum marcador social relevante da distribuição econa´mica espacial no contexto de
confinamento que estamos vivendo”, afirma a professora Giselle Beiguelman, que lidera
pesquisa sobre sons durante a pandemia

O barulho da multida£o e das baladas noturnas na regia£o central da cidade de Sa£o Paulo deram lugar ao silaªncio. Ali se pode ouvir o canto dos pa¡ssaros e atédos vizinhos, ao contra¡rio do que acontece nas periferias, como em Ermelino Matarazzo, na zona leste, em que os rua­dos continuam intensos e atéganharam volumes, com mais bailes funks e cultos religiosos. “O som éum marcador social relevante da distribuição econa´mica espacial no contexto de confinamento que estamos vivendo”, afirma a artista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP Giselle Beiguelman.

A professora e um grupo de alunos do Programa de Pa³s-Graduação em Design da FAU desenvolvem, dentro do contexto da pandemia do novo coronava­rus, um projeto de pesquisa que combina questões da arte, do urbanismo e do design a partir do som. O projeto pretende fazer um mapeamento sonoro do impacto da quarentena na paisagem urbana, que migrou para o ambiente remoto, alterando consideravelmente os sons da cidade, mas não de forma homogaªnea.

Ha¡ três semanas, o grupo composto de 16 integrantes, incluindo a professora Giselle, captam os sons de suas janelas, em três hora¡rios fixos: a s 10 horas, a s 13 horas e a s 20h30, registrando as alterações na rotina sonora da cidade. Além dos vários bairros da capital, foco principal da pesquisa, hámoradores de cidades do interior e da Baixada Santista e também de Santiago do Chile. 

Segundo a professora, em certas regiaµes, onde a rotina sonora não mudou ou apenas acentuou o silaªncio que já era presente, a paisagem tende a se mostrar em imagens de uma forma muito mais repetitiva e calma. Em outras regiaµes, o cena¡rio já émais ruidoso, mas não regular, como aponta Giselle ao abordar o que chama de “janelaa§os” osos protestos pola­ticos ocorridos a  noite, recentemente, durante pronunciamentos do presidente Jair Bolsonaro.

A partir da pesquisa, diz a professora, foram descobertos sons que estavam perdidos em meio ao cotidiano agitado da cidade, mas hácertas caracteri­sticas com padraµes que se repetem e também muitas exceções. “Da¡ para notar, por exemplo, uma crescente volta da ocupação do Espaço, ou seja, as pessoas respeitando menos o isolamento. Nota-se também o aumento de vozes durante os protestos, com algumas batendo panelas, gritando ou cantando o Hino Nacional, em uma disputa de narrativas ocupando esse lugar estanãtico que no começo não estava tão clara”, comenta. Com a diminuição do número de carros circulando pela cidade, em todas as gravações há presença constante de motos osos entregadores ou, como a professora define, o “precariado digital”, que tem que estar nas ruas trabalhando.

O projeto deve ir um pouco mais além do fim do isolamento social decretado pelo governo do Estado de Sa£o Paulo osprevisto para o dia 10 de maio –, para que se possa ter um contraponto com a coleta de sons de retorno a s atividades. “a‰ muito interessante contrapor esse universo sonoro. Teremos um mapeamento sonoro na situação de exceção do confinamento ao longo da volta atéa retomada de todas as atividades”, prevaª a professora. Por enquanto, todos os sons são arquivados em um drive compartilhado. Esta¡ em discussão o formato de sua apresentação, que pode ser uma instalação ou uma plataforma digital, ou ainda uma combinação das duas formas. “O que estãodefinido éque o projeto dara¡ visualidade a  espacialidade desses sons e a  escala temporal em que ele operou”, adianta.

Silaªncios e rua­dos

Imagem do bairro da Bela Vista, na regia£o central da capital: ruas vazias com barulho
de multidaµes durante protestos pola­ticos osFoto: Matheus da Rocha Montanari
 
Matheus da Rocha Montanari, um dos integrantes do grupo liderado pela professora Giselle, mora na Bela Vista, regia£o central da cidade, e começou a notar um aumento do silaªncio durante o dia e a identificar rua­dos que antes não eram percebidos. “Apesar de ter diminua­do bastante o movimento, ainda tem muita gente na rua. Eu moro em frente a uma praça, onde a movimentação de criana§as brincando no parquinho durante o dia aumentou bastante, o que éum pouco preocupante. Os a¡udios revelam isso, com sons de criana§as na praça, que antes estavam na escola e agora tem que ficar em casa, e também dos vizinhos. Enquanto a rua vai esvaziando, o prédio vai ganhando vida. A gente não enxerga, mas escuta”, relata.

