Humanidades

O mais erudito dos cientistas sociais brasileiros
Em Florestan Fernandes, sociologia éa “autoconsciência cienta­fica da sociedade”, afirma Joséde Souza Martins
Por Claudia Costa - 28/06/2020


O professor Florestan Fernandes (1920-1995) osFotomontagem: Vinicius Vieira/Jornal da USP
 
Considerado expoente da sociologia no Brasil, Florestan Fernandes (1920-1995) foi um intelectual de primeira grandeza que transformou o pensamento social no Paa­s e estabeleceu um novo estilo de investigação sociola³gica. Mas a informação de que seria o fundador da sociologia cra­tica no Brasil éincorreta, e quem esclarece a questãoéo socia³logo Joséde Souza Martins, Professor Emanãrito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “Florestan não éconsiderado fundador da sociologia cra­tica no Brasil senão na perspectiva de uma informação viesada que vem de setores que definem sua obra, sem conhecaª-la, de um ponto de vista partida¡rio e ideola³gico. Florestan era um cientista rigoroso, o mais erudito dos cientistas sociais brasileiros. Grande conhecedor dos cla¡ssicos da sociologia, vários de seus trabalhos devem ser interpretados como elaboradas expressaµes do pensamento cra­tico”, afirma Martins. No pra³ximo dia 22 de julho, completa-se o centena¡rio de nascimento de Florestan osdata que o Jornal da USP estãocelebrando com uma sanãrie de reportagens.

“No Brasil difundiu-se a equivocada concepção de que a sociologia cra­tica éa sociologia do contra, a sociologia da contestação, a ‘sociologia militante’, uma sociologia ‘de esquerda’”, explica Martins. “E atribui-se a Florestan a suposta virtude de ter feito isso com a sociologia, justamente o que a sociologia não anã. Ele era um cientista, não um panfleta¡rio”, observa. No entanto, como diz o professor, hácorrentes na teoria sociola³gica, difundidas em diferentes sociedades, conhecidas como sociologia cra­tica. “Ainda que por diferentes caminhos, hádiferentes orientações de sociologia cra­tica, que, no meu modo de ver, são variantes da sociologia do conhecimento. Uma sociologia que nos remete, no caso de Florestan, a  obra de Karl Mannheim, que ele conhecia bem”, exemplifica.  

Segundo Martins, as originais e criativas incursaµes de Florestan Fernandes nessa direção foram estimuladas por seu professor Roger Bastide, sucessor de Claude Lanãvi-Strauss na cadeira de Sociologia da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP. “De certo modo, já aparecem no seu estudo sobre os grupos infantis do bairro do Bom Retiro, em Sa£o Paulo”, relata, citando As Trocinhas do Bom Retiro, que foi premiado em concurso do graªmio da faculdade. O professor conta que nessa pioneira pesquisa com criana§as, “em uma cidade e em um bairro de imigrantes”, Florestan descobriu que as criana§as socializavam como brasileiras seus pais e ava³s estrangeiros. “Uma cra­tica sociola³gica da concepção dominante de socialização, em que a criana§a éapenas personagem passiva da socialização, cujo agente seria o adulto. Caso em que o mundo real estãoinvertido em relação a  sociedade pressuposta na teoria”, comenta Martins.

Além disso, diz o professor, foi também Roger Bastide quem atraiu Florestan Fernandes para a pesquisa sobre o negro em Sa£o Paulo, um projeto robusto que inovou nos estudos sobre o negro e a escravida£o no Brasil, sobretudo os desdobramentos da escravida£o na situação do negro da sociedade pa³s-escravista. Martins conta que Bastide insistiu com ele para que participassem juntos de um projeto proposto pela Unesco, e acabou por convencaª-lo. “A pesquisa teve inovações técnicas que nunca foram reconhecidas. A principal delas, a de ter sido um trabalho precursor da pesquisa participante, ou pesquisação. Nela o entrevistado entrevista-se. Nãoéagente passivo de conhecimento, mas autor de conhecimento. Nesse sentido, os estudos sobre o negro, tanto de Bastide quanto de Florestan, dela resultantes, são derivações na área da sociologia do conhecimento de senso comum”, compara Martins. E acrescenta que essa modalidade de pesquisa, com os nomes de “pesquisa participante” ou de “pesquisação”, se difundiria com muita originalidade tea³rica nas obras do socia³logo colombiano Orlando Fals-Borda e, no Brasil, na de Carlos Rodrigues Branda£o, que fez doutorado na Faculdade de Filosofia da USP.

