Humanidades

A sociedade não evolui sem as ciências humanas
Professores da USP explicam por que as humanidades são fundamentais para o desenvolvimento do Paa­s
Por Claudia Costa - 15/05/2020


“Sa³ as ciências humanas tem instrumental conceitual, tea³rico, prático e metodola³gico
para abordar as váriasDimensões da sociedade humana” osIlustração: Unsplash

A recente medida do governo Jair Bolsonaro que excluiu os cursos de humanas do edital de bolsas de Iniciação Cienta­fica do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Cienta­fico e Tecnola³gico) gerou uma grande mobilização das universidades públicas, de instituições cienta­ficas e atéda sociedade civil. Segundo a portaria, anunciada no final de abril, estudantes de graduação de áreas como educação, direito, economia, ciências sociais e filosofia não poderiam concorrer a s 25 mil bolsas oferecidas pelo órgão federal, já que eram priorizadas áreas tecnologiicas, em detrimento das humanidades e ciências ba¡sicas. A repercussão nacional foi o motivo do recuo na decisão, e agora a área de ciências humanas volta a fazer parte do edital osainda que os projetos de pesquisa contemplados devam ser “preferencialmente” (não mais obrigatoriamente) relacionados a s áreas classificadas como priorita¡rias.

“Precisou uma grande pressão nacional para que o governo reconhecesse a importa¢ncia dessas ciências para o desenvolvimento cienta­fico e tecnola³gico”, afirma a professora Marta Amoroso, do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “Ainda que houvesse indicativos de que pesquisas de humanas ligadas a esses setores de ponta fossem contempladas, esta¡vamos lendo isso como um corte”, diz, contando que o CNPq voltou atrás e vai lana§ar um novo edital. “Provavelmente foi uma estratanãgia de corte direcionado para humanas, mas como a sociedade civil e cienta­fica reagiu, houve o recuo”, comenta.

A professora cita uma nota da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), publicada no dia 22 de abril, em que a entidade afirma que em uma situação de saúde pública como a pandemia atual do coronava­rus e a crise econa´mica, que vira¡ na sequaªncia, sem as humanas os médicos não podem fazer nada. “a‰ um documento muito importante. Nãovai dar para criar políticas públicas nem empregos, nem resposta aos contingenciamentos que estãopor vir sem um trabalho das ciências humanas. a‰ inimagina¡vel”, afirma. Além disso, diz, os setores médicos e de pesquisa de ponta trabalham na interlocução das ciências humanas, e isso acontece hámuito tempo. Para a professora, o Brasil faz um movimento contra¡rio quando o mundo inteiro estãose voltando para a ciência

“A sociedade brasileira émultidiversa, e são as ciências humanas tem instrumental conceitual, tea³rico, prático e metodola³gico para abordar essa diversidade”, destaca Marta, chamando a atenção para a pesquisa etnogra¡fica. Segundo ela, o contingenciamento de verbas para a área de humanas, que se dirige para diminuir os recursos para a pesquisa de graduação, éum “dano terra­vel”, porque essas bolsas abrem caminho para que os jovens tenham uma imersão em campos de pesquisa que estãoacontecendo na universidade já no ini­cio de sua formação. “Nesse momento, voltamos a entender a importa¢ncia da ciência Se não acontecer agora uma aposta nas ciências osno plural osnão temos como dialogar com a sociedade mundial, com a pesquisa internacional”, acrescenta.

Para o professor de Ciência Pola­tica da FFLCH Joséalvaro Moisanãs, a decisão de corte das bolsas éuma clara indicação de um aspecto da natureza desse governo. “a‰ uma decisão obscurantista, que vai contra o significado e a importa¢ncia da ciência Os membros desse governo não tem nenhum aprea§o, nenhuma preocupação, nenhuma relação com a perspectiva do conhecimento, com a ideia de que o conhecimento fundamenta as ações, inclusive as ações políticas.” O professor ainda reitera que éobscurantista porque háum temor, que fica escondido por trás de decisaµes como essa, de que a ciência possa revelar aspectos do funcionamento do governo que são considerados preca¡rios.

O professor afirma que as bolsas de Iniciação Cienta­fica do CNPq, particularmente para a área da graduação, estãoinseridas em um contexto mais amplo do papel da educação, e que a decisão contraria seu objetivo fundamental que éde formar e qualificar pessoas para desempenhar sua função na sociedade e, principalmente, cooperar com a criação de políticas públicas voltadas para a coletividade. O professor ainda levanta outra questão: não estimular e não apoiar o desenvolvimento da pesquisa na área das ciências humanas significa uma incapacidade das autoridades e do governo de perceberem que a ação pola­tica também depende de conhecimento. “a‰ uma recusa, uma rejeição do conhecimento como condição de ação pola­tica. Isso éexemplificado na posição que o presidente Jair Bolsonaro estãomantendo a respeito do coronava­rus, ou seja, uma recusa da ciaªncia, do conhecimento, de implicações que derivam da expansão da ciência”

Conhecimento instrumental e lucrativo

“Como épossí­vel um pobre não apenas votar, mas endossar entusiasticamente projetos pola­ticos voltados exclusivamente a  prosperidade material dos ricos? Pergunte a um socia³logo. Por que quase ninguanãm ousa falar abertamente contra a ‘democracia’, embora ela seja abominada e combatida por tantos? Pergunte a um cientista pola­tico. Por que grupos sociais já desfavorecidos que assistem ao decla­nio cotidiano de sua condição reforçam a lógica de exclusão, por exemplo por meio do consumo de certas mercadorias e servia§os? Pergunte a um antropa³logo. E para quem quiser saber como chegamos a esse ponto, um historiador oscuja regulamentação profissional acaba de ser vetada pelo presidente da República do Brasil ostalvez ajude”.

