Humanidades

Em busca de boas nota­cias
Pesquisadora da UFRJ fala sobre os desafios da ma­dia na cobertura de problemas urbanos e sugere jornalismo de solua§aµes
Por Patrícia da Veiga - 16/08/2020


De olho nas manchetes | Foto: Michael Gaida (Pixabay)

As nota­cias podem ser boas em umpaís que já ultrapassa os cem mil mortos por COVID-19? As nota­cias podem ser boas em uma cidade como o Rio de Janeiro, cujas desigualdades hista³ricas se acirram ainda mais em tempos de crise sanita¡ria e socioecona´mica? Nãoháresposta para tais perguntas, mas háuma proposta a ser feita, sobretudo, aos jornalistas: que não somente apurem a traganãdia, mas contextualizem suas causas, escutem as pessoas e investiguem possa­veis soluções.

Quem aponta o caminho éRaquel Paiva, professora emanãrita da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ e uma das responsa¡veis pelo desenvolvimento do campo cienta­fico da Comunicação no Brasil. Ela conversou conosco em dois momentos deste conturbado 2020: quando ainda senta­amos os efeitos da crise ha­drica instaurada na Regia£o Metropolitana do Rio de Janeiro e depois que já esta¡vamos isolados pelo novo coronava­rus. Nas duas oportunidades, falou sobre o jornalismo de soluções, um conjunto de prática s que nasce em redações do mundo e se espraia como possibilidade para a cobertura de antigas questões sociais.

Esse éo tema de uma pesquisa que a docente vem desenvolvendo em parceria com Gabriela Na³ra, também professora da ECO, no Laborata³rio de Estudos em Comunicação Comunita¡ria (Lecc). Apa³s décadas dedicada a s formas alternativas de comunicação, Raquel se volta a  chamada “grande ma­dia”, vislumbrando um debate sobre modos de fazer. Nesta entrevista, ela também fala sobre os desafios da vida urbana, a cobertura de temas de interesse paºblico, a importa¢ncia do jornalismo comunita¡rio e as interações cada vez mais mediadas pelas tecnologias. Acompanhe!

Aos 455 anos, o Rio de Janeiro segue com desafios hista³ricos a enfrentar. A comunicação pode contribuir para a melhoria da vida na cidade?

O Rio de Janeiro completou seus 455 num clima de a³pera-bufa. Eu digo isso porque, na vanãspera do aniversa¡rio da cidade, tivemos o desfile das escolas de samba, alguns sambas-enredos bem politizados, fortes, resgatando a história. Ao mesmo tempo, entra¡vamos em uma crise ha­drica sem precedentes, uma situação horra­vel, uma poluição orga¢nica e industrial forta­ssima, que não énova. Junto com os blocos de carnaval, que circularam pela cidade atéo ini­cio de mara§o, convivemos com o progressivo aumento das mila­cias, o esvaziamento da cidade no sentido econa´mico, a falta de manutenção dos equipamentos paºblicos, a precarização dos servia§os ba¡sicos, a criminalização de uma parcela da população, o aprofundamento das desigualdades. E assim percebemos que, de fato, os problemas são hista³ricos, já estãotão grudados na cidade e dificilmente vemos respostas. Ha¡ um certo desa¢nimo nas pessoas e os problemas se cristalizam. A questãoda águafoi o a¡pice de como o Rio de Janeiro lida com os seus problemas. Se não fosse um fato, seria uma meta¡fora da cidade. Se a comunicação pode resolver isso? A comunicação pode trazer um diferencial, pelos vea­culos de massa, pode discutir, pautar, sugerir, conscientizar. Pode trazer um novo aporte e dialogar com as ciências, o urbanismo, a engenharia, o sanitarismo etc., mas não vai resolver os problemas da cidade.