Segundo Martins, foi a Missão Francesa oscomo ficou conhecido o grupo de professores franceses integrantes dos primeiros quadros docentes da USP, nos anos 30 osque introduziu a sociologia cienta­fica. “Atéentão, os estudos pré-sociola³gicos que aqui se fazia eram ensaios sociais. Muitos de excelentenívele teoricamente bem informados. Os Sertaµes, de Euclides da Cunha, constitui uma obra modelar do ensaa­smo social brasileiro pré-sociola³gico. Mas hánesses estudos, mesmo com referaªncias bibliogra¡ficas a obras cienta­ficas, uma tendaªncia a  análise e interpretação impressionistas. Os franceses da USP ensinaram a seus alunos, especialmente de sociologia e de antropologia, que ciência depende de manãtodo cienta­fico”, afirma o professor. E acrescenta: “Florestan esmerou-se nesse cuidado. Distinguiu os manãtodos explicativos, expostos em Fundamentos Empa­ricos da Explicação Sociola³gica, dos manãtodos técnicos. Sa£o instrumentos de momentos diferentes do trabalho sociola³gico, uma distinção fundamental para fazer ciência E, sobretudo, enfatizou a importa¢ncia da sociologia como ciência empa­rico-indutiva, bem diversa do que épra³prio do dedutivismo dos ensaios sociais”. Além disso, lembra Martins, na USP a Sociologia já estava na segunda e na terceira geração de socia³logos quando começam a ser formados socia³logos na Ita¡lia, Inglaterra, Espanha e Portugal.

 "A ciência que Florestan Fernandes praticava era socialmente comprometida, engajada e militante.”


A ciência que Florestan Fernandes praticava era socialmente comprometida, engajada e militante. Nos anos 50, tornou-se conhecido pela participação na Campanha Nacional em Defesa da Escola Paºblica, que, segundo Martins, teve um núcleo importante na USP e envolveu professores e alunos. “Nãotinha cor ideola³gica e era fortemente apoiada por Jaºlio de Mesquita Filho e seu jornal, O Estado de S. Paulo”, conta o professor, explicando que a campanha era uma reação contra o substitutivo do projeto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que estava em discussão na Ca¢mara dos Deputados e favorecia as escolas privadas, cata³licas e laicas e minimizava a escola pública.

Martins lembra que o envolvimento de Jaºlio de Mesquita Filho naquela campanha tem pleno sentido: “Foi na redação de seu jornal que se formou um pequeno núcleo de intelectuais que discutiram a possibilidade de criação da USP. Mesquita foi o ‘pai’ da nossa Universidade, a alma do que esta Universidade veio a ser. Ele a concebeu na cadeia, quando foi preso por conta de seu envolvimento na Revolução Constitucionalista de 1932. Na cadeia, pediu que a esposa lhe levasse dois livros: o de a‰mile Durkheim, a‰ducation et Sociologie, e o de seu disca­pulo Canãlestin Bouglanã, Les Idanães a‰galitaires osa‰tude sociologique. Saiu da cadeia com o projeto da USP na cabea§a”.

Florestan Fernandes numa manifestação em favor do ensino paºblico
 Foto: Assembleia Legislativa de Sa£o Paulo

Martins conta como se deu o processo. “A USP de Jaºlio de Mesquita Filho seria pública, laica e gratuita. Era um projeto de, atravanãs da educação, transformar esta sociedade numa sociedade democra¡tica. Era tal sua preocupação republicana com a questãoda educação nessa perspectiva que, decidida a criação da USP, foi enviado a  Frana§a o professor Teodoro Ramos, da Escola Politécnica, para recrutar os docentes para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, que formaria o núcleo central da Universidade. Na Frana§a, Ramos foi orientado por Georges Dumas, amigo de Mesquita, que conhecia o Brasil e estivera em Sa£o Paulo nos anos 1920. Dumas era protestante e Ramos levava uma recomendação de Mesquita: nada de clericais. A intenção do grupo fundador da USP era a de evitar que a USP se tornasse uma universidade pública aparelhada pela Igreja Cata³lica. Pensava no pluralismo das ideias, essencial ao desenvolvimento de uma verdadeira universidade.”