Além disso, com o uso da tecnologia via aplicativos de celular de transcrição de a¡udio para texto e de identificação de barulhos, que utilizam sistemas de inteligaªncia artificial, Montanari descobriu coisas interessantes. “Por volta das 20h30 todas as noites, aqui na regia£o, acontecem protestos, os ‘janelaa§os’. Nesse momento, surge uma dicotomia entre imagem e som, porque as ruas aparecem vazias, visualmente, mas estãoocupadas pelo barulho de uma multida£o. E éisso que o aplicativo do celular capta, a imagem de uma rua vazia, mas que pelo a¡udio identifica como sendo o barulho de multida£o.”

Tambanãm na transcrição do a¡udio para texto apareceram coisas curiosas: “O sistema capta algumas palavras soltas, e, por vezes, as entende como sendo outras. Por exemplo, durante um protesto, o vizinho gritou ‘Fora!’ e o sistema reconheceu como sendo ‘heal’, que é‘cura’ em inglês. Achei uma imagem poderosa, dado o estado de pandemia em que vivemos e as incertezas que o governo federal vem gerando na população nos últimos dias, que resultam nesses protestos”.

Já o pa³s-graduando Vinicius Santos Almeida mora com seus pais no bairro Jardim Belanãm, que fica em Ermelino Matarazzo, na zona leste de Sa£o Paulo. “Aqui o barulho sempre fez parte da paisagem sonora. Na verdade, em todos os lugares aqui da zona leste, música alta éuma caracterí­stica quase que natural. Mas éalta mesmo, chegando a s vezes a tremer as janelas”, informa. Diferente da regia£o central, que ficou mais silenciosa, Almeida relata que em seu bairro não houve essa mudança, mas que nem por isso demonstra que hámenos adesão ao isolamento. “Provavelmente indica que a vida cotidiana por aqui tem maiores dificuldades de ser limitada ao espaço domanãstico. Por diversos motivos: condição das habitações, número de pessoas por casa, sociabilidade no pra³prio bairro ou rua”, acredita.

Almeida ainda observa que, além da música alta, háuma sobreposição de músicas, que vão de casas diferentes. “Eu moro em um apartamento e as músicas, no geral, vão de casas do outro lado da rua. Funk, forra³, eletra´nica, gospel, de tudo. Ha¡ muitas pessoas na rua, algumas com ma¡scara, outras sem, passando, paradas conversando, tomando cerveja, fazendo churrasco, ouvindo música no som do carro, andando de moto (empinando a moto e fazendo barulho). Enfim, vivendo normalmente.” Almeida ainda diz que a para³quia, que fica atrás de sua rua, parou de funcionar e de dar os avisos cotidianos sobre servia§os de saúde e apoio ao cidada£o, que eram cotidianos. “Ouvi uma única vez um carro passar dando instruções sobre segurança sanita¡ria, identificando-se como da UBS (Unidades Ba¡sicas de Saúde) aqui da regia£o.” Para completar a paisagem, continua, o mercado do bairro segue cheio e a lotanãrica, com filas enormes. “Nãoacho que écerto dizer que a quarentena por aqui éuma opção. Nãoparece ser”, conclui.

Outra participante do projeto, Aline Nakamura, édo interior de Sa£o Paulo. “Moro em Atibaia, no bairro Vila Rica. Durante o dia háo barulho da construção civil, em um terreno pra³ximo, e a  noite, por volta das 20h30, impera o silaªncio, entre um ou outro rua­do domanãstico”, conta. “Aqui, diferente da capital, não hápanelaa§os em grande peso osem Atibaia, mais de 70% da população votou em Jair Bolsonaro no segundo turno das eleições de 2018”, compara.

“a‰ um mapeamento muito sutil, mas que estãomobilizando o grupo todo, que trabalha para além das aulas”, diz Giselle Beiguelman. A professora ainda ressalta que éuma experiência pautada coletivamente, que tem ganhado repercussão, trazendo reconhecimento a s áreas de criação e a  universidade pública. Uma pesquisa definida por ela osem paralelo com o tí­tulo de sua coluna semanal Ouvir Imagens, na Ra¡dio USP (93,7 MHz) oscomo “ver os sons”.

 

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