A senhora e a professora Gabriela Na³ra estãomonitorando as publicações que saem na ma­dia sobre o Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que investigam a percepção do paºblico sobre essas nota­cias. Quais os principais resultados dessa pesquisa atéo momento? Vocaªs também tem apostado num fazer jornala­stico que seja propositivo, apresentando soluções para as questões sociais. Na prática , o que essa mudança significa para os repa³rteres e para o paºblico?

Sim, a Gabriela Na³ra e eu estamos fazendo essa pesquisa hámais de três anos. Estamos agora consolidando os dados e comea§ando a escrever. a‰ um material bem amplo, que vamos publicar em livro. Nãoquisemos são abordar um modelo ou outro de comunicação. Escolhemos uma proposta de jornalismo, de comunicação, uma ideia de como trabalhar as nota­cias e estamos tentando aplicar esse formato ao Rio de Janeiro. O que fizemos? Primeiro, analisamos a cobertura sobre a cidade feita pelo jornal O Globo durante três anos. Em seguida, entrevistamos seis jornalistas responsa¡veis por essa cobertura. Tambanãm formulamos um questiona¡rio, que foi aplicado em diferentes bairros, diferentes regiaµes, para ver qual a perspectiva das pessoas sobre a cidade, como elas percebiam as nota­cias. Recebemos duas mil respostas. Ainda estamos analisando esses dados e o resultado vai ser muito interessante.

"Nãoestamos apresentando uma proposta nova de jornalismo, mas acho que o papel da universidade, especialmente da universidade pública, éfazer o debate. E gostara­amos de discutir se o jornalismo pode ser propositivo, construtivo".


Em Londres, entrevistei a editora responsável pela prática de um jornalismo de soluções na BBC. Além da emissora, outros vea­culos tem feito esse tipo de trabalho, e alguns tem resultados de pesquisas sobre o impacto que essas nota­cias tem produzido.

"O que vemos hoje no mundo, a partir de investigações já consolidadas, éque o número, o grau, o a­ndice de afetação mental que as nota­cias produzem nas pessoas, casos de depressão, tristeza, apatia, pa¢nico, são decorrentes dessa estrutura de produção midia¡tica que a gente tem".


Nãoestamos pregando um modelo de jornalismo positivo e dizendo “vamos fazer isso”. Estamos mostrando que existe uma proposta. Mas tenho visto jornalistas e professores dentro da Academia torcerem o nariz, acharem que éuma brincadeira de Poliana. Sa£o formatos de cognição que a gente pode alterar. a‰ a maneira como vocêapresenta um fato, cobre aquele fato, articula as entrevistas e discute os problemas. A preocupação maior éa de ser mais propositivo e não são ficar no denuncismo. E aa­ os vea­culos e os jornalistas refletem: seráque nospodemos fazer diferente? Sera¡ que essa maneira estãoboa mesmo? Além do livro, vamos produzir podcasts apresentando e analisando reportagens que tem sido feitas com base no jornalismo de soluções.

Ha¡ mais de 20 anos o Laborata³rio de Estudos em Comunicação Comunita¡ria (Lecc) investiga as formas cidada£s e comunita¡rias da comunicação. O que mudou nesse período, no contexto das ma­dias, e como a população vem se apropriando das tecnologias?

A pesquisa que Gabriela Na³ra e eu estamos desenvolvendo sobre jornalismo de soluções se insere num trabalho hista³rico do Lecc, criado em 1997, que sempre teve como missão buscar formas alternativas e contra-hegema´nicas de comunicação. Fizemos muitos cursos de formação de repa³rteres populares. O mais importante foi a Espocc [Escola Popular de Comunicação Cra­tica]. Toda a história do Lecc foi construa­da em torno da tentativa de reduzir as desigualdades no que diz respeito ao acesso e a  produção de mensagens. Na medida em que realizamos essa formação, isso se multiplicou.

"Os grupos e as comunidades hoje tem condições de produzir suas mensagens, sabem da importa¢ncia disso. Agora a pesquisa que estamos fazendo afina esse tipo de propa³sito e repensa: que tipo de produção todos nostemos feito? Vale para os vea­culos da “grande ma­dia”, analisados por nosno estudo, e vale também para a ma­dia alternativa".