A Campanha em Defesa da Escola Paºblica, de 1959, retomava as inspirações do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova, de 1932, e a proposta de criação da USP, como assegura Martins. “O deputado Carlos Lacerda, do Rio de Janeiro, apresentara um substitutivo ao projeto da Lei de Diretrizes e Bases que equiparava escola pública e particular nas obrigações do Estado. Havia um claro propa³sito de favorecer as escolas cata³licas”, diz, reiterando que a campanha foi uma reação dos educadores contra a tentativa de quebrar o princa­pio da laicidade da educação. “Um grande número de educadores da USP, especialmente dos cursos de Ciências Sociais e de Pedagogia, empenhou-se numa cruzada de esclarecimentos. Além da capital, percorreram escolas e cidades do interior e de outros Estados, fazendo conferaªncias e pondo em questãoo substitutivo da Lei de Diretrizes e Bases.”

Aos poucos, Florestan foi ganhando destaque na Campanha Nacional em Defesa da Escola Paºblica, contabilizando mais de 50 conferaªncias em escolas, sindicatos, lojas maa§a´nicas e igrejas. “Em 1959 e 1960, eu estava fazendo o Curso Normal numa escola pública, o Instituto de Educação Dr. Amanãrico Brasiliense, em Santo Andranã. La¡ esteve, para falar da campanha, o professor Fernando Henrique Cardoso, assistente de Florestan. No ano em que a campanha terminou, 1961, eu estava ingressando na USP”, relembra Martins, que algumas semanas antes da morte de Florestan, em 1995, conversou com ele sobre aquele movimento. “Além da importa¢ncia do apoio do jornal O Estado de S. Paulo, os maa§ons foram os maiores apoiadores da campanha. Evanganãlicos e espa­ritas também a acolheram e apoiaram. O substitutivo Lacerda acabou sendo aprovado. Mas o movimento mobilizou os educadores e mesmo os estudantes acima de partidos, classes sociais, religiaµes. Foi um grande movimento democra¡tico em favor da educação e da escola pública, que não voltaria a se repetir.”

Boa parte da obra de Florestan édedicada a  educação e na Faculdade de Filosofia ele sempre se bateu pela importa¢ncia da sociologia da educação no curriculum de Ciências Sociais.”


 Florestan Fernandes deixou uma extensa obra com mais de 50 ta­tulos, que segundo Martins cobre um vasto campo de temas e de problemas sociola³gicos. O professor destaca algumas, que recomenda como imprescinda­veis: Mudanças Sociais no Brasil, A Sociologia numa Era de Revolução Social, Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento, Ensaios de Sociologia Geral e Aplicada, A Integração do Negro na Sociedade de Classes e Fundamentos Empa­ricos da Explicação Sociola³gica. “Sa£o livros em que Florestan expaµe o fundamental de sua sociologia diversificada e desafiadora. Sa£o livros que ensinam o que essa sociologia anã, como ‘autoconsciência cienta­fica da sociedade’, uma definição de Hans Freyer que Florestan adotava”, afirma Martins.


Capas de algumas das mais de 50 obras escritas por Florestan Fernandes
 Fotos: Divulgação

“Boa parte da obra de Florestan édedicada a  educação e na Faculdade de Filosofia ele sempre se bateu pela importa¢ncia da sociologia da educação no curriculum de Ciências Sociais. Dois de seus ex-alunos, que se tornaram seus assistentes, foram preparados para ministrar essa disciplina: Marialice Mencarini Foracchi e Luiz Pereira. Foi uma forma clara de reconhecimento de que cursos como o de Ciências Sociais tinham como propa³sito fundamental a formação de educadores”, conclui.

O texto acima, “Florestan Socia³logo”, éo segundo da sanãrie de reportagens Florestan 100 Anos, produzida pelo Jornal da USP em comemoração ao centena¡rio de nascimento do socia³logo e professor da USP Florestan Fernandes (1920-1995), a ser completado no dia 22 de julho de 2020.

O pra³ximo texto da sanãrie, “Florestan Militante”, serápublicado no dia 3 de julho, sexta-feira.


O mestre de várias gerações de socia³logos

Leia a seguir uma carta do socia³logo Joséde Souza Martins enviada em 1994 ao professor Florestan Fernandes:

“Cambridge, 21 de junho de 1994

Estimado professor Florestan,

Desde o meu concurso de livre-docaªncia desejava fazer-lhe uma visita para agradecer-lhe a delicadeza de gesto do seu comparecimento a  arguição final. Sa³ não o fiz por temer roubar-lhe as horas de sua permanaªncia em S. Paulo e de sua convivaªncia com filhos e netos. A afobação dos preparos da minha vinda para Cambridge também prejudicou essa intenção.

