Humanidades

O combate a  peste negra era tanto sobre pola­tica quanto sobre ciaªncia
A incapacidade da medicina do século 14 para impedir que a praga destrua sociedades em toda a Europa e asia ajudou a avana§ar nas descobertas cienta­ficas e transformou a pola­tica e a pola­tica de saúde, diz historiadora de Stanford.
Por Melissa de Witte - 13/05/2020

Para os italianos no século 14, a peste buba´nica a princa­pio pareceu extraordina¡ria, mas seu retorno repetido a tornou tão parte da vida cotidiana que se tornou um aborrecimento econa´mico e um problema administrativo a ser resolvido, e eventualmente levou a avanços na medicina e no paºblico. saúde, de acordo com a historiadora de Stanford e estudiosa da Ita¡lia renascentista, Paula Findlen .


Paula Findlen éa professora de história italiana de Ubaldo Pierotti na
Faculdade de Ciências Humanas e Ciências. (Crédito da imagem: Sunny Scott)

Enquanto o mundo enfrenta outra pandemia global, Findlen falou conosco sobre os problemas enfrentados pelos italianos renascentistas relacionados a  Peste Negra, incluindo aqueles que nos parecem familiares hoje em dia, como as dificuldades de relatar com segurança a doena§a, campanhas de desinformação e tensaµes políticas entre estados em torno de sua resposta. Ela também falou sobre as origens da palavra “quarentena” e Giovanni Filippo Ingrassia, a quem Findlen comparou com uma versão renascentista de Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doena§as Infecciosas dos EUA.

“A história das pandemias - e não apenas a praga - coloca em perspectiva nossos medos sobre o COVID-19. As sociedades anteriores encontraram repetidamente maneiras de se recuperar do impacto da doena§a, com muito menos recursos do que temos hoje. Espero que isso nos lembre de sermos criativos e resilientes aos nossos pra³prios desafios ”, disse Findlen, cuja pesquisa examina como o ini­cio da história da ciaªncia, medicina e tecnologia écentral para a compreensão da sociedade contempora¢nea.

Findlen éo professor de Hista³ria Italiana Ubaldo Pierotti na Escola de Ciências Humanas e Ciências e diretor do Centro Suppes de Hista³ria e Filosofia da Ciência e Tecnologia . Findlen escreveu recentemente um ensaio de revisão: “ O que Boccaccio diria sobre o COVID-19? ”Sobre a experiência do humanista florentino com a peste negra na Ita¡lia renascentista.
 

Existem paralelos entre como estamos gerenciando o COVID-19 hoje e como os italianos frustraram a peste buba´nica no século 14?

Desde a antiguidade, as pessoas debatem se devem permanecer ou fugir durante uma epidemia e como impedir que outras pessoas venham. "Quarentena" éum legado especa­fico de como as cidades medievais e renascentistas tardias reagiram a  peste, não durante a pandemia inicial de 1346-53, mas após seu retorno. A primeira legislação conhecida (pelos venezianos) em 1377 especificou apenas trinta dias, mas evoluiu para quarenta, o que significa quarentina . Quarenta faziam mais sentido para os médicos que liam Hipa³crates sobre o tamanho ta­pico de uma doença altamente contagiosa e também sabiam, como cristãos, que essa era a duração do jejum da Quaresma.
 

Como a peste buba´nica mudou a relação entre ciaªncia, governo e sociedade?

A idanãia de saúde pública - saúde como um bem comum e coletivo - éanterior a  Peste Negra e nunca foi apenas sobre doena§as. Tambanãm abrangeu a infraestrutura que contribuiu para o bem-estar da sociedade em geral, na Ita¡lia e em outros lugares. O retorno repetido da peste tornou-se um motivo para investir mais especificamente em hospitais e para reaproveitar a leprosa¡ria[asilos de leprosos], cuja população havia declinado, transformando-os em “casas de pragas” na periferia de cidades como Veneza. Eventualmente, levou a uma burocracia encarregada de manter uma sociedade sauda¡vel. A visão medicalizada da saúde pública tornou-se muito mais comum durante os surtos de peste e outras doenças do século XVII do que no século 14. Os primeiros estados modernos se interessavam mais pelo policiamento da saúde, especialmente entre os pobres, deslocados e estrangeiros que não podiam reivindicar a cidadania. a€s vezes, eles eram percebidos como fomentando "ar ruim" (a palavra "mala¡ria" significa literalmente isso), embora houvesse alguma compreensão de que animais e tecidos também poderiam ser fontes de infecção. Eles simplesmente não sabiam o porquaª, porque não tinham conhecimento de va­rus, muito menos a ideia de infecção bacteriana.
 

De que maneira a Peste Negra mudou a medicina e a pesquisa cienta­fica?