Joa£o Paulo Garrido Pimenta

“O governo fala em guerra quando se refere a  pandemia e a s medidas para combataª-la. Na pandemia da covid-19, ele oculta sua própria ‘pandemia’ pola­tica, intencional, planejada. A medida do Ministanãrio da Educação tem por objetivo infeccionar as universidades com o va­rus do conhecimento meramente instrumental e lucrativo. Na³s nos esquecemos de que o conhecimento éfruto da paciaªncia, da manha autodefensiva e da ousadia.” A análise édo Professor Emanãrito do Departamento de Sociologia da FFLCH Joséde Souza Martins. Segundo ele, não éa primeira vez, no Brasil, que a universidade, cientistas e professores tem que definir ta¡ticas e estratanãgias para desenvolver seu trabalho e assegurar a viabilidade de sua missão de pensadores, de educadores e de criadores de conhecimento erudito nas ciências, nas artes, na literatura e na filosofia. “Empaíses como o Brasil, faz parte da anãtica profissional dos pesquisadores de ciências humanas o compromisso com a oposição aos absurdos das ideias dominantes, opressivas, anticienta­ficas, anti-humanistas, antidemocra¡ticas.”

Para Martins, as ciências humanas e a filosofia não tem que ser justificadas perante esses “agentes do desconhecimento”. “As humanas podem e devem explicar por que no Brasil milhares de pessoas estãosofrendo e outras milhares estãomorrendo fora dos marcos do que nossa civilização considera correto e justo, porque vivemos numpaís em que bancos lucram com juros de mil por cento ao ano ou mais e, no entanto, os hospitais paºblicos estãoorganizados aquanãm do necessa¡rio para o correto atendimento dos que deles carecem, sobretudo nesta hora de agonia. Temos que explicar quais são os nexos entre a riqueza concentrada e a caraªncia socialmente distribua­da. Temos que explicar por que esta sociedade se torna, ao mesmo tempo, cada vez mais rica e cada vez mais pobre. A agonia dessas mortes éo fruto dessa contradição”, afirma.

Já a chefe do Departamento Geografia da FFLCH, professora Sueli Furlan, chama de “um grande equa­voco” o pensamento de que as humanidades estãoem segundo plano e, portanto, são menos importantes. Para ela, as humanidades são essenciais para enfrentar todos os problemas da sociedade, inclusive a pandemia. “A falta de reconhecimento dessa importa¢ncia, expressa pela decisão do Ministanãrio da Educação, evidencia um despreparo, que também énotado em outras insta¢ncias”, diz. “Vivemos um conflito interinstitucional, estamos numa pandemia e temos uma Presidaªncia e um conjunto de sujeitos que governam o Paa­s que não estãoem conformidade com a segurança da saúde das pessoas.”

Segundo Sueli, o Estado éum gestor de recursos, que recebe os impostos e os administra. “As políticas públicas tem váriasDimensões que interferem diretamente na vida das pessoas, e compreender tudo isso em umpaís em que a educação também foi sempre muito renegada éum problema complexo”, comenta. Nesse sentido, para a professora, as humanidades são emancipadoras, na medida em que desenvolvem a capacidade das pessoas de entender o mundo e atuar nele. “Quando compreendemos o que somos e o que temos como deveres e direitos, nosnos sentimos capazes de lutar por aquilo que julgamos correto.”

O professor do Departamento de Filosofia da FFLCH Renato Janine Ribeiro lembra que não se pode governar uma sociedade sem conhecer ciaªncia, o que inclui a ciência da sociedade e das relações humanas. “Se vocênão leva isso em conta, vocênão sabe governar.” As contribuições das humanidades são imensas, diz, e va£o desde situações mais prática s, como a superação das desigualdades sociais, a outras mais conceituais, como trocas de paradigmas. “No caso da filosofia, trabalhamos com as diferentes teses de vários pensadores sobre um mesmo fena´meno, enquanto a sociologia atua mais diretamente sobre o que se pode fazer em relação aos problemas atuais da sociedade. E tudo isso éessencial.”