Que análise podemos fazer da cobertura da ma­dia sobre a COVID-19?

A ma­dia tradicional não tem nos deixado ficar na daºvida. Se não temos todas as informações ou se as informações não estãocompletas, isso se deve muito mais aos poderes, a s instituições que deveriam fornecer essas informações. Para o jornalista, trabalhar neste período tem sido muito difa­cil. Exige muito cuidado. Em emissoras públicas como a BBC ou em jornais tradicionais como The New York Times e The Washington Post, temos visto um noticia¡rio voltado para as soluções, apresentando saa­das para o momento. No Brasil, embora o trabalho da ma­dia esteja incansa¡vel, vemos as coisas piorarem de maneira mais exacerbada. No momento em que nosmais precisamos da ação dos governantes, para gerir o Estado e trabalhar em prol da população, não podemos contar com isso. Somos uma sociedade que ainda não conseguiu implementar os seus direitos, viver dos seus direitos. Mas hágovernos, sobretudo chefiados por mulheres, que conseguiram enfrentar e conter as infecções por coronava­rus, adotando uma pola­tica de cuidado.

E o jornalismo comunita¡rio? Como tem se saa­do no contexto atual?

O jornalismo comunita¡rio já estava todo voltado para a internet antes da pandemia. E foi por força das circunsta¢ncias, por não ter recursos para manter uma redação, uma impressão, um estaºdio. As ra¡dios comunita¡rias migraram para o on-line. Muitos comunicadores populares começam a usar o WhatsApp antes mesmo das empresas. Sa£o referaªncias para a grande ma­dia.

Quando os repa³rteres dos jornais tradicionais querem saber sobre o que acontece nas favelas, procuram os jornais comunita¡rios. Com a COVID-19 e a necessidade de isolamento social, esses vea­culos seguiram fazendo um trabalho muito importante, conseguindo mobilizar e informar as pessoas.


Nas condições em que estamos vivendo, com boa parte das relações estabelecidas de forma remota, épossí­vel manter va­nculos e estabelecer novos laa§os?

Estamos aprendendo a conviver com essas ferramentas que já usa¡vamos. Alguns usavam com mais frequência, outros com menos. Alguns se recusavam, outros não tinham acesso. E estamos vendo que podemos conviver a distância, que as ferramentas e o universo da datificação nos permitem fazer nossas conexões com as pessoas mais distantes e mais próximas. Inaºmeras experiências tem vindo a  tona com essa vivaªncia. Devemos observa¡-las e aprender o quanto antes a manejar as ferramentas, mesmo onde as pessoas são mais reticentes, ainda que seja mais trabalhoso.

"Na educação, por exemplo, devera­amos discutir as propostas de ensino a distância. Do contra¡rio, seremos atropelados e pode acontecer o que mais tememos: uma precarização do trabalho do professor. E podera­amos dizer que o papel do professor éfundamental numa sociedade".


A escola não ésão o conteaºdo, são as relações sociais, os afetos, o professor. E isso tudo foi retirado? Nãofoi. O que estãosuspenso éo contato fa­sico. Esses laa§os que a gente mantanãm via inaºmeras ferramentas são menos afetivos? Nãosão. a‰ complicado estabelecer um novo contato pelo virtual. Nãoéimpossí­vel, mas édifa­cil para nosque viemos de outra estrutura. Entretanto, com o que já ta­nhamos estabelecido, épossí­vel manter. Claro que estamos ansiando pelo contato fa­sico. Faz parte de nossa vida, nos constitui, nosvivemos neste mundo. Mas éimportante pensarmos em outras formas de trabalhar, disseminar o conhecimento, nos reunirmos.

Pessoas reunidas no espaço paºblico, lendo jornais: outros tempos | Foto: Michoff (Pixabay)

 

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