A incapacidade da medicina do século XIV de impedir a praga de sociedades devastadoras em toda a Eura¡sia colocou um desafio ao poder explicativo de sua ciência Como as pessoas pegaram essa doena§a? Por que alguns sobreviveram e tantos morreram? Por que suas terapias falharam? Fundamentalmente, levou os médicos a prestar mais atenção ao que podiam aprender diretamente com os corpos e aos fatores ambientais que contribuem para a doena§a, além do que também aprenderam nos livros. Mas primeiro, eles tiveram que sobreviver a esta doença - os médicos eram uma população especialmente vulnera¡vel.
 

Vocaª estudou a história das redes cienta­ficas e a disseminação de nota­cias e informações. Como cientistas de todo o mundo correm para encontrar tratamento e uma vacina para o COVID-19, existem lições do passado que são aplica¡veis ​​hoje?

Uma rede cienta­fica produtiva cria colaborações que não são simplesmente locais, mas se beneficiam da agregação de recursos, conhecimentos e perspectivas de vários locais. Os conselhos de saúde pública italianos do século XVII eram uma espanãcie de rede de informações mobilizada para definir o surgimento e o curso de uma epidemia; eles precisavam estabelecer medidas preventivas e encontrar possa­veis soluções. Declarar o fim de uma praga era uma questãode boa informação.

Frequentemente, vemos como foi difa­cil criar canais confia¡veis ​​de denaºncias sobre doena§as, mortes e suas causas, e isso ainda éverdade hoje. A desinformação não éuma invenção do século XXI.

As cidades relutavam em reconhecer a presença de pragas por causa das consequaªncias econa´micas; portanto, vocêencontrara¡ subnotificações e diagnósticos incorretos para impedir que uma quarentena completa entre em vigor. Da mesma forma, as tensaµes políticas entre os estados podem transformar vagos rumores de peste na base de ações retaliata³rias. A quarentena pode ser uma arma pola­tica e também um assunto de negociação e acordo diploma¡tico.

 
Havia uma figura como Anthony Fauci (diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doena§as Infecciosas dos EUA) na Ita¡lia renascentista?

O médico siciliano Giovanni Filippo Ingrassia foi o médico nomeado pelo
estado responsável pela saúde pública durante a praga de 1575.
(Crédito da imagem: Wikimedia Commons)

Quanto a Anthony Fauci, minha escolha éo médico siciliano do século 16 Giovanni Filippo Ingrassia que foi protomédico [médico nomeado pelo estado responsável pela saúde pública] durante a praga de 1575, o que significava que ele era responsável pela saúde de toda a ilha. Ingrassia já havia combatido um surto grave de gripe na década de 1550 e fez a importante observação cla­nica de que a escarlatina édiferente do sarampo durante outra epidemia. Em 1575, ele defendeu importantes medidas preventivas, incluindo a criação de enfermarias separadas para pacientes doentes, potencialmente infectados e convalescentes. Como o Dr. Fauci, seu entendimento da saúde pública veio da longa e difa­cil experiência de várias epidemias e de um forte senso de responsabilidade social e dever ca­vico.

 
Que legado duradouro a peste buba´nica deixou na vida na Ita¡lia e além ?

Para os italianos no século 14, a praga inicialmente parecia extraordina¡ria, depois tornou-se comum e atéendaªmica. As pessoas reagiram criativamente a s ondas iniciais da peste. Eles pensavam sobre vida e morte, amor e amizade, doença e saúde de maneira diferente. Eles tomaram o pulso moral de sua sociedade, enquanto se afundavam nas lutas políticas da anãpoca. Quando as pessoas se acostumaram com a ideia de que a praga retornaria periodicamente, tornou-se um aborrecimento econa´mico, um catalisador da negociação social e um problema administrativo a ser resolvido. O arco e a duração de cada surto tornaram-se uma medida do sucesso e fracasso da saúde pública, e não um assunto de grande reflexa£o. Hospitais e instituições de caridade se beneficiaram da necessidade conta­nua de experimentar como cuidar e curar,
 

Quais são as lições da Ita¡lia renascentista que podem informar nossa resposta ao COVID-19?

Encontro muitas lições interessantes, sem torna¡-las histórias paralelas. A taxa de mortalidade por peste foi muito maior - tipicamente 30% a 60% da população. Simplesmente não estamos acostumados a  morte nesse na­vel, e a praga era apenas uma das muitas maneiras pelas quais as pessoas morriam saºbita e prematuramente. Todos devemos ser gratos por águapota¡vel, melhor dieta e saneamento, aparelhos modernos que substituem o trabalho fa­sico duro, antibia³ticos e outros confortos dia¡rios e inovações médicas. Resistimos melhor a s doenças do que qualquer pessoa dos séculos 14 a 17. Ao mesmo tempo, ainda vemos hoje como a ausaªncia de alguns ou de todos esses ingredientes pode tornar a vida mais curta, difa­cil e mais vulnera¡vel a doena§as. A esse respeito, a experiência pré-moderna da doença nunca desapareceu completamente.

 

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