No cena¡rio atual, Janine Ribeiro pensa que a maior contribuição da sua área osa filosofia osestãono debate anãtico sobre a difa­cil escolha dos médicos que, sem leitos e respiradores para todos, precisam decidir quem salvar. “Se essa éa discussão, já se parte do ponto de que não vai ter ma¡scara, respiradores e proteção para todo mundo, e por que não vai ter? Essa éa verdadeira questãoanãtica”, afirma. Para chegar ao momento da escolha difa­cil, énecessa¡rio, primeiro, ter dado todos os passos preventivos. “Nãose pode simplesmente aceitar que as pessoas va£o morrer. A obrigação anãtica estãoem fazer de tudo para que isso não acontea§a. Questaµes anãticas estãoligadas a fazer o bem. Quando já se parte do princa­pio de que vocêvai aceitar o mal, então vocêjá saiu do plano anãtico.” Segundo ele, énesse tipo de situação que as humanidades se fazem necessa¡rias. a‰ preciso entender o impacto social das coisas, a fim de melhor administra¡-las. “a‰ com pessoas que se estãolidando, e são as ciências humanas que tratam do conva­vio das pessoas”, conta.

Discursos anticivilizata³rios e obscurantistas 

O professor do Departamento de Lingua­stica da FFLCH Waldir Beividas chama a atenção para um tema muito discutido entre linguistas, cientistas sociais e estudiosos da comunicação e que estãosempre presente em qualquer agrupamento humano: o discurso como algo que sustenta e ao mesmo tempo ésustentado pela ideologia de um grupo ou instituição social. Segundo Beividas, a semia³tica ossua especialidade osprocura decifrar as maºltiplas estratanãgias de construção das significações nos discursos (orais, escritos, visuais, gestuais etc.), daa­ sua importa¢ncia fundamental para entender as relações de poder numa sociedade. “Ha¡ imensa variedade de estratanãgias persuasivas, manipulata³rias, indutivas, insinuantes, impla­citas e pressupostas. Desconhecer tais estratanãgias significa não saber avaliar seus objetivos internos, ostentados ou ocultados. Conhecaª-las significa adquirir melhor anãtica de vida, de cuidado humana­stico no seu uso, e sobretudo significa evitar se tornar ingenuamente massa de manobra de orata³rias escusas e anticivilizata³rias.”

O professor afirma que o ataque a s ciências humanas proveniente do governo representa “um  obscurantismo sem par e de paradoxo sem igual”. “No contexto amplo, de um Brasil de história ainda curta, cuja academia mal tem um século de vida, as ciências humanas, se não ‘atacadas’, são ‘desdenhadas’. Esquecemos que todo saber humano ocidental nasceu nas academias filosãoficas da Granãcia antiga”, lembra. Além disso, diz, todas as descobertas cienta­ficas, seja em que área for das ciências chamadas exatas ou de base, tem ou devem ter como destinata¡rio último o homem.

Já o professor Joa£o Paulo Garrido Pimenta, do Departamento de Hista³ria da FFLCH, coloca que éfundamental a s sociedades pesquisarem sua história e refletirem sobre seu futuro. “Todas as sociedades são o resultado de processos hista³ricos. Suas estruturas materiais, suas formas de agir e pensar, suas condições, possibilidades e limites de existaªncia, seus conflitos, suas instituições e seus valores coletivos são todos derivados desses processos. Portanto, explica¡-los significa pesquisar e entender o passado. Além disso, todos os acontecimentos que da£o concretude e impactam a vida de uma sociedade ostodos, sem nenhuma exceção ostambém são resultados de processos anteriores: nada écriado absolutamente de repente, do nada. a‰ por tudo isso que para se pensar o futuro de uma sociedade, para se planejá-lo e construa­-lo, não épossí­vel ignorar a constituição hista³rica dessa sociedade”. O professor afirma ainda que um sistema de educação nunca éparte isolada de uma sociedade. “Ele, necessariamente, se articula com aspectos econa´micos, sociais, pola­ticos e culturais, que são, todos eles, fortemente hista³ricos.”

As consequaªncias da não valorização das ciências humanas, segundo Pimenta, são a incapacidade de se converter o entendimento da realidade em projetos nacionais consistentes; a disseminação de valores e atitudes individuais sobre as coletivas; o esvaziamento da pola­tica como espaço de equação das necessa¡rias diferenças de opinia£o; o desmoronamento da própria concepção de sociedade, substitua­da com crescente eficácia por racioca­nios intelectualmente indigentes acerca da suposta “efica¡cia” ou “eficiência” de mecanismos de ajustes sociais pautados por uma também suposta lógica de “mercado”.

O professor conclui citando uma sanãrie de questionamentos e onde se encontram as respostas para eles: “Como épossí­vel um pobre não apenas votar, mas endossar entusiasticamente projetos pola­ticos voltados exclusivamente a  prosperidade material dos ricos? Pergunte a um socia³logo. Por que quase ninguanãm ousa falar abertamente contra a ‘democracia’, embora ela seja abominada e combatida por tantos? Pergunte a um cientista pola­tico. Por que grupos sociais já desfavorecidos que assistem ao decla­nio cotidiano de sua condição reforçam a lógica de exclusão, por exemplo por meio do consumo de certas mercadorias e servia§os? Pergunte a um antropa³logo. E para quem quiser saber como chegamos a esse ponto, um historiador oscuja regulamentação profissional acaba de ser vetada pelo presidente da República do Brasil ostalvez ajude”.

 

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