Humanidades

Estudo mostra que preconceito interfere na percepção sobre a identidade do migrante nordestino
Expressaµes como “cabea§a chata”, “baiano” e “mulher macho” marcam negativamente a imagem dessas pessoas nas grandes metra³poles
Por Ivanir Ferreira - 29/05/2020

 Foto: Juliana Ribeiro
Visaµes generalistas colocam no mesmo grupo de “nordestinos” os que vieram do Piauí­,
Maranha£o, Ceara¡, Rio Grande do Norte, Paraa­ba, Alagoas, Sergipe e Bahia, quando
o fato éque cada um desses “povos traz consigo a história e a cultura peculiar
de sua regia£o”. Centro de Tradições Nordestinas em Sa£o Paulo 

Pesquisa realizada pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP mostra que a palavra “nordestino” estãoimpregnada de preconceito e de construções sociais que levam alguns brasileiros de outros Estados a enxergarem os migrantes do Nordeste como “seres inferiores” oscrena§a totalmente infundada e que remete aos piores episãodios de perseguição da história, tendo por base a ideologia eugenista de que supostamente a biologia poderia selecionar os “melhores” membros da raça humana.

Expressaµes como “cabea§a chata”, designação para ma¡ aparaªncia; “baiano” ou “paraa­ba”, indicativos de que alguém fez algo errado; e “mulher macho”, para mulheres paraibanas ou nordestinas, que seriam desprovidas de uma idealizada “feminilidade”, são algumas das condena¡veis alcunhas que lhes atribuem valor negativo nas metra³poles do Sul e Sudeste. A pesquisa propaµe uma reflexa£o sobre o assunto e a desconstrução dessa percepção generalista do migrante do Nordeste, fato que dificulta ainda mais a vida desse povo que muitas vezes deixou sua terra em busca de uma vida melhor.

“As migrações não devem ser estudadas apenas de um ponto de vista ou por uma via homogeneizadora porque os fluxos migrata³rios são sempre complexos, heterogaªneos e diversos”, afirma ao Jornal da USP a pesquisadora Valanãria B. Magalha£es, coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa em Hista³ria Oral e Mema³ria da EACH e autora de um levantamento feito a partir de pesquisas  sobre o tema, com financiamento da Fundação de Amparo a  Pesquisa do Estado de Sa£o Paulo (Fapesp). No levantamento, Valanãria priorizou pesquisas feitas com entrevistas em profundidade, em especial as de história oral, manãtodo que vem estudando hávários anos. Segunda a pesquisadora, as entrevistas de história oral ajudam a detectar com mais precisão a complexa realidade social dos migrantes.

Segundo a pesquisadora, visaµes generalistas colocam no mesmo grupo dos “aqueles nordestinos”, de maneira pejorativa, todos que vieram do Piauí­, Maranha£o, Ceara¡, Rio Grande do Norte, Paraa­ba, Alagoas, Sergipe e Bahia. Quando o fato éque “cada um desses povos traz consigo a história e a cultura peculiar de sua regia£o”, diz.

Valanãria afirma que o preconceito não acontece somente nas relações sociais do local de destino dos migrantes e dos encontros cotidianos privados, mas éreforçado por declarações ofensivas e xenofa³bicas de alguns pola­ticos que acabam por legitimar atitudes de preconceito. A pesquisadora lembra da visita que o presidente Jair Bolsonaro fez a  Bahia, em 2019, para inauguração de uma usina em Sobradinho. Em va­deo gravado junto com um deputado o presidente justifica o aumento de sua frequência de suas viagens a  Bahia: “Segunda vez que vem a  Bahia, várias vezes já no Nordeste, caª ta¡ virando um cabra da peste?”, pergunta o deputado no va­deo. “Sa³ ta¡ faltando crescer um pouquinho minha cabea§a”, responde Bolsonaro, rindo. A frase se refere ao esterea³tipo de que o nordestino tem a “cabea§a grande e chata”. Para a pesquisadora, o fato de as declarações virem do presidente são piora a situação porque ele acaba legitimando e estimulando comportamentos xena³fobos da sociedade mais ampla.

Saindo da esfera pública para a privada, o esterea³tipo construa­do em torno do migrante dessas regiaµes brasileiras éo de um ser humano inferior, ignorante, feio e sem capacidade de exercer atividades laborais intelectualizadas. Nas grandes cidades, sobram para eles os trabalhos informais, os servia§os domanãsticos, a fa¡brica e a construção civil. Segundo a pesquisadora, o preconceito pode ser percebido em todo lugar, mas foi nos bairros da Zona Leste paulistana que o estudo se debrua§ou e trouxe mais detalhes sobre o assunto.

Praça Sa­lvio Romero, bairro do Tatuapanã, Zona Leste de SP. Ponto de encontro das
pessoas que vinham e iam para as cidades do Nordeste (décadas 70/90)
 Arquivo pessoal da pesquisadora

Zona Leste de Sa£o Paulo

A partir dos anos 1960, a regia£o acabou sendo destino de muitos dos que vinham do Nordeste em virtude da melhor oferta de infraestrutura de transporte coletivo (rede ferrovia¡ria), de moradia mais barata e da presença de algumas indaºstrias empregadoras. Os pontos de chegada eram a Hospedaria dos Imigrantes (hoje, Museu do Imigrante, R. Visconde de Parnaa­ba, 1.316 osMooca) e a Estação do Bra¡s. Alguns ficavam em pensaµes, em casa de amigos, de parentes e outros ficavam expostos aos atravessadores que, da própria Estação do Bra¡s, os conduziam para subempregos e trabalhos braçais.

Entre a década de 1970 e 1990, a Praça Sa­lvio Romero, no Tatuapanã, ficou conhecida como ponto de encontro dos nordestinos. O lugar era “uma extensa rede de comunicação entre o sertão baiano e a cidade de Sa£o Paulo” para troca de bens entre os que chegavam e os que iam para seus Estados de origem. Os que voltavam, levavam objetos que simbolizavam sucesso migrata³rio (eletroeletra´nicos, por exemplo) e os que vinham traziam produtos ta­picos de suas terras (doces, compotas, frutas e outros alimentos). Cartas chegavam e iam também com nota­cias de cada lugar.

A professora Valanãria lembra ainda que o ini­cio das migrações do Nordeste para o Sudeste data do começo do século 20, sendo a década de 1930 o marco de sua intensificação. Esses movimentos perpassaram todo o século, chegando ao 21 com uma grande diversidade de fluxos migrata³rios e contextos diversificados que explicariam a heterogaªnea presença nordestina no Sudeste.

 

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