Faa§o-o, poranãm, agora e por carta. E para juntar-me a s homenagens que lhe estãosendo prestadas, pelo tanãrmino de seu honrado mandato parlamentar, a s quais minha esposa Heloisa comparece também em meu nome.

Escrevo-lhe de Cambridge para dar a esta carta a dimensão simba³lica que ela deve ter. Sou o terceiro brasileiro, em 25 anos de existaªncia da ca¡tedra Sima³n Bolivar, a ser eleito seu titular, antecedido por Celso Furtado e Fernando Henrique Cardoso. Sou, também, o terceiro socia³logo, depois do pra³prio Fernando Henrique e de Pablo Gonza¡lez Casanova. A eleição para esta ca¡tedra éconsiderada na Amanãrica Latina e, sobretudo, aqui, com raza£o, uma grande honraria, principalmente porque ninguanãm a ela se candidata. a‰ a própria Universidade de Cambridge que faz a escolha. Essa escolha anã, antes de tudo, reconhecimento. Tenho dito aos colegas com quem convivo aqui que a eleição de dois titulares da ca¡tedra procedentes do mesmo grupo, o da antiga Faculdade de Filosofia da USP, deve-se aos manãritos excepcionais de uma pessoa que eles também conhecem (e reconhecem): Florestan Fernandes. Trata-se de uma honraria que o tem como destinata¡rio, pela qualidade do seu trabalho de socia³logo, mas também pela sua história pessoal exemplar, na coeraªncia, no compromisso e no empenho de transformar o nossopaís num lugar digno para todos; libertado de todas as misanãrias e opressaµes; lugar de um povo que possa viver a poesia e as promessas da vida livre do jugo de todas as caraªncias e do la¡tego de todas as violências.

Creio que este éo lugar e o momento para expressar-lhe diretamente meus agradecimentos profundos pela honra de ter sido seu aluno e de ter aprendido consigo não são um modo de pensar, mas também um modo de viver. Venho da periferia, de uma familia de pobres colonos de caféconvertidos em opera¡rios de fa¡bricas do ABC. Eu mesmo cresci nas ruas e nas fa¡bricas, estudei a  noite desde menino, tendo que ajudar a sustentar uma familia pobre. Cheguei a  Universidade de Sa£o Paulo e ao curso de Ciências Sociais da Rua Maria Antonia na escurida£o da noite, no cansaa§o de dias de fadiga, para estudar depois do trabalho e ainda voltar para o subaºrbio em horas tardias e despertar de madrugada para comea§ar tudo de novo. Tive sorte, porque me foi dado o privilanãgio do acesso a uma escola pública e a um grupo de professores universita¡rios competentes e comprometidos com a ideia de uma comunidade de destino dos homens que são livros e tem esperana§a, venham de onde vierem.

Agradea§o-lhe, ainda, o privilanãgio de ter sido seu auxiliar de ensino, no ini­cio de minha carreira. Aprendi muito com o professor exemplar, devotado a  missão de ensinar, como nos tempos antigos era pra³prio dos profetas, que semeavam saber e esperana§a, conhecimento e dever para com o destino de todos.

Sou-lhe, também, agradecido pelas várias vezes em que sua intervenção generosa impediu que minha carreira profissional fosse interrompida pelas tempestades de uma vida acadaªmica empobrecida pelo poder pessoal dos que não sabiam usa¡-lo com desprendimento. Pobreza, enfim, que nos privou a todos da possibilidade de reconstruir a escola de trabalho e pensamento de que o senhor foi e tem sido patrono, inspirador e alma.

Na cerima´nia solene de minha admissão como professor da Universidade de Cambridge, no dia 12 de outubro do ano passado, na pequena capela, de 1350, de Trinity Hall, o meu College, diante dos fellows e scholars, solenemente vestidos com as becas e insa­gnias de suas distinções, como écostume aqui, ao assinar o velho livro com a caneta de prata, como éuso, diante do altar e do Master, tive consciência, como tenho tido, que o meu nome naquele livro antigo era justo tributo a quem me ensinou uma boa parte das coisas que sei e que me trouxeram a este lugar: o filho de dona Maria, o menino das ruas do Bexiga, o mestre de várias gerações de socia³logos brasileiros que se chama Florestan Fernandes.

Um abraa§o forte do

Joséde Souza Martins”

A carta acima foi publicada como apaªndice no livro A Sociologia como Aventura osMema³rias, de Joséde Souza Martins, lana§ado em 2013 pela Editora Contexto.

 

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